Postado em 31/10/2019
No teatro, enredos sobre diferentes contextos sociais e culturais arrebatam um público cada vez mais jovem. São meninos e meninas os novos espectadores de encenações sobre um mundo que não é necessariamente habitado por dragões, príncipes e princesas. “Sim, a teatralidade contemporânea pode dialogar com a cena para crianças também, as inúmeras possibilidades de afetar e ser afetado pela linguagem teatral que vão além da peça com moral, fábula bem clara e personagens maniqueístas e caricatos”, defende Carlos Canhameiro, ator, diretor e integrante da Cia. De Feitos, na qual dirigiu a peça O Pato, a Morte e a Tulipa, inspirada no livro do alemão Wolf Erlbruch e que reflete de maneira bem-humorada sobre o fim da vida. Neste contexto, o dito “teatro para crianças” torna-se cada vez mais intergeracional, característica reforçada por autores da atualidade. “Queria oferecer uma dramaturgia que entendesse a criança como um ser completo dentro do seu universo. Uma dramaturgia que não fosse mais fácil de ser elaborada do que aquela para os adultos, mas que, ao contrário, olhasse o pequeno espectador como um potencial admirador eterno do teatro”, explica Ângelo Brandini, dramaturgo, fundador e diretor da Cia. Vagalum Tum Tum, autor do livro O Bobo do Rei (Companhia das Letrinhas, 2015), considerado o Melhor Livro de Teatro para Crianças de 2015 pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Afinal, o que define um teatro para crianças? Será que existe uma dramaturgia restrita ao público infantil? Neste Em Pauta, Canhameiro e Brandini expõem argumentos sobre o tema.
Carlos Canhameiro
O barro
toma a forma
que você quiser
você nem sabe
estar fazendo apenas
o que o barro quer
Paulo Leminski
Michel Tournier, autor francês, escreveu em 1982 um artigo intitulado Existe uma Literatura Infantil? e no seu bojo conta como um texto de sua autoria demorou muito tempo para ser publicado como livro infantil. Sexta-feira ou A Vida Selvagem, diz ele, fora rechaçado por todas as editoras à época por não se encaixar nas “leis” impostas por elas. Tournier fala sobre o que se acostumou a chamar de literatura infantil ou livros para crianças, por volta do século 20, e comenta que os textos que hoje podemos chamar clássicos da literatura infantil –
O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry, Alice, de Lewis Carroll, os contos de Perrault, as fábulas de La Fontaine, os contos dos irmãos Grimm, ou os de Hans C. Andersen etc. – não foram na verdade escritos para crianças ou público infantil. Tournier chega a aventar que os autores citados escreveram de modo tão límpido, breve e potente que todas as pessoas podem ler seus livros – inclusive as crianças. O “inclusive as crianças” tem para ele uma importância capital a ponto de desejar para sua escrita tal característica: que as crianças a possam ler.
Dentro do artigo pesco ainda uma citação de Montaigne, indicada por Tournier, em que “ensinar uma criança não é encher um vazio e sim acender um fogo”. E o que haveria entre a literatura infantil e os questionamentos de Michel Tournier com o teatro infantil? Pergunto-me: o que não haveria?! O que estamos criando e colocando em cena para o público infantil? Quais temáticas e formas cênicas têm nos interessado e quanto pais, mães, professores, professoras, escolas, agentes de cultura e educação têm nos pautado?
Escrevo como artista de teatro, por isso indico uma pequena separação na frase anterior que urge melhor detalhá-la. Não penso aqui em campos opostos, apenas em grupos distintos que se cruzam diversas vezes. Aos criadores de peças para público infantil, pergunto: o que nos interessa/instiga colocar em cena, e de quais formas estamos dispostos a lançar mão ou quais formas estamos dispostos a inventar para isso? E quem está nos pautando nessas criações? Aos pais, mães, educadores etc., pergunto: o que esperamos do teatro feito para as crianças?
Eu, o autor
Opino aqui de modo bastante superficial, como alguém que cria peças de teatro para público infantil há dez anos (e para público adulto há mais de 20), é espectador de teatro (infantil e adulto) há muito tempo e hoje ainda é pai de duas crianças (que sempre me acompanham no teatro, seja apresentando ou assistindo). Sou leitor assíduo de livros para crianças, e todas as peças de teatro (infantil) que criei partiram de livros infantis. O que me leva a escrever esse texto é a mesma inquietação de Tournier: existe um teatro infantil?
Claro que existe. A pergunta pode ser respondida de maneira límpida, como menciona o autor francês sobre as perguntas que recebe das crianças quando as encontra em bate-papos. O que essa existência implica? O que esperamos ou até mesmo o que queremos (tirânicos que possamos nos tornar como pais, mães, educadores etc.) que as crianças experimentem ao assistir uma peça de teatro infantil?
