Postado em 13/09/2019
Numa movimentada rua do centro de São Paulo flutua, sobre pessoas, carros, bicicletas e motos, um objeto. Sua forma lembra um longo vestido colorido. No topo da instalação, há um quadrilátero com desenhos de penteados afro. A imensa estrutura se liga por cabos de aço às colunas do Sesc 24 de Maio e da Galeria Presidente, popularmente conhecida como Galeria do Reggae, ponto de referência de cultura negra na capital paulista.
“São dois prédios com vocações culturais muito fortes, muito importantes, que oferecem uma série de serviços e que geram produtos culturais, mas socialmente são vistos com uma espécie de hierarquia entre alta cultura e baixa cultura, lugares de acesso livre ou menos livre”, diz o antropólogo, pesquisador, crítico e curador Hélio Menezes. Ele é autor do dispositivo “Nova República” em conjunto com o escritório Wolff Architects, da Cidade do Cabo, na África do Sul. “Há uma série de projeções que os habitantes, usuários e comerciantes de um prédio fazem em relação ao outro prédio. Não é uma relação muito fluida”, complementa.
A instalação é parte da exposição Todo Dia, da 12ª Bienal Internacional de Arquitetura (BIA) e sintetiza o objetivo do evento: trazer a arquitetura para o cotidiano, pensando relações entre as pessoas e os lugares. “Nós tínhamos como premissa dizer que hoje em dia existe uma volta em geral da cultura arquitetônica do mundo em relação ao tema do cotidiano. É uma ética estética da simplicidade. Arquitetos, cada vez mais, querem deixar de operar numa megalomania intrínseca da profissão, pensando que seria mais efetivo atuar no mundo de uma outra forma, que passa por outras escalas”, afirma Vanessa Grossman, que divide a curadoria da Bienal com Ciro Miguel e Charlotte Malterre-Barthes.
Em vez de priorizar desenhos técnicos e maquetes, a BIA, que ocorre de 10 a 29 de setembro, no Sesc 24 de Maio, e de 13 de outubro a 8 de dezembro no Centro Cultural São Paulo, apresenta debates, exibições de filmes e exposições (com fotos, vídeos e intervenções) nos prédios-sede. Tudo dividido em três eixos: relatos do cotidiano, materiais do dia a dia e manutenções diárias, temas que tendem a chamar mais atenção do público não arquiteto.
No dispositivo “Nova República”, cuja pesquisa in loco foi desenvolvida por um antropólogo, questões sociais e raciais estão muito presentes. Menezes ouviu funcionários e usuários do Sesc 24 de Maio e da Galeria do Reggae ao longo de sua pesquisa. Percebeu que as projeções que os frequentadores do Sesc faziam do prédio vizinho tinham a ver com violência e insegurança, enquanto os usuários e comerciantes da galeria não sabiam que podiam entrar no outro prédio gratuitamente. “Existe, de maneira muito eficaz, embora invisível, uma barreira que separa esses dois prédios num intervalo muito curto de rua. Não há nenhuma parede, nenhum muro concreto, mas há um muro social que impede um trânsito e um fluxo de públicos entre os prédios”, diz Menezes.
A necessidade física de montagem do dispositivo na fachada dos edifícios estreitou os laços entre as instituições e essa era a intenção de Menezes e do escritório sul-africano. Há outra parte da instalação no térreo do Sesc 24 de Maio, onde o salão de cabeleireiro do Mangueira, um dos mais antigos salões de beleza afro do centro de São Paulo é reproduzido. Trata-se de um convite para que profissionais especialistas em cabelos afro que atendem na rua 24 de Maio, entre os dois centros culturais, se sintam à vontade para entrar no Sesc. Para fundar essa “Nova República” (referência ao bairro e à possibilidade de estreitar relações em diversas perspectivas), é necessário se locomover. “O primeiro passo é literal, caminhar, atravessar esses 15 metros e estabelecer um processo de conversa mais contínuo”, diz Menezes. Na programação de debates e palestras da BIA, há duas importantes mesas sobre gênero e raça, que reforçam a troca de ideia sobre o tema dessa intervenção.
“Nova República” é um entre dez dispositivos da exposição Todo Dia espalhados pelo prédio projetado por Paulo Mendes da Rocha e MMBB Arquitetos e inaugurado em 2017. As formas como o edifício reproduz o passeio público em todos os seus andares e como a piscina foi prontamente tomada pelos usuários credenciados da rede Sesc nos primeiros dias de funcionamento da unidade foram o mote para que a exposição se integrasse aos diversos espaços do prédio. “A gente pensou que, ao invés da trazemos obras prontas para este edifício, seria mais produtivo e rico convidar equipes que pudessem dialogar, imergir nesse cotidiano, pensando nos vários serviços e espaços que servem a diferentes usos”, diz Grossman. “Os dispositivos não são obras prontas, mas são mecanismos que se inserem nas dinâmicas do cotidiano desse edifício-cidade”, complementa. Há obras de diversos países, como África do Sul, Argentina, Brasil, Espanha, Estados Unidos, Suíça, Bélgica e França, que estão presentes em áreas comuns do prédio, como rampas, escada de incêndio, banheiro, área de convivência e piscina.
Mesmo sem ter tanto acesso a projetos e políticas públicas para planejar intervenções macro, Vanessa acredita que discussões recentes sobre a relação entre edificações e pessoas já impactam positivamente a sociedade. “Nós temos novas formas de operar. Existem arquitetos, por exemplo, que com um discurso sobre gênero já ajudam a reverter lógicas que são muito fortes nas cidades e que comprometem a vida de todos.”
A 12ª Bienal de Arquitetura ocorre no Sesc 24 de Maio, rua 24 de Maio, 109, República, São Paulo-SP, de 10 a 29 de setembro de 2019. Todas as atividades são gratuitas. A exposição Arquiteturas do Cotidiano, do Centro Cultural São Paulo, com 74 trabalhos, ocorre de 13 de outubro a 8 de dezembro de 2019.