Postado em 01/05/2019
Foto: Leila Fugii.
O que há em comum entre as bonecas de barro do Vale do Jequitinhonha, no norte de Minhas Gerais, as rendas de bilro de Florianópolis, capital de Santa Catarina, e a cerâmica de Cotia, no sudoeste de São Paulo? Todos estes são exemplos de saberes e fazeres manuais transmitidos de geração em geração pelos quatro cantos do Brasil. São diferentes técnicas, materiais, cores, texturas e aplicações a compor uma teia que forma o profícuo artesanato brasileiro. Expressões que prevaleceram por muitos anos como suvenires – recordações de viagem embaladas por turistas –, mas que, principalmente nas últimas duas décadas, ganharam um novo olhar, significado e importância. Pesquisadora e curadora de manualidades que percorrem o país de norte a sul, Adélia Borges reafirma em palestras, livros e instituições: “A única coisa primitiva sobre nosso artesanato é o nosso conhecimento a respeito dele”. Ex-diretora do Museu da Casa Brasileira, em São Paulo, autora e coautora de mais de 15 livros, entre eles Design + Artesanato: o Caminho Brasileiro (Terceiro Nome, 2011), Adélia não só tem um profundo conhecimento na área, como ainda se emociona e se surpreende com a riqueza de manifestações culturais manuais nos rincões por onde viaja pelo Brasil. Nesta entrevista, a especialista nos explica o que está por trás do conceito de artesanato, qual o posicionamento das expressões manuais na contemporaneidade e os desafios do porvir.
Como definir o que é artesanato?
Resolvi adotar a definição da Unesco. Artesanato é tudo que se faz com as mãos e com predomínio de processos manuais. A elaboração de objetos em que predominem as técnicas manuais, mas na qual também pode haver a utilização de tecnologias, de equipamentos. O artesanato tem uma força muito grande inclusive na economia dos países em desenvolvimento. Há estudos que mostram essa força na economia. Países onde há predomínio do artesanato nas camadas mais pobres da população. O que não acontece em diversos países do hemisfério norte, onde há um retorno expressivo do artesanato, feito por mestres, doutores, gente escolarizada, onde há muitos cursos de faculdade de design, de joalheria, design têxtil etc. Tanto que, na Europa, o artesanato se conhece muito como “movimento maker”, de fazer com as próprias mãos, que implica, em geral, o uso de técnicas artesanais muitas vezes conjugadas com digitais. Nos Estados Unidos dá-se o nome de Do It Yourself (DIY).
Enquanto estrangeiros, como a arquiteta italiana Lina Bo Bardi, sempre foram fascinados pelo artesanato brasileiro, por que no país ainda há certo desmerecimento?
A tradição escravocrata que o Brasil tem é muito forte. É “ruim” sujar as mãos e fazer algo com elas. Se tenho instrução suficiente, mando alguém fazer e não faço. É uma tradição escravocrata e que diminui quem faz, criando uma dicotomia. Se for ver a definição de artesanato nos dicionários brasileiros, entre os significados consta: coisa rústica feita sem atenção, sem técnica. Uma visão absolutamente preconceituosa. Quando você compara essa definição com a de um dicionário britânico, é totalmente diferente. Lá entende-se por ofício, por aquilo que é feito à mão, feito com maestria por mestres da tecelagem, da cestaria etc. Então, imersos nessa realidade, precisamos de certa distância para ver o artesanato com novos olhos. Foi o que a Lina Bo Bardi fez, assim como outros. Outras iniciativas, algumas das quais faço parte, tentam mostrar o artesanato brasileiro de forma que as pessoas percebam a enorme riqueza que ele tem. Há também muitos artistas contemporâneos fazendo uso de técnicas artesanais. Como Ernesto Neto [na exposição Sopro, em cartaz na Pinacoteca], um artista que faz esculturas têxteis, muitas das quais realizadas em parceria com comunidades. Por exemplo, ele trabalhou anos com a Cooperativa de Trabalhadores da Rocinha, no Rio de Janeiro.
Há um maior número de mulheres artesãs do que de homens?
Tem muita gente fazendo, mas a gente desconhece. Recentemente o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) incluiu a opção artesão à pergunta sobre profissão. Algo que não existia. Então, nossas estatísticas são muito ruins. Temos alguns estudos como o elaborado pelo Banco Mundial ou por outras instituições em países como o Peru, nosso vizinho, que veem a força econômica do artesanato. No Brasil, muitos têm o artesanato como segunda atividade, seja na zona rural, seja na zona urbana. Por exemplo, dei uma palestra no Sesc Bertioga, pelo Festival de Aprender (FestA!) e conversei com uma artesã com uma potência de trabalho incrível. Perguntei a ela: “Você vive disso?”. Ela me disse que é faxineira, mas que deseja ser só artesã. Calcula-se que 80% das pessoas que trabalham com artesanato são mulheres. É muito interessante porque há vários estados instituindo o reconhecimento da figura do mestre, que é a pessoa que tem condições de ensinar essas técnicas. E, em geral, o termo é usado no masculino: os mestres. Acho que toda a contribuição da mulher para a sociedade teve muita invisibilidade.
