Postado em 28/06/2019
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Reflexões sobre alternativas de transporte e de moradia para transformar a cidade de acordo com as necessidades dos habitantes
A cidade mais populosa do país lança constantes desafios para quem nela mora e por ela se locomove diariamente. Com 12,2 milhões de habitantes, segundo os últimos dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), São Paulo abarca avanços e contradições sobre como é exercido, de fato, o Direito à Cidade – conceito formulado pelo filósofo francês Henri Lefebvre, em 1968, sobre o direito a transformar e projetar uma nova cidade, focada nas necessidades das pessoas. Livre-docente pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), o pesquisador e urbanista Renato Cymbalista observa uma grande mudança na maneira como a gente se relaciona com a cidade, principalmente dos últimos 30 anos para cá. “Quando eu era criança e, depois, adolescente, o modelo de morar bem na cidade para uma certa elite era morar numa casa grande, no Pacaembu, no Morumbi, nos Jardins, com muitos serviços dentro da casa e carros na garagem. Hoje a ideia de morar bem não passa por aí, mesmo na elite. Morar bem é morar onde você tem acesso ao comércio, aos serviços da cidade, é poder ir a pé para o trabalho, num deslocamento mais tranquilo”, esclarece. Nesta entrevista, Cymbalista, que também é diretor-presidente do Instituto Pólis – organização não governamental de atuação nacional e internacional, fundada em 1987, que trabalha na construção de cidades sustentáveis e democráticas –, fala sobre novos e possíveis horizontes para viver em São Paulo.
Novas tecnologias aplicadas à locomoção na cidade, caso de aplicativos de veículos, patinetes e bicicletas, estão, de fato, trazendo avanços?
Olhando com cuidado, vamos perceber que temos mudado bastante a forma como vivemos na cidade. A ideia de que a cidade ainda não se adequa às novas tecnologias é verdadeira até certo ponto. Mas tem alguns aspectos em que nossa vida se adaptou muito. Posso dizer por mim mesmo. Há 30 anos, eu estudava numa faculdade onde hoje dou aula. Quando era aluno, eu ia de carro para a faculdade e agora, como professor, vou de ônibus, metrô, Uber, táxi, carona. Não tenho mais carro porque a cidade oferece outras alternativas de mobilidade que não estavam dadas da mesma forma há 30 anos. Meu exemplo é prosaico até, mas, se eu for olhar para as pessoas a minha volta, a quantidade de gente que abre mão do carro por maneiras alternativas de se locomover na cidade é muito grande, pensando em São Paulo. E isso se reflete também nas escolhas de onde e como as pessoas desejam morar. Quando eu era criança e, depois, adolescente, o modelo de morar bem na cidade era morar numa casa grande, no Pacaembu, no Morumbi, nos Jardins, com muitos serviços dentro da casa e carros na garagem. Hoje a ideia de morar bem não passa por aí. Morar bem é morar onde você tem acesso ao comércio, aos serviços da cidade, é poder ir a pé para o trabalho, num deslocamento mais tranquilo. É também ter transporte público, metrô, corredores de ônibus. Então, houve uma mudança na maneira como a gente se relaciona com a cidade.
Em relação à adaptação a novos modelos de mobilidade, a cidade tem sido rápida para absorver essas mudanças?
Novas tecnologias são as tecnologias dos aplicativos, que fazem uma diferença muito grande. Mas a maior questão é que decisões políticas acabaram mudando a maneira como a cidade se relaciona com seus transportes coletivos. Atualmente, São Paulo tem uma coisa que podemos chamar de rede coletiva de transporte de massa. Temos algumas linhas de metrô integradas à CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) e hoje conseguimos chegar ao aeroporto de Guarulhos e a alguns equipamentos importantes, como a rodoviária. A gente tem algo que não tinha há 20 ou 30 anos. Temos uma rede de faixas exclusivas para ônibus que também perpassa uma parte significativa da cidade, algo que não tínhamos. Temos também o senso comum de que é legítimo reservar espaço para o transporte coletivo, e isso foi adquirido há pouco tempo. Não significa que temos a rede ideal. A gente tem uma rede que em muitos horários fica sobrecarregada, desconfortável, não temos uma malha de metrô fechada e que abranja a cidade inteira. Há pedaços muito grandes que são desertos de metrô. Há uma desigualdade que não estamos enfrentando e que talvez estejamos aumentando. Então, apesar de avanços, a experiência de locomoção na cidade precisa melhorar.
