Postado em 29/02/2020
A maioria dos indivíduos que habita as grandes cidades, no final de um dia estafante dividido em horas preenchidas pelo trabalho e pelo desgaste no trânsito, aspira a chegada à porta do lar, o giro da chave, almeja o momento no qual a porta se abre. Os móveis são dispostos planejadamente ou “do jeito que dá”, mas há pelo menos uma fotografia daquele momento feliz, de uma viagem com a família ou da festa de aniversário, empoeirada na mesinha na companhia de pequenos bibelôs encarregados de refletir parte da personalidade e da história de vida dos habitantes.
Mesmo quando nossa relação com a maioria desses objetos é volátil, consumível na vida cotidiana e quando o material perde valor em prol da subsistência, é presumível que todos gostaríamos de possuir, nesse refúgio chamado lar, pelo menos um item que ao ser observado ou tocado se apresentasse como nossa madeleine – aquele confeito descrito por Marcel Proust em sua obra No Caminho de Swann, que desperta em tom nostálgico e poético a epifania do personagem que ao comê-lo, após mergulhá-lo no chá, transporta-se a Combray, local frequentado na infância por ele e sua família.
Partindo do instante presente e do contato com esse objeto, acessaríamos a memória que estaria integrada à experiência pessoal, e o afortunado artefato atestaria que tivemos algum ou muitos momentos significativos na vida.
Como mesmo nessa esfera íntima temos uma consciência difusa dos mecanismos de vínculo com a materialidade, não raro precisamos ser conduzidos a identificá-los. Os museus e instituições culturais assumem o papel de preservar e/ou expor a cultura material, retirando-a, muitas vezes, do domínio do privado e tencionando-a sobre as questões coletivas, nos colocando perante o tratamento do tempo histórico.
Os recursos, meios e formas que viabilizam a relação do indivíduo com a matéria nesses espaços, e consequentemente a interpretação dos objetos por meio da leitura de imagem, são por sua vez amplamente trabalhados por uma área específica do conhecimento, a arte-educação.
Como arte-educadora, sempre me instigou entender como as pessoas podem construir relações significativas e críticas com as obras de arte, com a cultura material, com aquilo que observam e experienciam durante visitas a instituições culturais, para além das relações que já estabelecem com os demais objetos que as cercam.
Quando estamos em contato com algo novo, relacionar-se com ele por apenas cinco minutos pode não ser suficiente, sendo necessário tempo para decodificar cada pedacinho de cor e forma e criar paralelos entre essas formas e outros conteúdos que nos são familiares. Educadores atuam no “meio” desse processo, no domínio do “entre”, entre público e objeto, tendo a mediação como vetor de duplo sentido. É possível construir parte dessas relações individualmente, mas existe uma camada que, acredito, só possa ser acessada em um processo educativo.
São tantos os exemplos transformadores desses processos e as memórias partilhadas entre colegas educadores – como a da criança que, após visitar uma exposição com sua escola, retorna no final de semana com os pais para ela própria apresentar à família o que aprendeu durante a mediação – que fica evidente como a relação com a arte e a estética, no sentindo amplo, não nos é exógena, ela nos é familiar e até doméstica.
É em espaços de caráter público, como os do Sesc São Paulo, que essas relações se aprofundam, porque não se trata de possuir a madeleine, se trata de entender que a madeleine mais gostosa é aquela a ser a compartilhada com outros, criando sabores e sentidos coletivos.
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