Postado em 31/01/2019
Episódios particulares e históricos misturam-se na obra da documentarista e socióloga
Nascida em uma família de imigrantes judeus que veio parar, primeiro, em Pernambuco e, depois, em São Paulo, Isa Grinspum Ferraz é um exemplo da mestiçagem que forma a cultura do país. Característica que se constituiu objeto de estudo da socióloga e diretora da recém-lançada série de dez episódios A Cidade no Brasil, realizada e exibida pelo SescTV. Uma produção que aborda diferentes aspectos da urbanização brasileira a partir de depoimentos de pensadores contemporâneos. Pupila da arquiteta Lina Bo Bardi (1914-1992), para quem organizou o livro Tempos de Grossura – O Design no Impasse, Isa ainda guarda com carinho recordações da parceria com Darcy Ribeiro (1922-1997). Trabalhos como a série O Povo Brasileiro, baseada no livro homônimo do antropólogo. Um vasto e multifacetado repertório na televisão e no cinema somado à participação na criação do Museu da Língua Portuguesa, na capital paulista, e do Cais do Sertão, em Recife. “Para mim, tanto um museu quanto um documentário são disparadores de pensamento. O resto é com o público, com a interação de cada um. Se tenho alguma tarefa nesta vida é a de tentar ampliar repertórios”, relata.
Lina Bo Bardi
Em 1979, eu e meu marido frequentávamos muito a Casa de Vidro até que a Lina me convidou, naquele ano, para ajudá-la a organizar os arquivos de sua experiência na Bahia, entre as décadas de 1950 e 1960, no Solar do Unhão [sede do Museu de Arte Moderna da Bahia no espaço restaurado por Lina Bo Bardi, que transformou o edifício original, mantendo sua identidade de prédio tombado]. Aqueles anos de contato com Lina e Pietro Bardi foram muito importantes para minha formação. Participamos de almoços de domingo e todo tempo Lina me perguntava: “Já te deram isso para ler na faculdade?”. Ela foi me dando referências que a academia não me deu. Quando acabamos de organizar o livro, ela disse que não o lançaria mais porque cairia no vazio e ninguém entenderia a força política de seu trabalho na Bahia. Um trabalho que influenciou Glauber Rocha, o Tropicalismo, Caetano, Gil... Bethânia reconhece o papel da Lina e do Solar do Unhão para aquela geração. É preciso lembrar que nessa época [da organização do livro], Lina estava num ostracismo do qual foi retirada para fazer o Sesc Pompeia. Ela tinha passado nove anos sem trabalho, mesmo depois de ter feito o Museu de Arte de São Paulo (Masp). Depois que ela morreu, o Instituto Bardi lançou Tempos de Grossura – O Design no Impasse. Foi a Lina que me disse para trabalhar com cinema, porque eu pensava com imagens.
Se é para falar da minha carreira, há uma coerência entre pensar a cultura brasileira e tentar transformar isso numa linguagem para todos
Povo brasileiro
Na Fundação Roberto Marinho, fiz documentários e séries ao longo de dez anos. Lá aprendi muita coisa. Para uma série de educação e formação de professores, eu queria entrevistar o Darcy Ribeiro. Um nome que naquela época era absolutamente proibido pela censura brasileira. Eu era muito nova, muito chata e fiquei enchendo o saco do meu chefe, até que ele aceitou. A entrevista foi maravilhosa, mas acabou sendo proibida. Depois disso, Darcy me convidou para trabalhar com ele. Foi uma grande experiência. Montamos um centro de produção de TV. A tarefa do Darcy não era formar professores, mas formar brasileiros. Ele me falou: “Quero que entendam que preto, pobre, é gente tão inteligente quanto qualquer outra gente. E que as crianças têm que ter orgulho de ser brasileiras”. Montamos um time ótimo e para o Darcy a gente conseguia tudo. Era a gente ligar que os artistas vinham e não cobravam nada porque era o Darcy Ribeiro. Caso de Caetano Veloso, que leu um poema de João Cabral de Melo Neto. Conseguimos fazer o trabalho com poucos recursos. Quando ele lançou O Povo Brasileiro, me deu os originais para ler. Falei que aquilo era uma série de TV e disse as palavras mágicas: “Vamos colocar isso nas escolas públicas”. Ele topou na hora. Consegui uma câmera emprestada com o Waltinho Salles, montei uma equipe de amigos e fomos para Maricá, onde o Darcy estava. Ele gravou por cinco dias, aos poucos, porque estava muito doente. Darcy morreu e não viu. Acho que se é para falar da minha carreira, há uma coerência entre pensar a cultura brasileira – de uma forma não acadêmica, mas com uma fundamentação – e tentar transformar isso numa linguagem para todos.
Da língua ao sertão
Por conta do Povo Brasileiro, me chamaram em 2003 para criar o conteúdo do Museu da Língua Portuguesa. Tinha o Antonio Risério, grande pensador brasileiro, um novo intérprete do Brasil, uma potência intelectual. Ele escreveu o texto Estação da Luz da Nossa Língua e a partir desse texto me convidaram para fazer parte do projeto. A gente inaugurou o museu em 2006, com uma equipe muito boa, porque tudo é feito em equipe, seja cinema, seja museu. Não existe trabalho solitário nessas áreas. Inauguramos cheios de medo porque não existia nenhum modelo de museu de língua no mundo para seguir ou não. A gente inventou tudo, foi um parto. A primeira exposição foi sobre Guimarães Rosa, feita pela Bia Lessa e que foi inovadora na maneira de tratar a língua. Não a língua como literatura, gramática, mas a língua como a argamassa social que une as pessoas e vai reinventando-se por todo mundo, pelos poetas, pelos acadêmicos, pelos rappers, enfim. Uma língua cheia de variáveis e mestiça num país como é o Brasil. E o museu foi um sucesso. Foram cinco milhões de visitantes para um tema que não é fácil. Depois fui chamada para outras experiências de museus. Um que tenho muito orgulho é o Cais do Sertão, em Recife. Foi uma encomenda para fazer uma homenagem ao centenário de Luiz Gonzaga. Chamamos um time incrível de pensadores e cineastas, incluindo também o Risério. Chamamos Kleber Mendonça, Marcelo Gomes, Camilo Cavalcanti. Uma nata de criadores pernambucanos, outros de São Paulo e do Rio de Janeiro. Fizemos um museu do qual eu gosto muito. Agora, três anos depois do incêndio no Museu da Língua, finalmente conseguiram o dinheiro do seguro e estamos refazendo o museu. Essa será outra aventura...
Isa Grinspum Ferraz
esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E
no dia 6 de dezembro de 2018.