Como fica a questão dos pedestres e do planejamento de espaços públicos? Estamos olhando para essas necessidades?
São Paulo sempre foi uma cidade de urbanismo bastante pobre. Mesmo bairros de alta renda sempre tiveram calçadas muito estreitas, o que é reflexo de um poder público que nunca teve dinheiro para investir em urbanismo. São Paulo sempre foi uma cidade do trabalho e nunca teve vocação de capital monumental. A terra sempre foi tratada com a ideia de exploração máxima pelo mercado mobiliário. Isso significa mais exploração privada e menos espaço público. Então, um poder público com poucos instrumentos e poucos recursos somado a um poder privado muito ganancioso, que conseguiu sempre converter a terra em valores monetários muito altos, provocou a situação urbana que temos hoje. Uma cidade de muitos milhões de habitantes com calçadas, em geral, muito estreitas. É um legado ruim do passado com o qual precisamos lidar. Algumas cidades ao redor do mundo estão nos mostrando outros caminhos. Existem possibilidades de pedestrianizar sem grandes reformas urbanas, apenas sinalizando, pintando o solo. Essa é uma batalha que São Paulo ainda não travou. Mas sou otimista. Vejo outras cidades fazendo isso e vejo cada vez mais pessoas construindo alternativas ao automóvel. Vejo a geração mais jovem desconsiderar essa ideia de que automóvel é símbolo de status. Então, há esperança.
Esse pensamento da geração jovem seria, então, um sinal de mudança de paradigma?
Para a população mais jovem, em grande medida, o automóvel como propriedade privada também está sendo desafiado. A ideia de que quando preciso posso ter acesso a um automóvel é muito presente, muito mais do que a ideia de propriedade. O automóvel se tornou, nos últimos anos, um ônus. Nós, como sociedade, estamos desautomatizando nossa relação com o carro. Estamos problematizando nossa dependência do carro e desenvolvendo recursos alternativos. Meus alunos querem morar num apartamento do lado do metrô. Essas pessoas que estão formando a mentalidade sob essas novas condições vão ser os grupos que vão gerir nossa cidade. Sou otimista e acho que vamos desenvolver alternativas com o discurso de reconquistar o espaço do carro para o pedestre. Isso não significa uma situação incrível e maravilhosa. Significa uma situação que, no meu ponto de vista, é melhor que a anterior. Estamos usando mais ruas, calçadas e transportes coletivos. Mas numa cidade desigual e segregada como a nossa, ela repropõe e recoloca os seus problemas. As áreas centrais tendem a ser cada vez mais valorizadas e buscadas pelas classes médias e médias altas, e os centros das nossas cidades, que historicamente tiveram muito espaço para os mais pobres, talvez não tenham esses espaços no futuro. Nisso a gente precisa ficar de olho. A gente pode agravar as contradições entre centro e periferia se não prestarmos atenção nisso.
Renato Cymbalista | Foto: Leila Fugii.
Quanto ao modelo de economia compartilhada, quais reflexos já podemos constatar no cotidiano de uma cidade como São Paulo?
