Postado em 31/01/2020
"Quando o homem descobre o fogo, ele muda a história da humanidade. Mais à frente, quando cria o motor a vapor, muda-se a história da humanidade. E agora, com essa configuração da economia digital, de novo, a humanidade se transforma.” Partindo desse pensamento, a professora emérita do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Eda Tassara, graduada em Física, mestre, doutora e livre-docente em Psicologia pela Universidade de São Paulo, reflete sobre os efeitos da globalização e da tecnologia na sociedade contemporânea. Pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, onde coordena o Grupo de Estudos em Política Ambiental, publicou obras que jogam luz sobre diferentes temáticas da Psicologia Social, da Crítica da Ciência e da Cultura, entre outras áreas.
Nesta Entrevista, Eda Tassara questiona os rumos da sociedade diante das mudanças econômicas, culturais e sociais do século 21 até novos contornos a serem desenhados em 2020 pelas novas gerações. Um cenário composto por aparatos tecnológicos, regimes de algoritmos e disseminação de fake news. Afinal, quais os efeitos dessas peças sobre o tabuleiro do mundo? “Diria que nós estamos assistindo à crise de uma etapa no processo civilizacional do Ocidente, que está em confronto com a globalização como ela se dá, com o poder associado ao domínio do conhecimento e com as inconsistências lógicas entre o que se está discutindo, bem como a impossibilidade de reformas onde o próprio poder está fragmentado. Ora, nós estamos em um momento em que não dá mais para consertar pedaços”, argumenta.
Que reflexão fazer a respeito da velocidade das mudanças no cenário político e econômico mundial nas últimas décadas, a exemplo da saída do Reino Unido da União Europeia, conhecida como Brexit?
Se formos olhar a produção teórica do fim dos anos 1990 e de todos os anos de 2000, ela já apresentava conceitos que poderiam estar apontando para grandes mudanças. Por exemplo, Octavio Ianni [sociólogo brasileiro, 1926-2004] desenvolveu o conceito de mundialização dizendo que a globalização, ao encontrar as realidades locais, iria produzir diferentes formas de interpretação de seu encontro com esta globalização. Naturalmente, ele não estava considerando o problema do poder. Por quê? Porque a globalização pode ser analisada como uma máquina lógica. O que se expandiu não foi a cultura erudita ocidental. O que se expandiu foi uma forma de gerar riquezas a partir do uso do conhecimento produzido sob tal ordem cultural. O processo de expansão da globalização está comprometido com o aumento do lucro e para isso precisa uniformizar os desejos e diluir as diferenças culturais.
E qual o resultado dessa expansão?
A expansão visa garantir maior controle de domínio. Para tal, propaga uma forma de vida, um padrão de vida. De fato, como visualizou Octavio Ianni, novas respostas acontecem. Por outro lado, o Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em contraposição ao Fórum Econômico Mundial de Davos, também apontava para uma esperança do que se chamou de altermundialismos, que seriam formas de mundialização menos opressivas e mais respeitadoras das formas locais. Quer dizer, supunha-se que, se houvesse um encontro com não imposição de poder, poderia haver uma adaptação, mesmo que com a ocorrência de algumas lutas localizadas.
Ou seja, essa forma de globalização teria menor impacto negativo sobre as culturas locais.
Sim, só que nessa análise estamos ignorando duas coisas. Primeiro, esse sistema se expande e o poder que vai junto com ele é o poder da incorporação instituída, com o sequestro de todo conhecimento existente produzido pela humanidade pelo sistema lógico da globalização, ocorrido ao término da Segunda Guerra Mundial. Então, ao propor altermundialismos, que era o que se apregoava no Fórum Social Mundial, oferecia-se a esperança de menos domínio, de mais liberdade e maior participação. Em 2017, em uma palestra que apresentei em São Carlos, o professor Luiz Nunes de Oliveira, da USP, estava presente. Ao ser apresentada a proposta dos altermundialismos, perguntou: “O Estado Islâmico não seria uma forma de altermundialismo?”. A pergunta me assustou porque nunca eu havia pensado nisso. E é sim, uma forma de altermundialismo, só que ela se expressou no sentido antagônico ao que se pensava ao conjecturá-la. O que se pensava era que essa ideia poderia reduzir as tensões. Mas, de fato, o que você pode falar hoje é que Octavio Ianni estava certo. A mundialização, conforme o previsto, ocorreu e ocorre. Em função dessa análise, você não pode dizer que o que está acontecendo no Congo é o mesmo que está acontecendo na Inglaterra ou que está acontecendo no Brasil.
Por quê?
