Postado em 31/01/2020
Na escola, Nayara Peroni gostava tanto de jogar futebol que aprendeu a ler, aos sete anos, só para entender a escalação do Corinthians no jornal. Por causa dessa paixão, quando criança, sofreu violência de colegas e não teve apoio de professores. Mas nada disso a impediu. Desde 2017, ela é uma das sócias-fundadoras do projeto JogaAmiga, que produz notícias e artigos sobre o futebol feminino, além de promover aulas e treinos sem fins lucrativos para novatas e veteranas na capital, Grande São Paulo e interior do estado, bem como em Belém (PA). Nayara junta-se a outras protagonistas que enfrentam obstáculos e colhem vitórias dentro e fora de campo.
Isso porque o futebol feminino ainda é visto com preconceito. “Há dificuldade para as mulheres que praticam futebol em quadras públicas da cidade de São Paulo. Um atrito desnecessário pelo qual eu já passei, porque falta uma gerência da utilização de espaços públicos para que as mulheres também possam jogar futebol sem problemas”, observa Nayara.
Uma das raízes desse preconceito vem do Estado Novo (1937-1945), com o decreto nº 3.199, de 1941, que proibia as brasileiras de jogar futebol e outras práticas esportivas então consideradas incompatíveis com os atributos de mãe e de esposa. O decreto perdurou até 1979, ano em que foi revogado.
Ou seja, por quase quatro décadas, não eram permitidas mulheres na grande área. Até que em 1996, com a estreia da Seleção Brasileira Feminina de Futebol nos gramados dos Jogos Olímpicos de Atlanta, veio a conquista da primeira medalha olímpica na modalidade. Hoje, a jogadora Marta Silva, da seleção brasileira, é a maior artilheira das copas tanto nas femininas quanto nas masculinas, e detém o recorde em premiações de melhor jogadora do mundo.
Jogadoras, treinadoras, comentaristas, técnicas e outras profissões se multiplicam com o crescimento do futebol feminino. “Nos últimos anos, podemos notar uma maior visibilidade e algumas mudanças no regulamento de instituições, obrigando as equipes masculinas a terem uma equipe feminina para disputarem competições”, destaca a educadora Jéssica Caroline da Costa, responsável pelo projeto Olé, no Sesc Belenzinho (leia Na grande área). “Outros fatores ajudaram no desenvolvimento das competições nacionais, gerando investimento de grandes clubes e dando espaço para profissionais mulheres ganharem evidência.”
Para atender a essa demanda de praticantes, o projeto JogaAmiga criou, no ano passado, o Mapa do Futebol Feminino, um guia que pretende informar times e divulgar locais para prática e integração do futebol feminino em todas as regiões do país. “O mapa é feito de forma colaborativa, as pessoas se cadastram gratuitamente, mas as sugestões passam pelo nosso filtro e checagem”, conta Nayara. Essa ferramenta já contabilizou, aproximadamente, 200 times amadores em todo o país – de campo, futsal, soçaite e areia, uma ação imprescindível para que essa prática esportiva não esmoreça. “Principalmente no caso das crianças. Elas acabam crescendo acreditando que futebol não é brincadeira da qual meninas possam participar. Precisamos quebrar essa visão encorajando-as”, complementa Jéssica.
Maria adorava futebol, mas sua mãe torcia o nariz para a filha batendo bola. Iara teve que se vestir de menino para jogar no bairro, enquanto Flor tinha que se esconder da família para assistir aos jogos do time dirigido pelo seu pai. O enredo do espetáculo Vocês Vão Ter Que Me Engolir, que a Cia. do Mar apresentou no Sesc Itaquera no mês passado e agora está em cartaz no Sesc Santo Amaro, ainda se assemelha à realidade de milhares de marias, iaras e flores no Brasil. Mesmo assim, cada vez mais ações e projetos visam estimular o protagonismo de meninas e mulheres no futebol.
“É perceptível o aumento significativo de mulheres participando do futebol em seus diversos âmbitos, seja profissional – como atletas, técnicas, preparadoras físicas, gestoras, jornalistas, repórteres, entre outras carreiras –, seja amador, como esportistas nas diferentes áreas ou simples praticantes da modalidade”, observa Ana Paula Feitosa, assistente técnica da Gerência de Desenvolvimento Físico-Esportivo do Sesc São Paulo.
Na unidade Belenzinho, o projeto Olé foi criado em 2019 para disseminar e debater a prática do futsal e do futebol entre meninas e mulheres de diferentes idades e experiências com as modalidades. “Além de treinos e jogos, o Olé busca oferecer espaços de discussão relacionada a aspectos técnicos, palestras com profissionais e atividades que estimulem a autonomia das participantes no que diz respeito ao reconhecimento de seus direitos e possibilidades”, explica a educadora Jéssica Caroline da Costa, responsável pelo projeto.
Outras unidades da Grande São Paulo, interior e litoral também realizam projetos, cursos, recreações, torneios e palestras que fomentam o futebol feminino. “O Sesc tem desenvolvido muitas ações que buscam sensibilizar e refletir as questões de acesso, ressignificando a prática, garantindo o espaço para o compartilhamento de conhecimento, a fim de que possamos viver a tão desejada equidade de gênero num dos ambientes mais predominantemente masculinos do cenário esportivo brasileiro e mundial”, complementa Ana Paula.
Confira alguns destaques deste mês:
Treino direcionado ao público jovem feminino para estimular essa prática esportiva e promover o encontro entre as participantes e as atletas Cris Souza, técnica de futsal do Clube Atlético Taboão da Serra, e Ita Maia, coordenadora do time de Futebol Feminino Associação Atlética Pró Esporte (Asape). A associação, que é voltada para a formação de jogadoras de futebol, também participa da atividade. (Dias 15 e 16/2, sábado e domingo)
Bate-papo e jogo demonstrativo 3x3 com as atletas e técnicos das respectivas equipes: uma reedição da final do Campeonato Paulista Feminino de 2019, que marcou o recorde de público de jogos de futebol feminino no país. Pela equipe do Corinthians: o técnico Arthur Elias e as atletas Tamires, Grazi e Erika. E pela equipe do São Paulo: o técnico Lucas Piccinato e as jogadoras Jaqueline Ribeiro, Vitória Ferreira e Larissa Santos. (Dia 2/2, domingo)
Três curtas-metragens do SescTV, disponíveis on demand, retratam a realidade de jogadoras de futebol em diferentes partes do mundo. A produção As Garotas e o Futebol (Coreia do Sul) conta como foi criado o primeiro time de futebol feminino coreano com deficiência intelectual. Já o curta Por Baixo do Véu (Palestina) retrata a história de Maryann Albandak, jogadora de futebol e capitã da seleção palestina. E, no documentário Ou Casa ou Campo (Bolívia), a jogadora Lourdes Manani, do clube feminino Deportivo Amachuma, fala sobre o time e o trabalho como costureira fora do campo.