Postado em 31/01/2020
A mente de Bia Lessa parece um labirinto, composta por percursos criados para desorientar, ou reorientar. Quem a percorre em cada espetáculo, exposição ou longa-metragem com sua assinatura não sai ileso. Para seus projetos, a diretora e cenógrafa paulistana se vale da literatura de Mário de Andrade, Virgínia Woolf e outros mestres. Universos que se materializam em tempestades de papel picado (Exercício Nº 1, 1986) ou de terra (Orlando, 1989), entre inovadores recursos que a enquadraram no Teatro de Imagens dos anos 1980. No entanto, seu trabalho não cabe em rótulos. Afinal, “o extraordinário é ter a capacidade de se reinventar, de viver dentro do espaço do movimento, sem perder a profundidade”, compartilha. Movida por esse pensamento, a diretora adaptou Grande Sertão: Veredas, obra-prima de Guimarães Rosa, para o teatro, em 2018, quando estreou no Sesc Consolação. Provou que um texto considerado erudito pode ser desfrutado pelo grande público. Ainda neste ano, outra versão do sertão de Rosa será exibida nos cinemas. “O filme é muito diferente da peça. Ele tem a qualidade de ser uma experiência radical. Não sei se vão me matar ou não”, provoca. Neste Encontro, Bia Lessa fala sobre a carreira, sobre o mestre e diretor de teatro Antunes Filho (1929-2019) e nos convida a questionar caminhos na vida e no teatro.
Minha mãe era pedagoga. Uma mulher muito interessante, “porreta”. Sempre fui uma menina diferente, pequena, feinha. Até que um dia, quando eu tinha sete anos, cheguei em casa aos prantos porque tinha visto um espetáculo no colégio. Todos os meus amigos tinham adorado, mas eu tinha odiado. E eu queria ser como todo mundo. Falei: “Mãe, não aguento mais. Não gosto do que as pessoas gostam”. Minha mãe me chacoalhou e falou: “Bia Lessa, o que interessa para o mundo é o que você tem de diferente dos outros”. E aquilo baixou em mim.
Saí muito cedo do colégio e no final do ginásio resolvi fazer teatro. Aos 15 anos, fui para o Tablado, olhei para a Maria Padilha e no segundo mês perguntei a ela: “Maria, a gente vai ficar aqui esperando alguém vir nos chamar?”. Aí entendi que a resposta era “não”. Então, montamos um espetáculo profissional com 15 anos.
Comecei minha carreira como atriz, mas nunca decidi a minha profissão. Ela foi se definindo por si só. Um dia, eu estava fazendo, como atriz, O Sítio do Pica Pau Amarelo e me chamaram para dirigir um espetáculo junto com um colega ator. Me apresentaram o texto, que achei mequetrefe. Na época, estava passando o filme Memórias do Cárcere (1984), de Nelson Pereira dos Santos, e eu estava com o livro A Terra dos Meninos Pelados, de Graciliano Ramos, que é um livro infantil [sobre equidade social e liberdade]. Então, falei que, se fosse para fazer [a direção da peça], ia fazer aquilo ali. Minha proposta já era uma coisa fora do padrão. Eu não entendia por que tinha teatro infantil e teatro adulto. Acho essa separação bizarra. Teatro não é entretenimento. Teatro é outro assunto.
Nessa fase em que virei diretora, eu já tinha passado pelo Antunes, que foi uma pessoa absolutamente extraordinária para mim. Ele me falou uma coisa que levo até hoje: “O negócio da vida não é criar facilidades, mas dificuldades”. O tempo que você leva para resolver uma questão pode ser cinco anos, a vida toda ou cinco minutos. Mas na hora que você resolver aquele grande problema, você deu um passo. Nossa obrigação não é fazer dar certo ou errado, bonito ou feio, fazer sucesso ou não. Por estar nessa vida, a gente tem a obrigação de caminhar.
O Antunes foi uma pessoa fundamental porque ele ensinava a ver. Você entende que uma pessoa no meio do palco vai falar de um tipo de solidão. E ao colocá-la em outro local do palco, ela fala de outra solidão. Você vai entendendo que o espaço tem uma importância extraordinária, tanto quanto a palavra. Quando me tornei diretora, tinha toda essa questão do Teatro da Imagem: “A Bia faz parte do Teatro da Imagem”. Mas não é “da imagem”. Eu estou aí para o que é o espaço, para o discurso que tem esse espaço.
Quando você pega um texto de teatro, lá estão as palavras. Só que somos muito mais do que aquilo que falamos. O que falamos é 10% de quem somos. Enquanto falo algo, há milhões de coisas acontecendo comigo que não são visíveis. Então, eu comecei a me interessar cada vez mais por literatura, porque ela me levava a uma dificuldade que era colocar um universo em cena e não apenas a palavra sendo dita. Você pega grandes autores como Shakespeare, Ibsen, Nelson Rodrigues, ali está um mundo, não só a palavra.
O que mais interessa em cada indivíduo é que um é diferente do outro. Isso fez com que eu criasse uma metodologia de trabalho em oposição ao que o Antunes propunha. Para mim, há um esforço gigante para não matar a individualidade [dos atores e atrizes]. Sou contra a homogeneidade, acho que ela é perversa e tende à morte. Na hora de crescer, de inventar, a gente tem que ser livre. Acredito num teatro em que os atores estão ali vivos. Eles não estão ali representando. Gosto muito mais de um jogo cênico real. Para mim, não interessa o ator que chora bem, que ri bem… Acho que respeitar a diversidade em cada um é muito importante. Somos muitas coisas dentro de nós, e aceitar isso também é complexo. Quanto mais você se vê diverso, mais rico você fica. Riqueza não é dinheiro, riqueza é diversidade.