Postado em 28/11/2019
Em 1947, o samba-canção é um dos ritmos em alta no Brasil: Francisco Alves corta os pulsos com “Nervos de aço” (Lupicínio Rodrigues), Dalva de Oliveira acerta as contas com “Segredo” (Herivelto Martins e Marino Pinto) e Dorival Caymmi queixa-se com a sua “Marina”. Radicado desde a virada da década de 1930 no Rio de Janeiro, então capital administrativa e cultural do país, o sanfoneiro pernambucano Luiz Gonzaga (1912-1989) se distancia desse divã sentimental ao revelar seu baião-denúncia “Asa branca”. A música radiografa a seca que ainda aflige vários estados do Nordeste.
“Asa branca” é uma das crias de Gonzagão com aquele que considera seu principal parceiro, o advogado cearense Humberto Teixeira (1915-1979). A dupla assina outros sucessos, como “Baião”, “Assum preto”, “Respeita Januário”, “Baião de dois”, “Qui nem jiló” e “Juazeiro”. Gravada com a formação instrumental forjada e perpetuada por Luiz Gonzaga (sanfona, zabumba e triângulo), “Asa branca” chega às praças em março de 1947; do outro lado do disco de 78 rotações, mais um clássico da parceria: “Paraíba”.
Mais conhecida como título de música, a asa branca, pombão ou pomba-carijó é uma ave típica do Brasil (Patagioenas picazuro), comum em regiões arborizadas, de cerrado e de caatinga. Assim como o protagonista da música, ela não suporta a quentura e a escassez de água e se manda.
Com desfecho de folhetim, para não terminar em desgraça, a composição prega a esperança de um breve retorno à terra natal, quando a “chuva cair de novo / pra mim voltar pro meu sertão”, tema que motiva outro êxito gonzaguiano, “A volta de asa branca”, lançado três anos depois, em 1950, agora fruto da parceria com Zé Dantas (1921-1962).
Em uma livre analogia, pode-se dizer que a trajetória do Rei do Baião fez dele uma espécie de asa branca. Do auge vivido no Rio de Janeiro entre meados dos anos 1940 e 1950, experimenta na década seguinte um ostracismo alimentado pela chegada rock, dos festivais de música popular e do iê-iê-iê, que embalam novos públicos e negócios. Mas é o interesse de antigos admiradores, como Geraldo Vandré, Caetano Veloso e Gilberto Gil, que rega o caminho de retorno do sanfoneiro. Até o apresentador e agitador Carlos Imperial (1935-1992) entra na história ao inventar durante seu programa Os Brotos no 13, da TV Rio, em 1968, que os Beatles haviam acabado de gravar “Asa branca”.
“Aí todo mundo correu em cima. Os Beatles vão gravar Luiz Gonzaga. Chama pra programa, paga cachê e não sei o quê. Gravei programas, ganhei dinheiro e o Carlos Imperial na maior gozação do mundo. Aí fomos comemorar o negócio em Guarapari”, afirma Luiz Gonzaga em entrevista do Pasquim (1971).
Na playlist Mais do mesmo, vinte versões deste clássico nacional se esparramam em diferentes e inusitados sotaques, ritmos, interpretações e arranjos. Tem “White wings”, na leitura despudorada de Raul Seixas (1945-1989) e amostras instrumentais com o cavaquinista Waldir Azevedo e o pianista Gilson Peranzzetta; a violonista Rosinha de Valença injeta veneno e suingue nesse drama de retirantes, assim como o pianista Dom Salvador pesa no baixo em clima de filmes da Blaxpoitation.
Ainda tem o galope de Zé Ramalho, o aroma roceiro do Trio Parada Dura e Chitãozinho & Xororó, o modo exportação com artistas como o tocador de kora Ballaké Sissoko, o ex-vocalista do Talking Heads David Byrne e os portugueses Maria João e Mário Laginha em uma desconstrução ousada e vitoriosa. Claro, a faixa de abertura é a original, voz e sanfona de Luiz Gonzaga.
Por fim, um raro registro da TV francesa com Caetano Veloso e sua asa branca tropicalista:
Você pode escolher onde escutar: a mesma playlist está disponível no Deezer e no Spotify.
Uma ótima audição!