Em quais áreas as mulheres atuam em maior número?
Tudo que é relacionado ao têxtil é predominantemente feito por mulheres. Na cestaria, muitas vezes, você já vê uma divisão. Às vezes, vemos os homens colhendo a fibra vegetal e as mulheres trançando. Em outros casos, só mulheres em ambas as etapas. Na cerâmica, temos muitas mulheres, desde a tradição da cerâmica indígena, por exemplo. Já a madeira é algo em que predomina o trabalho de homens. Outra coisa: muito do artesanato feito hoje é feito em casa, no espaço doméstico, enquanto elas cuidam dos filhos, cozinham ou quando voltam da colheita do feijão, por exemplo. Portanto, o que você vê de muito especial acontecendo hoje são as cooperativas, associações e casas. Viajo muito pelo Brasil, e, no interior do Piauí, por exemplo, vi uma casa linda dedicada às rendeiras. Mulheres que passam a manhã em suas casas ou na colheita, e que à tarde se reúnem para o trabalho manual, conversar e trocar vivências.
Foto: Leila Fugii.
O artesanato também pode ser visto como uma prática terapêutica?
Sim. Também pode ser uma atividade meditativa. Há um autor de que gosto muito e que fala sobre isso, o historiador de arte francês Henri Focillon (1881-1943). Ele escreveu um texto, traduzido pela revista Serrote [do Instituto Moreira Salles], chamado Elogio da Mão. Nele, ele fala que a mão é o único órgão da gente que é ativo, o resto é receptor. Você recebe com olhos, nariz etc. Agora, a mão, ela age. O que concluí a propósito desse texto é que nosso preconceito julga que ali não há um trabalho mental. Para nós que trabalhamos muito com a mente e que estamos vivendo em cidades, a possibilidade de trabalhar e fazer coisas com as mãos é muito gratificante. Por isso, cada vez mais pessoas têm feito.
Há características que definem o que é artesanato brasileiro?
Há tentativas de se falar de um cinema brasileiro ou de uma música brasileira, por exemplo, mas são expressões plurais. No artesanato acontece a mesma coisa. Há vários polos emergindo com força em diferentes estados, contando suas histórias. Algo que temos muito forte em nosso artesanato é que, por causa da nossa biodiversidade, há uma riqueza de materiais. E o artesão brasileiro, em geral, trabalha com coisas que estão à sua mão. Em Cabo Verde, há uma escassez de recurso natural como matéria-prima, e aqui não. Agora vemos que alguns artesãos migram de um lugar para outro por falta de matéria-prima, ou vemos, também, substituições. Não é permitido mais a arte plumária [objetos confeccionados com penas e plumas de aves]. Então, algumas etnias estão fazendo cocares maravilhosos de canudinhos de plástico. A Lina Bo Bardi falava que o essencial é que a gente veja o artesanato como mais uma manifestação da nossa cultura. Agora, o que eu quero advogar sempre é o direito à transformação. Porque tudo que está vivo está em transformação.
Então, nosso artesanato não parou no tempo e está se renovando?
O artesanato está evoluindo como outras expressões. Tem o artesanato de raiz, que permanece o mesmo e é bom que seja assim. Por exemplo, há alguns anos fiz uma exposição de cerâmicas brasileiras e levei peças feitas pelas índias Suruí, de Rondônia. Na noite de abertura, um designer dinamarquês disse que queria ter feito aquela cerâmica por ser algo tão contemporâneo. Ou seja, muitas vezes o conceito de contemporâneo se esgarça quando as fronteiras se interpenetram. E essa cerâmica Suruí é algo completamente contemporâneo. Há tradição. Ela é feita só por mulheres. Há um ritual, um conjunto de valores que se expressam por meio daquele artefato. Isso não tem por que mudar. Agora a gente vê muita renovação na utilização de velhas técnicas para novos usos. Por exemplo, cestos de fibra vegetal feitos para colocar no jumento e fazer a colheita de alimentos tornam-se luminárias: um novo uso. Também acho perfeitamente legítimo que haja cocares de canudos de plástico. Já dizia o pensador norte-americano Richard Buckminster Fuller (1895-1983): o lixo é o único recurso em crescimento no planeta. E se o conceito de lixo é relativo – você pode chamar de lixo algo que para mim não é –, em centros urbanos, que geram uma quantidade enorme de lixo, tem muita gente transformando esse material em objetos maravilhosos.
Já há um reflexo da tecnologia sobre o artesanato brasileiro?
Sim. Você vê, por exemplo, no Instagram e outras redes sociais como está ativo o bordado e outras técnicas manuais em vários perfis de mulheres de 20 a 30 anos. Ou seja, o artesanato se tornou algo da cultura urbana. Bordado não tem mais a imagem da vovozinha. Um desses grupos se chama Piradas no Ponto, que vem de ponto de bordado. São mulheres que se encontram uma vez por mês no Trianon. Elas dizem que a intenção é fazer uma ocupação poética do espaço público. São efeitos da evolução tecnológica que vivemos. E a gente vive momentos em que a tecnologia digital permeia nosso cotidiano. Tanto que outro efeito é a necessidade de experiências reais: de tocar, de sentir. Cada vez mais cidadãos do mundo buscam essa sensação de pertencimento e acho que o artesanato traz isso. Para quem faz também é uma forma de apropriação da cultura, da própria história.
