Postado em 29/03/2019
A escritora Maura Lopes, em imagem em 1965.
Segure firme se nunca tinha ouvido falar de Maura Lopes Cançado. A escritora mineira, nascida em 27 de janeiro de 1929, produziu uma obra incomum. Nona criança de um total de 11 irmãos, passou a infância em uma tradicional e bem-sucedida família de São Gonçalo do Abaeté. Mas, nesta cena aparentemente harmônica, contrasta uma série de dificuldades pessoais. Quando criança, a saúde era frágil e a mente voava longe entre invenções de familiares russos e de origem chinesa.
O quadro de instabilidade acabou agravado com a experiência dos abusos sexuais dos quais foi vítima, segundo relatos da autora – e que não foram superados. As crises se sucederam até que vieram o diagnóstico de esquizofrenia e as inúmeras internações. Essas e outras experiências contribuíram para moldar a personalidade literária de Maura e povoam as páginas de Hospício é Deus (1965), fruto de uma de suas passagens pelo Hospital Gustavo Riedel, no Rio de Janeiro, entre 1959 e 1960, e primeiro dos dois únicos livros publicados pela autora. O segundo é O Sofredor do Ver (1968).
Esvoaçante
Entre altos e baixos, a jovem Maura era conhecida na cidade de Bom Despacho (MG) por furar as nuvens em seu avião – presente do pai. Aos 14 anos, já cortava os ares pilotando uma pequena aeronave. No aeroclube da cidade, conheceu o futuro marido, Jair Praxedes, de 18 anos. O casamento, realizado apenas no religioso, durou pouco, mas nesse período Maura engravidou e deu à luz seu único filho, Cesarion, aos 15 anos de idade. A escolha do nome não engana na pompa. O Cesarion mais conhecido da história é o filho de Cleópatra e Júlio César, casal símbolo do Egito Antigo.
Difícil de ser fotografada, a escritora pode ser vista nesta imagem com seu único filho, Cesarion, em registro dos anos 1940.
“Melhor escritora da língua portuguesa”
Era assim que Maura bradava sobre si mesma. A frase podia ser repetida informalmente no bar Amarelinho, na Cinelândia, no Rio, ou em tom oficial, durante entrevista à Revista Leitura, no ano de 1968: “Preparo-me para me tornar um dos maiores escritores da língua portuguesa”.
Se a qualificação exacerbada parece ter um quê de Narciso, outro jeito de interpretá-la é como um arroubo de “escritora-provocadora”, sugere Alex Fabiano C. Jardim, doutor em Filosofia e professor do Departamento de Filosofia, Mestrado Profissional e do Programa de Mestrado em Letras – Estudos Literários (Unimontes-MG). “Ela é um tipo de autora que sempre terá algo a nos dizer. Com uma escrita mais direta em relação aos problemas que experimentamos, direcionando a palavra para a experimentação em detrimento de uma mera interpretação do mundo”, analisa.
Em 1949, Maura vivencia a primeira de várias internações que se intercalariam em seu quebra-cabeça entre vida real e ficcional. Dirigiu-se à Casa de Saúde Santa Maria (BH), por conta própria. Ao sair de lá, não teve residência fixa. Morou de hotel em hotel – não era aceita em pensões pelo fato de ter um casamento desfeito em sua biografia.
Ares cariocas
Em 1953, Maura foi viver no Rio de Janeiro, onde, considerada uma promessa literária, começou a escrever no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, cercada, entre outros, por Ferreira Gullar, Carlos Heitor Cony, Reynaldo Jardim, Assis Brasil, todos citados por ela como “seus protetores”. Seu conto “No Quadrado de Joana”, sobre uma paciente catatônica, foi capa do suplemento, e fez sucesso. Após alguns anos na cidade, teve sua primeira grande crise: tentativa de suicídio. No Natal e Ano Novo de 1957: internação no Gustavo Riedel (Engenho de Dentro), hoje Instituto Nise da Silveira.