Estamos analisando do ponto de vista do Ocidente, geopoliticamente falando. O que acontece do outro lado [no Oriente] é por nós interpretado. Tenho a impressão de que vamos ter que mudar as formas de estruturação do Estado no dito mundo Ocidental. Diria que nós estamos assistindo à crise de uma etapa no processo civilizacional do Ocidente, que está em confronto com a máquina da globalização, como ela se dá, com o poder associado a ela pelo domínio do conhecimento e com as inconsistências lógicas entre o que se está discutindo e as visões de mundos possíveis incompatíveis, o que gera a impossibilidade de reformas onde o próprio poder está fragmentado. Ora, nós estamos em um momento em que não dá mais para consertar pedaços. É isso que está acontecendo no Reino Unido.
Fala-se cada vez mais sobre uma “guerra híbrida”, que seria uma estratégia que mescla táticas de guerra política, guerra convencional e ciberguerra com outros métodos de influência, como as fake news.
Não há um conceito de guerra híbrida, o que há são ideias. Está se procurando formular algo de novo que tenha a ver com a questão apontada acima, mas é uma reação de centros do poder instituído dentro da ordem global, na busca de outras estratégias de disrupção dos mundialismos. Então, elas vão se apoiar na mundialização para gerar confrontos e para isso elas se alimentam de todo o conhecimento já produzido na ordem erudita. Porque o conhecimento das ciências hardware já foi sequestrado pelo sistema científico tecnológico, fato já naturalizado na vida social. Ninguém reflete sobre o que seria uma rede eletrônica, apenas a usa. Os que desenvolvem algoritmos, também não pensam sobre o que seria um algoritmo, eles apenas operam os elementos que o constituem de forma naturalizada. Só que esse conhecimento está na mão de um sistema lógico e esse sistema o usa na direção da reprodução do seu poder de domínio. Veja o que Maquiavel dizia: “A função do poder é a sua própria reprodução”. Ele fazia a análise de um ponto de vista político. Estamos agora falando do ponto de vista lógico. A lógica que subjaz à máquina da globalização. Essa máquina foi estruturada para gerar uma forma de domínio, de produção de riquezas e de suas consequências sobre a propagação do seu poder. Ela não vai poder mudar por ela mesma. Impossível. Para tal, tem de haver a ação de forças externas a ela.
Quais os efeitos dessa guerra híbrida?
Acho que a guerra híbrida é uma estratégia de manipulação das multidões a partir do uso de conhecimentos nas áreas das ciências somadas a operações de big datas. Então, você pode de um momento para outro operar alterações nos referendos, nas decisões. Você pode manipular. A impressão que tenho é que, olhando a história à luz das tecnologias, todas elas sempre marcaram a história. Quando o homem descobre o fogo, muda a história da humanidade. Mais à frente, quando o homem cria o motor a vapor, muda-se a história da humanidade. E agora, com essa configuração da economia digital, de novo, a humanidade se transforma.
Como isso ocorre?
Agora com o alargamento dos partícipes do poder por causa da disseminação da informação, você tem duas coisas. Por um lado, você domina. Por outro, você não consegue segurar esse domínio. Por isso, acho que estamos num momento de crise profunda. E o que está em crise é o domínio sequestrado do conhecimento. Só que as pessoas não compreendem porque de fato elas não sabem o que é o conhecimento, por exemplo o que constitui uma rede. Comecei a pensar, há algum tempo, sobre a questão da manipulação eleitoral. Não apenas de forma a atuar na decisão do sujeito, porque uma coisa é você alterar a decisão do sujeito e outra coisa é alterar o resultado quantitativo. Há um medo generalizado de se fazer essa reflexão. Mas é preciso pensar a respeito. Pensando a respeito, você poderá concluir que sim, isso é possível, ou não, isso não é possível, porque, se você tem o domínio sobre a multidão, você tem o domínio sobre a decisão.
Em meados dos anos 1980, falava-se muito que a globalização formaria concorrência entre Ocidente e Oriente. No entanto, hoje, esse concorrente é um robô.
O robô só não é neutro porque está dentro da máquina lógica da globalização. E ela já é um diferencial de poder porque ela defende uma forma de relação de trabalho, uma forma de organização da riqueza, do capital financeiro, tudo isso. Então, os robôs, há quem suponha, poderiam se tornar autônomos. Eu não acredito nisso. Eles seriam autônomos dentro das próprias regras que os estruturam. O que você precisa questionar é o domínio do conhecimento por um sistema de poder.
A manifestação de diferentes vozes e ideologias nas redes sociais caracteriza uma democracia direta?
