Postado em 07/01/2020
MORADA
Alva casa no alto da montanha!
A tua paz de refúgio ancoradouro
põe tantas tréguas neste olhar errante
que mesmo de tão longe
(alvissareira)
me tornas teu precoce habitante.
Em ti possuo mesa, assento, cama
pouso perene, aconchego,
fundamento.
Tens escada e o homem que me afaga,
porão, sótão, raiz – copa de árvores.
És tu a colcha dos retalhos que cerzi
a preparar-me (na terra) o agasalho
– e (já depois) o berço
feito a ti.
SOLIDÃO
Íngreme paragem
incrustada no coração da noite.
Olhos pardos
buscando a lua
(que não alcança
e que canta nos fios elétricos) –
nota sentada em solidez de pedra
(integral, instantânea),
vertigem da mais pura ressonância –
maledicência desta hora
amarela.
CONSTATAÇÃO
Ah, como é triste
meu amor
deixar-te
e deitar sozinha por cima desta
solidão.
Fico a combater em mim
os teus desejos soltos
pelas ruas
por onde segues.
EIXO
A mulher e o homem são
como o céu espelhando a terra,
e juntos
(condensados no horizonte)
deixam que os relâmpagos e cometas
sulquem suas telas.
Um é para o outro
o que o pássaro é para o voo
– o vento para o deserto
o preço para a moeda
a água para o monjolo.
Que somos apenas redemoinhos
pois que
girando em torno de um centro oco
– assim nos elevamos.
FUNÇÃO
Antes retirar deste momento
o que ele não mostra
mas retém,
que cantar um pedaço da paisagem
(que se avista)
com seu tanto de árvores e de céu.
Exposta fica a tarde na tela sempre
igual
(farol imperioso o do sol!)
encaixilhada
(à esquerda)
por ciprestes,
premida (ao fundo) por edifícios.
Ofício difícil o seu:
o de suster-se sozinha
(por entre orifícios e interditos)
– muda testemunha
da esquecida mecânica sideral.
MIGALHAS
Tudo o que me habita
veio de ti –
das tuas veias inquietas
que borbulham à tona do corpo
do teu sorriso que dá forças
da tua voz entrincheirada
que nada revela.
Estou só
(agora)
e ando revivescendo em mim
o que me ficou de ti:
tua maciez
teu desespero
teu abandono
com os cabelos despencando em cima.
MORTE
A pedra pesa
e me remete para aquela
que arde
no centro da terra –
grave, cava – imantada.
O fruto cai,
eu mesma caio.
Planeta é este o nosso
onde tudo se orienta
pra dentro
pra baixo
para a pátria astral.
PERGUNTA
O que da tristeza retenho?
Em cinza encontro
a imagem concêntrica que o sol
reservou sobre estendidas águas.
Que é dos meus pastos dourados
do linho com que o choupo me
guarnecia?
Oh lua generosa e antiga!
Vem esgueirar os esconderijos
e desvelar-me
em que espinheiro
ainda se tece o ninho!
ENCONTRO
Debaixo do signo com que
mudas o mundo,
estou (pasma)
no aguardo de que
tuas mãos
comecem milagres.
Deponho-me aqui
(na tua direção)
evoco os ruídos
e os gestos díspares do encontro.
Ah, essa simetria que rompe
[movimentos,
meu suor, minha solitária luta,
meu grito.
Ah, grande é o silêncio
ao qual pertencemos
sem ardis, sem simulação.
Ah, esperado abandono
onde perco teus gestos
e invento os que querem ser meus!
DIURNO
As palavras construídas
derrubam
a nitidez das manhãs:
os passos e os gestos
ganham destruição.
Veiculadas como partes aflitas
constroem a dissolução
ornamentam-se de falsas faces e
escorregadias
nos dão (enfim) à boca
o gosto amargo com que se acorda
do sono.
SUBTRAÇÃO
Meu canto hoje se franziu
e fez-se espasmo de horas pobres.
Partiu sobressaltado
(corrido)
escapando das mãos.
Cumpro em mim a missão de saber:
ouço,
comovo-me
e escrevo aqui rapidamente
apenas o que consigo reter.
INEXORÁVEL
Os relógios da noite embalam
os pássaros ensonados
para os voos matinais
– em demanda de outro tempo.
Os grilos pedintes
saltitam (mas não evitam)
os momentos difíceis.
Malgrado as asas,
morcegos ainda se tornam
antigos camundongos –
com carinho
com ternura nas unhas.
Tudo se rejubila
com o ânimo reinante
mas as horas correm para o seu fim
impertinentes –
com a mesma avidez.
Num átimo a chuva cai:
é um instante.
E só por fora explica
o eterno fluir do mundo.