Postado em 28/05/2020
Olhe aí a palafita
crescendo sobre a maré.
O homem que nela habita
caranguejo ou peixe é. [...]
Peixe caído na rede
que a vida lançou ao mangue,
para matar fome e sede
de um mundo nutrido em sangue.
[José Chagas, Maré Memória, 1973]
É uma casa com perninhas, onde o caboclo vive em paz com a subida ou descida da água ou do rio. É assim que o artista amazonense Inácio Maciel define a palafita, casa comum em áreas alagadiças de todo o mundo e que viraram foco de sua arte, hoje exposta em sua casa-museu-palafita estacionada nas águas do rio Negro, no Amazonas.
Do rio Negro aos Alpes, convidamos a uma viagem no tempo de quase 3 mil anos até a origem dessas estruturas. Quando o homem se tornou sedentário e criou seus primeiros vilarejos na Europa - entre os anos de 4.300 a.C. e 800 a.C. - ele construiu palafitas ao redor dessa cadeia montanhosa, passando pela Alemanha, Áustria, França, Suíça, Itália e Eslovênia. Declarados patrimônios da Humanidade pela Unesco em 2011, os sítios de palafitas são o primeiro monumento da lista da Unesco que estão imersos em água: as estacas que serviam de sustentação para as casas, únicos vestígios das vilas, estão preservadas submersas e são o testemunho mais antigo que temos da sociedade europeia. Com as casas de palafita sobre as águas, a pesca passou a ser a base de sua alimentação e as canoas seu meio de transporte. Os rios viraram suas estradas. As vilas de palafitas pré-históricas foram reconstituídas no museu alemão de Unteruhldingen e você pode fazer uma visita virtual clicando aqui ou na imagem abaixo
Na Europa, na África e na Ásia. Nas Américas. No rio Negro ou no Pantanal, no bairro baiano de Alagados ou no pernambucano do Pina, perto da Ponte do Mar Pequeno (em São Vicente, SP), na Baixada Fluminense (no RJ). As palafitas permaneceram ao arrastar dos séculos e, atualmente, no Brasil, contam a história de quem é obrigado a viver em moradias precárias, de quem não teve outra escolha e construiu sua casa onde pôde, onde deixaram, onde ninguém mais queria. No geral, onde se vive em constante risco.
É por isso que no meio deste nosso museu tem uma casa. Uma casa de palafita.
A casa é elevada por estacas bem afastadas do solo, atravessada pelas águas de um imaginário mar. Talvez em referência, ela seja azulzinha como o oceano.
É um azul de muitos tons, roubado da cor das águas, do céu e da vida.
Mutável conforme a luminosidade dos dias, os anúncios de tempestade
os fluxos do mar. E os dramas da existência.
Ela fica no Complexo da Maré, na cidade do Rio de Janeiro, um lugar que um dia foi quieto e tranquilo: um arquipélago formado por nove ilhas na Baía de Guanabara, onde pescadores viveram e tiraram seu sustento por mais de 8 mil anos, como aqueles que antes habitavam os Alpes.
Nossa casa azul de palafita foi construída por moradores que viveram o período em que a Maré ainda não havia sido aterrada. Testemunharam o tempo e passam suas histórias em cada madeira e em cada objeto do lugar.
É do trabalho que nasce a Maré.
Dona Orosina Vieira, rezadeira vinda de Minas Gerais, foi uma das primeiras moradoras da Maré, se encantou pelo lugar durante um passeio pela praia. Era um domingo. Com pedaços de madeira trazidos pela maré, escolheu uma área no Morro do Timbau e construiu ali um pequeno barraco, diz-se que a primeira casa da Maré. Quando estava prestes a fazer cem anos, Orosina contou a jovens entrevistadores: “Essa casa fui eu que fiz. Desse tijolo de barro aí”.
Logo depois de Orosina, muitos outros chegaram. Migrantes vindos do Nordeste e de Minas Gerais, atraídos pelo desenvolvimento industrial que tomou conta do Rio nas décadas de 1940 e 1950 e pela construção da Avenida Brasil, ocuparam os mangues à beira da Baía de Guanabara e construíram suas casas de palafitas sobre as águas.
Milhares dos que ocuparam o local usaram essa técnica e construíram uma comunidade de madeira sobre as águas. Com o tempo, a imagem da Baixa do Sapateiro passou a ser a de uma cidade flutuante de madeira e de tal forma proliferaram as casas na região. Era uma vida difícil para os moradores que conviviam com toda sorte de intempéries: o balanço das casas nos dias de tempestades, a subida da maré duas vezes ao dia, molhando o assoalho dos barracos com a água fétida da baía, a lembrança de crianças que afundavam na madeira podre que unia as casas e só eram descobertas quando a maré baixava, os ratos, a insalubridade, relatam Mário de Souza Chagas e Regina Abreu, no artigo “Museu da Maré: memórias e narrativas a favor da dignidade social”, publicado em 2007 (um ano depois da inauguração do Museu da Maré), na MUSAS – Revista Brasileira de Museus e Museologia, do IPHAN .