Certamente isso já está produzindo um conjunto de impactos. Antigamente, em qualquer lugar onde as pessoas de classe média para cima moravam, elas carregavam consigo uma coleção de discos, CDs e livros que hoje em dia não é mais indispensável. Você consegue por meio de streaming de música e vídeo, ou aparatos como o kindle, um conjunto de possibilidades de acesso sem necessariamente ter a propriedade sobre aqueles conteúdos. Você não precisa mais guardar espaço para livros e discos. Isso também traz um impacto na maneira como a gente “usa” a nossa casa. É a ideia de: eu tenho acesso ao que preciso. Esse comportamento tem impacto no espaço público e no privado. Os aplicativos de transporte estão mudando e, em alguns aspectos, estão mudando para melhor ao problematizar nossa dependência em relação ao carro. Em outros aspectos isso pode ser problemático, pode significar que vamos deixar de usar nossos transportes coletivos, algo que já está acontecendo em alguns países do hemisfério norte: os aplicativos estão tirando gente das redes de transporte de massa – ônibus, metrô – e isso está causando problemas de sustentabilidade para a rede de transporte coletivo. O segundo ponto é a precarização laboral. A situação profissional de um motorista de aplicativo é mais precária do que a de um cobrador de ônibus, alguém que tem sua carteira assinada, tem um sindicato e direitos trabalhistas. Essa é uma questão com a qual precisamos lidar. Em relação à moradia, plataformas de hospedagem como Airbnb em cidades como Barcelona, Nova York e Lisboa já estão provocando impactos porque essas cidades têm movimento turístico grande e o Airbnb traz problemas para o setor hoteleiro, que diz estar sofrendo uma concorrência desleal, porque essa plataforma não precisa pagar tributos, ter relações de trabalho formalizadas ou cumprir uma série de normas de limpeza, vigilância sanitária etc. O terceiro ponto, mais dramático ainda, é a concorrência com os espaços de moradia. Se para mim vale mais a pena alugar um apartamento pelo Airbnb, onde os turistas pagam muito bem, por que vou alugar para um morador local? Em São Paulo, a quantidade de imóveis sendo ofertados para aluguel por temporada é pequena, até pelo perfil não turistico da cidade. Isso não se configura como prejuízo grande ao segmento, mas talvez no futuro, sim.
Nos últimos anos, os governos municipais ensaiaram uma política para contemplar as moradias sociais. Estamos avançando nesse aspecto?
Foi a partir da década de 1990 que começamos a ter políticas habitacionais mais problematizadoras em São Paulo. Em primeiro lugar, no sentido da diversidade: começamos a ter políticas de urbanização de favelas, primeiras iniciativas de intervenção em cortiços, políticas de regularização fundiária, ou seja, pedaços da cidade que haviam sido constituídos ilegalmente, mas que eram espaços onde as pessoas não estavam correndo risco de morte, passaram por processos de titulação. Então, a partir da década de 1990, nós mudamos as perspectivas das políticas habitacionais na habitação social, na ideia de uma produção de habitação nova para uma diversidade de situações. Na passagem de 1990 para 2000, a questão da localização da habitação começa a ganhar mais importância e isso aconteceu por mais de um motivo. Um motivo muito importante foram os próprios movimentos de luta por moradia que começaram a fazer ocupações. Na Rua do Ouvidor, número 97, um prédio foi ocupado em 1997, e foi a primeira ocupação urbana na área central organizada por movimentos de luta por moradia. Tinha uma liderança importante lá, o Gegê. Foi o momento em que o movimento por moradia falou: “Nós não queremos só casa, nós queremos boas localizações, queremos estar no centro da cidade”. E essa prática das ocupações vem se exponenciando com alguns resultados interessantes. Algumas ocupações instituem direitos, reconstroem a vida dos moradores, que cuidam bem dos prédios. A ideia de que um prédio desocupado precisa ser ocupado, que ele cumpre sua função social se tem gente de baixa renda morando lá, é uma ideia que a gente deve levar a sério.
Outra alternativa de moradia social está na possibilidade de aluguel, mas não de compra.
Na virada do século 21, vieram as primeiras experiências com projetos de aluguel social em São Paulo. Projetos em que a política de moradia não está vinculada, necessariamente, à propriedade, e sim ao uso dos imóveis. Temos alguns empreendimentos de locação social na cidade: Parque do Gato, Asdrúbal do Nascimento, Palacete dos Artistas e Vila dos Idosos, por exemplo. Alguns deles funcionam muito bem, principalmente os dois empreendimentos com população idosa – Palacete dos Artistas e Vila dos Idosos. Outros têm problemas sérios, principalmente o Conjunto Olarias (Canindé) e o Parque do Gato (Bom Retiro): a informalidade é muito grande, a inadimplência é gigantesca, a presença do crime é grande. Então, não podemos dizer que temos todas as questões relacionadas à política habitacional resolvidas, mas temos alguns empreendimentos que funcionam muito bem. Se eu fosse o poder público, investiria massivamente em moradia de aluguel social para idosos. Esta é a faixa etária que mais cresce e para a qual esse modelo de moradia por aluguel em imóveis públicos está bem equacionado. Quando priorizamos o uso, e não a propriedade do imóvel, isso permite que o Estado faça moradias em localizações boas, centrais, de uma maneira muito mais sustentável.