Há estudos sobre o impacto econômico desses fazeres manuais?
Há um estudo que cito no meu livro Design + Artesanato: o Caminho Brasileiro, que fala que, em determinados países, ele chega a ser a quarta contribuição para a economia local. Mas, quando se fala em geração de riqueza, não é o mesmo caso de quando os economistas e governantes falam da indústria automobilística. No artesanato, as práticas são totalmente sustentáveis. A utilização da matéria-prima é feita de forma não poluidora e respeitosa. Mas, infelizmente, não temos dados a respeito. Em alguns países a cena é diferente. Como em Cabo Verde, sobre o qual já falei: lá, o Ministério da Cultura e de Indústrias Criativas criou o Centro Nacional de Artes, Design e Artesanato. Há, portanto, uma compreensão de como o artesanato é uma força econômica para o país e seus habitantes. No Brasil nos falta bastante isso.
Nas suas viagens, você viu políticas públicas voltadas para o artesanato?
Sim. Em muitos lugares. No Reino Unido, há políticas públicas muito consistentes. Há uma atenção enorme ao artesanato, um artesanato contemporâneo. A Inglaterra é um berço do movimento maker, da questão digital, o governo investe nisso. Já na Finlândia, e nos países escandinavos de maneira geral, é o design que bebe na tradição. Ou seja, lá, no Japão e na Itália, o design surge do artesanato. Não há um rompimento como o que houve no Brasil, mas uma continuidade. No Japão, há muitos programas de valorização do artesanato, é um dos primeiros países a instituir o conceito de tesouro vivo às pessoas que concentram saberes ancestrais manuais. Pessoas que devem receber dinheiro mensal do governo para continuar difundindo essas técnicas. A Austrália é outro país em que há fomento ao artesanato.
Foto: Leila Fugii.
No Brasil, os artesãos estão adotando estratégias para a difusão de seus trabalhos?
Já fui chamada para falar sobre essa revitalização do objeto artesanal brasileiro, sobre iniciativas marcadas por uma forte carga de inovação e de empreendedorismo de comunidades espalhadas pelo país. Há um interesse sobre o assunto em vários lugares, como Dinamarca, Qatar, México. Falei de aspectos a serem melhorados. Por exemplo, com a entrada da industrialização, muitas práticas deixaram de ser adotadas. E agora há um retorno. Por exemplo, o tingimento de fibras do algodão voltou a ser vegetal. Há outros cuidados técnicos, formas de embalar esse produto para chegar intacto ao destino. Várias coisas foram feitas. Outro procedimento adotado recentemente é incluir nas peças etiquetas que expliquem o produto. Hoje a gente se interessa muito pela origem da peça. E as etiquetas identificam de onde vem, a história relacionada ao produto e a história de quem fez a peça. Quando se compra uma peça de artesanato para sua sala, compra-se uma história que vem com ela. Essa história precisa ser explicitada.
Como se dá o seu trabalho de consultoria curatorial de artesãos brasileiros na loja do Museu de Arte de São Paulo (Masp)?
Desde 2016, sou consultora da loja do Masp, um espaço que abrange peças de designers consagrados e objetos feitos por comunidades de várias regiões do país, além de realizações de etnias indígenas. No ano passado, por exemplo, com o tema Histórias Afro-Atlânticas, focamos numa curadoria de peças feitas em comunidades negras e quilombolas. Lá, você tem contato com a miniatura de uma das cadeiras de Sérgio Rodrigues, ou com um colar feito de sementes por uma associação de artesãs do Vale do Juruá, no Acre, por exemplo. É muito gratificante fazer isso e quem aprecia é o turista que vai ao Masp, porque o artesanato está muito ligado à ideia de turismo. E o turista estrangeiro, por exemplo, quer levar consigo algo que o faça recordar o país. Mas também acho que nestes tempos em que vivemos, com essa preocupação com o pertencimento, é muito bom quando temos a oportunidade de ver o colar das índias do Juruá e comprá-lo para presentear alguém, não apenas para ajudar as artesãs, mas por se tratar de uma peça única, especial e que você não vê nas lojas de design de outros museus do mundo.
Qual é o futuro do artesanato?
Ao contrário dos prognósticos de desaparecimento do objeto artesanal, estamos vendo uma expansão do artesanal na sociedade contemporânea. Porque ele tem uma dimensão de sustentabilidade e também essa dimensão de pertencimento e do afeto. Como o grande escritor mexicano Otávio Paz fala: os objetos feitos à mão trazem impressos em si mesmos as mãos de quem os fizeram. São objetos que comemoram a fraternidade original dos homens. Acho que essa dimensão do afeto, da história, temos aqui, no artesanato.