Sobre a democracia direta, a Lina Bo Bardi [arquiteta ítalo-brasileira, 1914-1992] dizia que, para que ela fosse viável, seria necessário deixar de lado a visão de que seria produzida por ação de “sacrifícios de vanguardas”. Ou seja, ela teria que envolver todas as pessoas. Envolver as pessoas significa encontrar meios para ouvi-las. Não posso dizer que a rede social é ruim, referindo-me às redes tecnoeletrônicas que não vou chamar de redes sociais. Elas foram um grande avanço no sentido do estabelecimento de uma dinâmica de relações entre as pessoas e de aprimoramento da comunicação. O problema é que, quando essas redes veiculam conteúdos de diferentes naturezas, elas podem ser utilizadas como armas no sentido do domínio e do não esclarecimento.
Nesse caso, a atual tensão nas sociedades deve-se às redes sociais?
Não. Esse é o mesmo caso do robô, de que falei anteriormente. A rede social é um instrumento. Ela é uma imagem das lutas dos interesses. Como ela massificou e descentralizou a informação, o que acontece é que nela há núcleos que têm grandes dados e sabem como as pessoas pensam, como as pessoas gastam, o que elas querem etc. Dessa forma, você pode operar instrumentos que manipulam as informações. Porque a verdade e a informação são duas coisas diferentes. Existe até um paradoxo conhecido como Paradoxo de Carnap [filósofo alemão, 1891-1970], mas que é atribuído a Bar-Hillel-Carnap, que conclui: quanto maior o número de informações, menor a probabilidade de que elas sejam verdadeiras. Isso se apresenta como um paradoxo, mas, de fato, não é.
O que essa nova geração de jovens na faixa dos 20 anos pode experimentar no futuro diante de todas essas mudanças?
Eu acho que os jovens já estão rejeitando algumas implicações dessa forma de vida sobre seu cotidiano. Obviamente, existem aqueles que se exacerbam com essa forma em detrimento de um compromisso com um valor de distribuição equitativa de seus privilégios. Aí vem a tensão. Muitos jovens estão saindo, por exemplo, do ideal da “casa própria” e passando a estruturar moradias em habitações coletivas. Tenho quatro netos e somente uma, que mora no México, tem habilitação de motorista, os outros não querem. Eles preferem andar de bicicleta, pegar ônibus e metrô. É quase uma rejeição, talvez uma rejeição pela impossibilidade de aquisição porque eles não vão poder corresponder ao que os pais fizeram ou obtiveram. Eles não têm condições e para terem precisam optar por outro modelo.
Essas contradições sociais também são responsáveis por um aumento de casos de ansiedade, depressão e outros quadros de saúde?
Acho que esse quadro de saúde é uma consequência da desestruturação. As pessoas contingentemente são atingidas, por isso, elas apresentam fragilidades e a depressão é comum em um momento anômico [que resulta da desorganização]. No meu tempo de juventude, não se questionava a autoridade na escola, havia uma relação estabelecida na sociedade entre caminhos e possibilidades. No momento anômico, isso se rompe por causa do caos gerado pela desorganização. Rompendo-se, a pessoa se sente um fracasso porque sua identidade fica frágil. Ela quer uma coisa e talvez não possa conseguir só por ela, mas ela atribui a si o fracasso ou o sucesso. Isso acontece quando você não tem a capacidade de lucidez, de fazer uma análise esclarecida. Ainda que essa lucidez possa te fazer sofrer em um primeiro momento, ela vai te libertar. Mas é rara a lucidez porque ela depende de um controle emocional, cultural etc. Ela é um poder. E se você não o desenvolve, o resultado levará a várias reações negativas, como a tristeza e o desejo de morte. Uma morte social.
Então, a tecnologia pode ser usada para algo positivo ou negativo, mas ela nunca foi inocente.
Sim. Por isso que, quando falo de guerras híbridas e do uso maligno do conhecimento, o que caracteriza a guerra híbrida não é o uso da tecnologia, mas a intenção do uso. Se a intenção não for transparente, ela é uma intenção de domínio à qual você não pode reagir. Tem quem possa, mas são raros os que conseguem, porque isso demanda uma grande lucidez e cultura emancipada.
Mesmo assim, há quem acredite em fake news sem sequer questioná-las.
Algumas pessoas acreditam em fake news porque elas geram algum tipo de tranquilidade. A pessoa que escuta pode ser um crédulo ou um sujeito que sente conforto com aquela informação porque ela não perturba a ordem antiga.
Hoje você se considera pessimista ou otimista quanto ao futuro da humanidade?
Eu sou humanista. Portanto, acredito que as forças do humanismo vão ter que ganhar. Claro que não vão ganhar para sempre, mas em alguns momentos. É algo gradativo. Não se trata de “é tudo ou nada”, ou “eu ganhei e você perdeu”. A grande luta hoje é pela transparência. Para que as pessoas tenham espaço onde possam emitir o que pensam. E para isso deve haver uma forma de convívio adequada que garanta esse espaço.