O que observo é que há maior tendência de considerar a criança como um “saco vazio” à espera de receber lições morais, comportamentais, pedagógicas etc., do que acender nela qualquer fogo que possa se alastrar. Diria mesmo que há cenas que estão mais propensas a agirem como bombeiros do que como incendiárias. Temas para agradar pais e mães, professores e professoras, jornalistas, críticos etc. A peça é “bem-sucedida” porque mostra a importância de escovar os dentes, de não brigar com o irmão, de denunciar um assédio, valorizar o diferente (diferente por quê?), que reproduz o personagem da história em quadrinho, o filme de animação, e por aí vai, numa infinidade de exemplos. O que pode e o que não pode ser feito? O que pode e o que não pode ser visto?
Laura Erber, escritora e professora, diz que algo semelhante à literatura, como escreveu Tournier, aconteceu nos desenhos animados na primeira metade do século passado. Eles não eram destinados às crianças como público específico: “Quando esse recorte ocorreu nos anos 1950 de forma bastante agressiva nos Estados Unidos, a linguagem da animação se moralizou e passou a evitar uma série de gestos e ações em nome da moral puritana”. E vamos estratificando as criações artísticas ao gosto do freguês. Desenhos para crianças até três anos. Teatro para bebês. Músicas para futuros gênios. A experiência artística condicionada a um resultado visível e palpável. Crianças consumidoras.
Público infantil
O que resta da criança? O que nos interessa ao criar para o público infantil? O que esperamos quando levamos as crianças para viver experiências artísticas? Serão elas sempre vítimas de discursos moralizantes? Ou iscas para o consumo sufocante? Pensamos nas crianças como sacos vazios que precisam parar em pé dentro da normatividade contemporânea ou como incêndios em potencial? Há ainda esperança de que a experiência artística possa proporcionar resultados imaginários, inacessíveis e inúteis (ao gosto da arte e outros inutensílios de Paulo Leminski) para as crianças? A pergunta é feita aos dois grupos: nós, artistas, e nós, pais, mães, educadores, educadoras, agentes políticos, curadores e curadoras etc.
Aos artistas de teatro, que voltam suas criações para as crianças, quais aspectos do teatro podem nos levar além da dobradinha moral-pedagógica? O País das Maravilhas é a cena ou estamos apenas dispostos a dar destaque às fronteiras, aos muros, ao condicionamento moral que às vezes nos empurram as editoras, os patrocinadores, os programadores e curadores de teatro (ou nós mesmos em uma autocensura sufocante)?
Como pai, criador e espectador (leitor), defendo a liberdade artística, sua subjetividade latente e o resgate da abstração e do signo aberto para a cena voltada ao público infantil. Sim, a teatralidade contemporânea pode dialogar com a cena para crianças também, as inúmeras possibilidades de afetar e ser afetado pela linguagem teatral que vão além da peça com moral, fábula bem clara e personagens maniqueístas e caricatos.
Aconselho, inclusive, olhar para a literatura infantil (a contragosto de Tournier) das diversas autoras e autores nacionais e estrangeiros para ampliar o repertório formal e as possibilidades estéticas para a feitura da cena. Escrever para crianças? Encenar para crianças? Só o que ainda não foi imaginado, sem perder de vista os direitos do espectador criança!
Carlos Canhameiro é ator, diretor, dramaturgo e pai. Integrante da Cia. De Feitos, fundada em 2009, onde criou as peças para o público infantil: O Pato, a Morte e a Tulipa; Selma; Achados & Perdidos; Inimigos, e está em processo de ensaio da nova obra, A Grande Questão, com estreia prevista para o primeiro semestre de 2020.
Ângelo Brandini
Pensar sobre meu envolvimento com a dramaturgia para crianças me leva a fazer uma retrospectiva da minha carreira no teatro e olhar para o que me levou a trilhar um caminho de criação nesta forma de narrativa que é a base de uma história a ser contada por atores sobre um palco. Entrei no teatro pela porta da atuação e, como ator, tive contato com as obras dos grandes dramaturgos do teatro ocidental, desde os clássicos até os contemporâneos. Foram raras as incursões desses autores pela criação de textos dirigidos ao público infantil e jovem, e, quando o fizeram, foi de forma a privilegiar o caráter didático de forma explícita.
Há de se considerar que o conceito de criança como entendemos hoje começou a ser moldado, e muito lentamente, entre o século 17 e o século 19. Até então, a criança era considerada um adulto em miniatura e estava longe de receber a atenção que se dedica a ela nos dias de hoje. Portanto, é perfeitamente compreensível que o teatro de Shakespeare, por exemplo, não fizesse distinção etária entre seu público, que era composto por pessoas de todas as idades e classes.