Adentrar esta casa azul de palafitas sobre as águas imaginárias que fica no meio do nosso museu é iniciar uma viagem pela história de um Rio de Janeiro feito por mãos de trabalhadores. É imaginar-se tomando um café quentinho naquela xícara, para aquecer o corpo cansado de um dia de labuta, enquanto o olhar paira na janela. É imaginar as mãos de quem areava aquelas panelas tão brilhantes, ou de quem seria a arte daquelas toalhinhas de papel cuidadosamente colocadas em cada mesa e prateleira.
Num único cômodo se escreve a vida
Aqui os objetos falam.
Na parede a lamparina, velhas fotos retocadas, um calendário antigo,
quadros, muitos quadros, do Sagrado Coração, São Jorge, Meninos
Jesus de Praga, Nossa Senhora da Conceição. Todos acima da
velha cama patente.
A casa de palafita é o centro, o coração deste museu, que a sua volta, como a maré mesma, bombeia outros tempos. Passar pelas pontes que rodeiam a casa de palafita que fica sobre as águas imaginárias da Maré é imaginar quantas alegrias e tristezas por ali caminharam. Adentrar pelas vielas e ruas deste museu é se lembrar (ou conhecer) brincadeiras de outros tempos, assim como o medo de bala tão presente ainda hoje para tantas famílias. É saber que neste lugar estão gerações de filhos de migrantes nordestinos e seus filhos, cariocas que recriaram seus costumes e laços nestas terras.
Há museus que são instituídos legalmente. Não é o caso deste, ele antes nasceu das mãos, vozes, histórias e lutas de muitos moradores e parceiros. É um museu parido. Dos museus mais sensíveis que você pode conhecer nestes tempos de cuidado e isolamento.
Você pode visitá-lo clicando aqui ou na imagem abaixo:
Agradecimentos: Museu da Maré; Cláudia Rose
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Habitar/Habitat: Palafitas e Casas Flutuantes
Na série exibida pelo SescTV, os programas mergulham no tema da habitação, revelando as formas de morar no Brasil, com uma abordagem antropológica que conecta os aspectos arquitetônicos às formas de organização familiar e aos saberes locais. Que une os valores estéticos aos motivos práticos de suas construções. Neste episódio, as palafitas e casas flutuantes são exemplos da adaptação do sertanejo ao ciclo das águas, na Amazônia.
Direção de Paulo Markun e Sérgio Roizenblit.
Museu de Palafitas Unteruhldingen
O Museu das Palafitas, ou Pfahlbaumuseum Unteruhldingen, foi fundado em 1922 por um grupo de arqueólogos e etnólogos quando iniciavam-se as escavações no Lago Constança, no sul da Alemanha, que determinaram a proteção dos achados como patrimônio da Humanidade pela Unesco. Atualmente, ele expõe a reconstituição de vilas de palafitas da era neolítica das construções sobre palafitas. Você pode fazer uma visita virtual pela vila, disponível em inglês e outros 3 idiomas.
Museu da Maré: Memórias e (Re)Existências
Um grupo de moradores da favela da Maré, integrantes da ONG Centro de Ações Solidárias da Maré (CEASM), idealizou e construiu o museu numa antiga fábrica desativada da região. Partindo de narrativas colhidas entre os antigos moradores, o Museu da Maré vem representando importante experiência de construção da memória social e a da afirmação de autoestima e da identidade de moradores em uma região marginalizada no contexto urbano do Rio de Janeiro.
Direção: Pedro Sol e Regina Abreu
Redes da Maré
A Redes da Maré é uma instituição da sociedade civil que produz conhecimento e elabora projetos e ações para garantir políticas públicas efetivas que melhorem a vida dos 140 mil moradores das 16 favelas da Maré. Neste momento estão realizando uma campanha para o enfrentamento a pandemia da COVID-19. Saiba mais aqui.
Conhecendo Museus: Museu da Maré
A obra audiovisual Conhecendo Museus apresenta, com detalhes, os principais museus do Brasil. O Museu da Maré participa desta série e surpreende pela qualidade e originalidade da proposta museográfica e museológica concebida por artistas, historiadores e militantes locais, tendo recebido diversos prêmios do Governo Federal e de instituições culturais. O filme procura apresentar a experiência do museu para ser divulgada em universidades, televisões, entidades não governamentais e movimentos sociais urbanos.
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Onde a casa mora em nós
Nestes tempos de distanciamento social, a série "Onde a casa mora em nós" convida para um passeio diferente, sem sair do lugar. Uma viagem que se propõe a ressignificar a presença da casa para além das paredes, para onde ela vive em cada um de nós. Para inspirar essa reflexão, vamos viajar pelos significados e memórias que vivem em casas de artistas e de personagens do cotidiano de nossas cidades. Um chamado para, junto com o Turismo Social do Sesc em São Paulo, aproveitarmos este raro momento de pausa e emergirmos com um novo olhar sobre nossa própria casa e sobre nós mesmos. Para saber mais clique aqui.