Postado em 31/07/2019
Certa vez alguém me disse que em todas as civilizações foi encontrada alguma forma de manifestação musical, que nunca se soube de um povo que não tivesse conhecido a música. Segundo essa pessoa, não se poderia afirmar o mesmo para todas as linguagens artísticas; alguns povos jamais teriam desenvolvido o teatro, por exemplo (curiosamente aqueles mais dedicados à arte da contação de histórias). Não sei se essa afirmação é verdadeira, mas me faz bem pensar que vivo em um mundo no qual a música é mais necessária do que vestimentas.
Tomando-se por base, portanto, que a prática musical é parte fundamental da vida social, vale lembrar que ela, evidentemente, independe da institucionalização de sua educação. O fazer artístico é inerente ao ser humano, ou seja, para fazer música, não é necessário ter aula de música. Ainda assim, por outro lado, tanto a execução quanto a fruição musical podem ser mais proveitosas quando se tem proximidade com os aspectos formais, e isso exige algum nível de domínio da linguagem. Lembro de uma aula do Willy Correa de Oliveira, na faculdade, em que ele “imitava” a fala de um chinês e depois dizia que dificilmente alguém que não entende chinês poderia achar bonita a fala, sem compreender seu conteúdo. Mas quantas são as formas possíveis para se aproximar desse conteúdo? O que pode ser chamado de Educação Musical?
Eu, que tive uma formação nessa área completamente tradicional, escolarizada, que estudei todos os métodos hoje considerados antiquados (Bona, Hindemith, Hanon, Czerny), muitas vezes penso e comparo tudo que aprendi sobre música dentro e fora das instituições de ensino formalmente dedicadas a esse fim. Ouso dizer que o ensino da música em ambiente formal nem sempre favorece o contato com a obra de arte de maneira mais subjetiva, o que também me parece necessário à formação estética e, claro, à construção do gosto. O quanto não aprendi assistindo a apresentações da Rumpilezz, de Hermeto Pascoal, Tom Zé, do Kronos Quartet, o bloco Filhos de Gandhy e, muito recentemente, a Jazz at Lincoln Center Orchestra, com Wynton Marsalis? Momentos, não tão raros, em que o prazer estético se dá por meio da soma do subjetivo com o intelectual. E coração e mente se encontram, como pororoca… só não sei, desses, qual é rio e qual é mar.
Mas, para reconhecer a importância de uma educação musical que acontece dentro ou fora do ambiente escolar, é preciso antes reconhecer a importância de uma educação musical em si, ou seja, mesmo para aqueles que não desejam ser músicos, a possibilidade de estabelecer um relacionamento com essa manifestação humana me parece fundamental. Infelizmente a educação em arte em geral tem sido vista como algo supérfluo, de menor importância diante dos saberes mais pragmáticos, por assim dizer.
Lembro, achando certa graça, que, quando eu dava aulas de piano há alguns anos, era comum que mães me procurassem dizendo que ficavam felizes de o filho estudar música porque ouviram dizer que ajudava a aprender matemática. Eu ficava pensando sobre a valoração que se dá a cada disciplina. Por que estudar música não poderia ser um fim em si mesmo? Por que não estudar música para aprender música? Será que alguma mãe procurava o professor de matemática pra dizer que achava ótimo seu filho estudar fração, porque assim ele se sairia melhor nas aulas de música? Ou estudar logaritmo, para finalmente compreender como se dá o sistema de afinação atual?
Ora, estudar música serve para aprender música. E estudar música é muito mais do que decifrar os códigos abstratos de uma partitura, é se apropriar da troca simbólica, experimentar, tocar junto, descobrir novos timbres, ruídos, instrumentos inusitados, escutar atentamente, escutar descompromissadamente, assistir a shows, concertos, conhecer da música erudita às manifestações tradicionais do interior dos estados brasileiros, e mesmo do mundo. Estudar música é estar cercado dela e apostar na prática livre como expressão humana. Se não for verdade que não houve povo algum que não tenha desenvolvido alguma manifestação musical, tomara que todos tenham o direito de aprender, se desejarem, com ou sem vestimentas.
Priscila Rahal Gutierrez, bacharel em música, é supervisora do Núcleo Artístico de Programação do Sesc 24 de Maio.