No Brasil, o teatro para crianças surgiu em meados do século 20 e envolveu nomes importantes como Maria Clara Machado, Paschoal Carlos Magno, Tatiana Belinky, Henriette Morinaux, Heitor
Villa-Lobos, entre outros. Como se vê pela “ficha técnica”, o futuro do teatro para crianças parecia bastante promissor. No entanto, o que se deu na sequência, principalmente a partir da segunda metade dos anos 1960, foi um retrocesso conceitual causado por oportunismos comerciais e por equívocos no entendimento da função do teatro e do ser criança.
Vista como alguém que ainda não é pleno, um ser não inteiro, a criança foi tida como incapaz de compreender temas que se julgam exclusivos ao mundo dos adultos. O teatro para crianças, o tal “teatro infantil”, passou a ter uma conotação não só didática como moralizante. O resultado é uma dramaturgia inconsistente, rasa, que subestima a inteligência da criança, que perde a oportunidade de tratar as belezas e as feiuras da vida pela poesia e imaginação.
Em linhas gerais, era este o quadro quando comecei a frequentar o teatro para crianças, levado pela paternidade e minha relação com o teatro. Comecei a levar meus filhos para assistirem à programação do teatro para crianças na cidade de São Paulo e, com poucas exceções, como as criações de Ilo Krugli e Vladimir Capella, deparei-me
com espetáculos muito mal feitos, com péssimas dramaturgias, cenários e figurinos sem nenhum cuidado estético, e uma plateia dispersa, repleta de crianças correndo pelo teatro e de pais completamente alheios ao que se passava no palco.
Para uma parte dos artistas, parecia uma chance de ganhar um dinheirinho fácil; para outra, de iniciantes, parecia uma breve passagem antes de chegar ao teatro adulto, colocado em um patamar acima na hierarquia dramatúrgica. A criança era tratada como um meio e, para incluí-la de alguma forma, tinha a tal da “moral da história”.
Outras referências
Embora essas minhas primeiras experiências como pai espectador tenham ocorrido há três décadas, ainda vejo fortes resquícios desse jeito de fazer teatro para crianças, e cabe àqueles que escolhem aonde levá-las prestar maior atenção a essas escolhas. Se usarmos para o teatro os mesmos critérios que usamos na escolha da alimentação para nossas crianças, teremos mais chances de proporcionar uma nutrição saudável da imaginação pela obra de arte.
Minha escolha em trilhar o caminho da dramaturgia para crianças vem dessa experiência como espectador. Queria oferecer uma dramaturgia que entendesse a criança como um ser completo dentro do seu universo. Uma dramaturgia que não fosse mais fácil de ser elaborada do que aquela para os adultos, mas que, ao contrário, olhasse o pequeno espectador como um potencial admirador eterno do teatro. Ninguém se torna um assíduo espectador ou praticante se as primeiras experiências não forem boas.
Como forma de radicalizar esse olhar para a dramaturgia para crianças, usei as referências que tinha e que, no meu entender, eram o melhor da dramaturgia ocidental. Assim, corri para os clássicos e encontrei em Shakespeare a fonte do que seria o início do meu trabalho como dramaturgo. Escolhi recontar para as crianças as tragédias e os dramas de Shakespeare, já que esse autor e poeta trabalha com a dimensão do humano em toda sua amplitude. Aproveitei minha formação e experiência também como palhaço para rever a obra de Shakespeare sob a ótica desse arquétipo.
O palhaço e a criança olham o mundo da mesma forma: não são prisioneiros da lógica e da razão, por isso a comunicação entre eles é direta e profícua. Ao recontar as histórias de Shakespeare através do olhar do palhaço, é possível tratar com leveza temas considerados tabus para as crianças, tais como poder, cobiça, inveja, vingança, morte etc. O palhaço proporciona também a interação com os adultos que acompanham as crianças; assim, surge uma dramaturgia que dialoga com todos, e o conceito de criança é ampliado para uma faixa etária de zero a 105 anos.
Sem preconceito
Houve uma grande evolução no teatro para crianças nos últimos 15 anos, embora ainda persistam os equívocos de pensar que, quando se dirige a pequenos espectadores, “tudo bem” fazer um cenário de qualquer jeito, “tudo bem” tocar uma musiquinha no playback. Procuro fazer uma dramaturgia que vá no sentido contrário e que tenha o mesmo rigor do teatro dito adulto. Mas ainda há muito trabalho a ser feito no sentido de valorizar o teatro para crianças.
Ao olharem o mundo com os olhos da curiosidade de quem está vendo tudo pela primeira vez, as crianças, assim como os bons palhaços, nos ensinam o caminho da leveza e da criatividade para atravessar as questões que se colocam na nossa relação com o mundo.
Ângelo Brandini é formado pela Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo, fundador e diretor da Cia. Vagalum Tum Tum, ganhou o Prêmio São Paulo de Incentivo ao Teatro Infantil e Jovem 2017 pelo espetáculo Henriques; é autor do livro O Bobo do Rei (Companhia das Letrinhas, 2015), considerado o Melhor Livro de Teatro para Crianças de 2015, pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ).