Postado em 04/10/2019
Por Paola Brunelli*
Ele fala pausadamente, mas carrega tanto sentimento em seu discurso que tive a sensação de reencontrar um velho amigo, daqueles que quando revemos, a gente abraça apertado e o tempo congela. Muito mais que uma entrevista, o escritor Tom Farias sabe te escutar. Ele acaba de ser indicado para o prêmio Jabuti, na categoria Biografia, Documentário e Reportagem, pela biografia de Carolina Maria de Jesus, esse enorme incômodo que foi Carolina, como o próprio Tom diz.
Ele conta a história de uma mulher negra, pobre, que teve inúmeras dificuldades em seu caminho, mas que não perdeu sua poesia ou significado. Tom fala da mulher que teve uma repercussão gigantesca, pois apesar de seu português não culto que o Brasil insiste em pontuar quando ela é tema de conversa, apesar da simples condição de gênero, de etnia e condição social, ela foi uma mulher que transmitia a sua verdade, e essa mensagem ganhou o mundo nas palavras de Carolina. E ganhou o Tom também, que é um escritor que luta pelo reconhecimento de nossa história e pelo lugar do negro dentro dela. Espaço este que foi apagado, foi mutilado, escondido e “esbranquiçado” por quem escrevia os nossos livros de história. Como aconteceu com tantos, como por exemplo, com Machado de Assis, existia um processo de “branqueamento” na história, que ficou impresso nos livros e nos foi transmitido como verdade. Só que agora a gente descobre que era mentira, e isso dói, não só porque fomos enganados, mas compreendemos que isso faz parte de algo muito mais triste, que é o anulamento ao direito à identidade das pessoas negras. Metade da população brasileira fica então cortada do nosso passado. E nesse momento da conversa, eu faço uma pausa pra deglutir, porque tem um nó na minha garganta do tamanho do mundo quando escuto o Tom falar do nosso passado.
Ele me conta de todos personagens negros que nossa história cancelou ou escondeu, sinto um misto de vergonha e revolta, e ao mesmo tempo compreendo a raiva de Carolina, e todas as nuances de injustiças que essa mulher sofreu me parecem vivas através da voz dele, que é escritor, claro, mas que para escrever sobre ela, com certeza se apaixonou pela Carolina, assim como eu naquele momento me apaixonei pela pessoa do Tom. Como nos disse Marina Colasanti outro dia na abertura do projeto Autoria, o hábito da leitura é sim uma contaminação, mas eu ouso acrescentar que a presença de um escritor também nos contamina, nos permeia de fascinação pelo processo de escrita.
Ele me cita muitos nomes: José do Patrocínio, André Rebouças, Maria Firmina, Carlos Gomes, Gonçalves Dias, Olavo Bilac e tantas outras pessoas que foram deixadas debaixo do tapete... E depois me olha no fundinho do olho e diz: "Por que essas pessoas não contam?” E não sei nem cabe a mim responder. Fica no vazio pra gente refletir. Como um cometa, vem então Carolina Maria de Jesus, e carrega em si toda essa carga, traduzida para mim numa conversa franca e generosa com Tom. Quero parar o tempo aqui pra curtir devagar, mas eu sou apenas uma curiosa interessada por pessoas, e isso eu não posso fazer, só os livros conseguem produzir essa poderosa magia.
Tom Farias fala de representatividade, do resgate dos personagens negros de nossa história para sabermos quem somos, pois o passado é uma ferramenta de construção de nossa identidade. Talvez a obra de Tom seja tão interessante pois ele traz detalhes da vida de Carolina diferentes, recortes de sua vida que ninguém contou. Tom se interessa pelo que ninguém nos falou antes, e ele consegue trazer à vida uma mulher nascida em 1914, mais atual, efervesceste e viva do que nunca.
Escutando as palavras do Tom, eu entendo essa dor, esse sentimento de exclusão desumano, mesmo quando olho minha própria história e meus antepassados (todos italianos), eu, branca cor de leite desnatado aguado com café, consigo sentir toda a empatia dele. Esse homem na minha frente consegue transmitir empatia ao ouvinte/leitor, pois além de permear em seu texto e palavras sentimentos tão reais e comuns a todos nós, ele fala de pessoas, de gente como eu e você. Essa capacidade de nos colocar nas pupilas de alguém que não somos, é uma das magia da literatura que eu mais amo, um dos encantamentos dos livros que o projeto Autoria apresenta ao público.
Falando tanto de representatividade, acabamos conversando também de outro grande projeto em rede do Sesc SP, o Tecnologias Negras, que traz o negro como protagonista, profissional de tecnologias, descobridor e inventor. Será que hoje seria mais fácil para Carolina levantar sua voz? Tom acha que, apesar das ferramentas que temos, ainda existe muito preconceito e falta de aceitação. Ele exemplifica sua opinião com vários casos nos quais praticamente não existe diversidade, mas mesmo assim, acredita que com a educação vamos poder sim reverter esse quadro. Segundo Tom, precisamos nos enxergar, nos aceitar primeiro para depois aceitarmos o próximo, em suas falhas e grandezas. E esses espaços de fala, de abertura de diálogos, que sejam através de oficinas, vivências, cursos ou contações de histórias, são ferramentas de sensibilização para a sociedade, e são fundamentais para revertermos a cultura do preconceito. Porque todos nós carregamos cicatrizes e camadas desse passado. E colocar-se no lugar do outro, o exercício de ser o outro é fundamental para começarmos esse diálogo.
O papel de Tom Farias hoje é falar de personagens negros, autores e pessoas que a história menosprezou. Porque essa é a forma que o escritor encontrou para resgatar e trazer luz à esse passado escondido, não para fazer um registro histórico, mas para dar elementos de representatividade para os jovens de hoje, dar aquilo que é o sentido de pertencimento a eles; para que possam se sentir parte do todo, como realmente são. Caso contrário, a sociedade continua a negar a pátria para metade da nossa população. E isso não é uma questão de classificação étnica, eu vejo como uma questão humanitária.
Carolina, negra, mulher da favela, Carolina da pobreza. Carolina que tocou até Clarice Lispector, porque ela escrevia a verdade, Carolina que encantou Pablo Neruda. Essa mulher que com sua escrita vendeu livros em todo mundo sem internet, sem instagram, facebook ou twitter. Sim, é impossível conversar com o Tom, e não ficar fascinada por essa mulher imensa e tão real.
Cinco milhões e oitocentos mil escravizados foram recebidos pelo Brasil. Pense nesse numero: Cinco milhões e oitocentos mil. Quando o Tom o mencionou, sua voz até ecoou pela sala, preenchendo cada espaço, cada átomo do vazio em torno a nós. Mas não temos nem sequer um museu em todo Brasil sobre isso. Absolutamente nada. Fica no mesmo vazio a pergunta... onde mora nosso passado, em qual endereço e CEP a gente pode situar a nossa herança? Foram muito e longos anos de pesquisa, de viagens e buscas para Tom Farias resgatar essa Pessoa Carolina Maria de Jesus (com P maiúsculo mesmo), e apenas meia hora foi suficiente para eu levar a voz da ideia deles dois no coração. Pra sempre.
*Paola Brunelli é editora web do Sesc Catanduva