Muito se fala sobre esse processo de transformação de centros urbanos, de onde sai a população de baixa renda e entram moradores das camadas mais ricas. A cidade de São Paulo precisa se preocupar com esse movimento?
Gentrificação é um bom conceito operacional para a gente entender a cidade e aonde a gente não quer chegar. Existem cidades que são exemplos péssimos de gentrificação. Nova York, Paris e Londres, por exemplo, blindaram áreas centrais à população de baixa renda. Tudo ficou muito caro. Ninguém fala de gentrificação como uma coisa boa, fala-se como algo ruim. Há uma conotação de classe, uma conotação de expulsão da população de baixa renda, que, pelo aumento do preço dos imóveis, se vê forçada a sair das boas localizações e ir para outros espaços da cidade, longe dos espaços centrais. Dito isso, podemos olhar com cuidado se está acontecendo gentrificação aqui nas nossas áreas centrais. Fiz alguns estudos e minha posição atual é que a gente não tem passado por processos massivos de gentrificação. As áreas centrais continuam como áreas populares. Existe gentrificação em alguns pedaços específicos da cidade. Por exemplo, em alguns pedaços da Vila Buarque e de Santa Cecília. Aconteceu fortemente em espaços como a Vila Madalena. Mas, na área central como um todo, os usos populares seguem. Isso não significa que seja bom, porque a gente continua com a reprodução de práticas bastante perversas em relação à população de baixa renda que vive em áreas centrais. Encortiçamento, informalidade, superadensamento, precariedade, despejos forçados. Participo de um projeto chamado Fica (Fundo Imobiliário Comunitário para Aluguel), uma associação pela propriedade comunitária preocupado com essa questão. É muito importante saber o conceito [de gentrificação] para a gente se proteger contra esse processo no futuro. Para cidades como Londres, Paris, Nova York é tarde demais.
Como professor de História do Urbanismo na Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo, qual sua análise do momento presente da cidade, tendo em vista a relação com o passado?
A história é um dado estruturante da minha formação. Ensino história das cidades e do urbanismo. Fiz um pós-doutorado em história na Unicamp. Para mim, a história é muito importante não como repertório ou como erudição, mas como apropriação daquilo que nossa cidade foi capaz de construir. Como uma ferramenta que possibilita nos compararmos com nosso passado para saber se estamos piorando ou melhorando e em quais aspectos. A comparação da nossa situação presente com a nossa realidade no passado me parece a comparação mais justa. Se a gente se comparar com Genebra, Viena, a gente sempre vai se colocar em último lugar. Mas, se nos compararmos com o que éramos há 20 ou 30 anos, conseguiremos entender onde melhoramos e onde pioramos, e balizar algumas perspectivas de ação na contemporaneidade. Isso é importante porque quero ensinar arquitetos e urbanistas a ter esperança em sua profissão e não ceticismo ou frustração. A história entra na minha estratégia nessa perspectiva: olhar para o passado para desafiar o futuro. Nesse sentido, além da minha busca em relação à história como parâmetro de onde estamos no presente, trabalho na perspectiva do Direito à Cidade. Trabalhei por muitos anos no Instituto Pólis, uma das ONGs mais importantes nessa luta urbana, e da qual hoje sou presidente. Também estou no conselho da Casa do Povo, outra instituição cultural importante de reivindicação de direitos sobre a cidade. Há lugares onde esses direitos foram violados. Lugares de luta, de resistência, de agregação identitária, de comunidades, como é o caso da Casa do Povo. Lugares que podem ser interpretados e mobilizados na afirmação de direitos. Precisamos conhecer o passado nessa perspectiva de agir no presente e desafiar o futuro.