Com o lançamento do livro Hospício é Deus (1965), a autora alcançou certo prestígio literário pela força, contundência e habilidade narrativa contidas na obra. Em 1968, foi a vez de O Sofredor do Ver, compilação de textos publicados no Jornal do Brasil associados a inéditos.
A editora Maria Amélia Mello foi uma das pessoas que acompanharam essa trajetória. No início da carreira como jornalista, ouvia o nome de Maura com curiosidade. Tentou gravar uma entrevista, mas esbarrou na negativa da escritora. O que tiveram se resumiu a um encontro numa tarde de sábado, no qual assuntos variados pipocavam. Maria Amélia não se esquece da inteligência, do humor ácido, “como se uma palavra surgisse da outra para revelar alguma coisa”, e de momentos de silêncio terminados em despedida lacônica. A editora cita trechos dos textos de Maura de cor e sente orgulho de ter relançado a obra da escritora (editora Autêntica, 2016), permitindo mais acesso de público à obra. Hospício é Deus, por exemplo, teve edições em 1965, 1979, 1991 e antes do relançamento só era encontrado em sebos, com preços flutuando entre 90 e 800 reais.
Qualidade literária
“Leiam antes”, avisa Maria Amélia aos incautos que duvidam de como os textos são bons. Ela ressalta a qualidade dos escritos, independentemente do histórico de internações, tentativa de suicídio e assassinato. Interditada pela Justiça em 1974, depois de matar por estrangulamento uma paciente da clínica Doutor Eiras, no bairro de Botafogo, Maura nunca mais publicou um livro. Morreu em 19 de dezembro de 1993, no Rio de Janeiro.
Para além da relação repleta de nuances entre arte e sanidade, há o registro da autoficção, o enlace entre biográfico e literário, realizado com muita perspicácia e intensidade em Hospício é Deus – espécie de diário do vivido no hospital em Engenho de Dentro.
Depois de ter a obra adaptada para o teatro (leia o boxe Voz entre névoas), a autora recebe o foco das lentes da sétima arte, num desdobramento da dança interdisciplinar entre literatura, dramaturgia e cinema, pois um filme inspirado em sua vida está sendo planejado para chegar às telas. Com viés contemporâneo, a obra literária cabe em muitos modos de expressão.
“O relançamento dos livros trouxe Maura de volta ao cenário, abraçada por leitores antigos e outros que nunca ouviram falar dela antes. O resultado foi além do esperado”, comenta Maria Amélia.
Leia trechos que transbordam a intensidade literária de Maura Lopes Cançado
Nasci lúcida e segura [...] minha iniciação literária se fez desordenadamente porque sempre dispensei mentores. [...] Não tracei um método, uma disciplina de trabalho.
Da leitura, sim.
O Sofredor do Ver – 1968
Só sou autêntica quando escrevo. O resto do tempo passo mentindo.
Hospício é Deus – 1965
As relações cotidianas que me imponho na luta pela sobrevivência desgastam-me [...] E as boas maneiras, a representação. Odeio tudo isso..
O Sofredor do Ver – 1968
O que me assombra na loucura é a distância – os loucos parecem ser eternos. Nem as pirâmides do Egito, as múmias milenares, o mausoléu mais gigantesco e antigo possui a marca da eternidade que ostenta a loucura.
Hospício é Deus – 1965
Capa do livro Hospício é Deus Capa do livro O Sofredor do Ver Box
Adaptação para o teatro recupera história de vida pouco convencional da escritora
Em temporada até 7 de abril, no Sesc 24 de Maio, o monólogo Diários do Abismo, de Pedro Brício, traz uma adaptação do texto Hospício é Deus, de Maura Lopes, encenada pela atriz Maria Padilha (foto). Com direção de Sergio Módena, a peça busca trazer à tona essa personagem fascinante, por meio de um espetáculo provocador como a psique da autora.
Foto: Fernando Young.