Postado em 01/06/2020
Ao apostar na sinergia entre teatro, cinema e espectador,
o ator e diretor artístico do Estúdio Lusco-Fusco acredita na reinvenção
O teatro foi um dos primeiros espaços a fechar e pode ser um dos últimos a abrir neste cenário de pandemia. No entanto, o ator e diretor de teatro e de cinema André Guerreiro Lopes acredita na sobrevivência desta expressão artística que já superou outros momentos de crise na história (leia Entrevista com o escritor Geraldo Carneiro). “Há inúmeras respostas da classe artística nesse momento que, para mim, são de solidariedade. Levar a arte até a casa das pessoas, teatro ao vivo, virtualmente, artistas gravando poemas, trechos de espetáculos sendo compartilhados”, observa. Sua paixão pelo teatro, desde a juventude, somou-se a outras linguagens como o cinema e as artes visuais. Cobrado socialmente para escolher entre uma dessas linguagens, o ator e diretor enfrentou momentos de angústia até compreender que integrar todas elas era seu caminho. Diretor artístico da Cia. Estúdio Lusco-Fusco – ao lado da atriz e esposa Djin Sganzerla –, ex-integrante dos grupos CPT, de Antunes Filho, e Cia. do Latão, André foi assistente de direção do diretor Bob Wilson nos espetáculos Garrincha e A Dama do Mar. No ano passado, esteve em cartaz com os espetáculos As Três Irmãs e Insônia – Titus Macbeth, este último encenado no Sesc Avenida Paulista, e exibiu o documentário Siron. Tempo sobre Tela na 43ª Mostra Internacional de Cinema, longa-metragem sobre o artista Siron Franco, dirigido em parceria com Rodrigo Campos. Neste Encontro, ele fala sobre a sinergia das artes, o atual momento do teatro e expectativas do que está por vir.
Meu trabalho
Tendo a gostar de um teatro estilizado, com muito envolvimento físico, um teatro corpóreo, que abra possibilidades e transforme o ato de estar em cena como algo único. Tendo, como diretor, a fugir do realismo. Não costumo começar com um trabalho de mesa prolongado, que acaba intelectualizando as propostas e ideias para, então, partir para algo que se planejou na mesa. Para mim é o contrário: começo na ação. Nas minhas produções, o início é aparentemente caótico e o final é, geralmente, muito estruturado. Gosto também das surpresas que acontecem na sala de ensaio e do que cada ator me traz do seu imaginário. A minha forma de dirigir e de criar uma dramaturgia cênica é muito mais próxima da montagem no cinema.
Teatro e cinema
A ideia do cinema de que, uma vez feita a construção, ela segue viva, porém fechada nela mesma para toda a eternidade, é muito interessante. Mas o cinema não é algo fixo. A cada sessão do meu último filme, um documentário com o Siron Franco [Siron. Tempo sobre Tela, 2019], grande pintor brasileiro, vejo um novo longa. Depende do momento em que ele está sendo visto, dos espectadores, do que está acontecendo no país. Cada uma dessas mídias (teatro e cinema) tem suas particularidades, e o que eu sempre tentei fazer foi conhecer profundamente essas linguagens e técnicas. Agora, na hora de criar, não vejo diferenciação. Hoje está tudo completamente interligado. Não foi fácil chegar a isso. Na juventude era uma angústia a sensação de multi-interesse.
O papel do espectador
Me interessa a ideia de ter o público como cocriador. O último espetáculo, Insônia – Titus Macbeth, em agosto de 2019, nasceu de uma profunda inquietação com os caminhos e descaminhos do Brasil. Era um desejo de falar sobre violência. Fundimos duas tragédias de Shakespeare: Macbeth e Tito Andrônico. A ideia de imersão do espectador dentro de um universo único que só o teatro pode proporcionar conduziu o trabalho numa experiência no Sesc Avenida Paulista. O público ficava imerso dentro da área cênica, junto dos atores.
Antunes + Wilson
São dois criadores importantíssimos com trabalhos muito diferentes. Minha experiência com os dois também foi muito diferente. Talvez o que os dois têm, claro, é uma obsessão pelo trabalho. Antunes dizia: “Se eu parar, no dia seguinte, vocês vão me encontrar na rua, morto”. A maravilha da obsessão do Antunes era essa ideia de que o ator nunca estava pronto. Cada conquista era só uma janela que se abria para novas conquistas. Ele ia cada vez cavando mais fundo e tinha uma paixão total pelo processo do ator. A ideia de como ele se relacionava com a filosofia oriental, e a colocava no trabalho, me influenciou profundamente. O Bob Wilson faz um trabalho muito diferente. Ele impõe o seu estilo e poética a tudo e a todos. Ele esculpe o trabalho dos atores minuciosamente e depois o ator de alguma forma fica íntimo desse trabalho e o torna seu.
As Três Irmãs
Eu queria muito trabalhar com o universo feminino e tinha três atrizes que precisavam estar nesse processo: Djin Sganzerla, Helena Ignez e Michele Matalon. Queria discutir o tempo e a ideia das três irmãs dançando à beira do abismo. Elas não conseguem viver o presente e estão agarradas ao passado ou sonhando com o futuro. O Brasil estava num momento de profundas transições, então achei pertinente. É indissociável essa associação do Tchekov [dramaturgo russo, autor de As Três Irmãs, de 1900] com uma entrevista que fiz com o Zé Celso, quando eu era estudante de teatro, com uma câmera VHS C. Porque As Três Irmãs também foi uma experiência radical para o Teatro Oficina. Eu tinha esse material, nunca exibido, e queria repensar isso cenicamente. O espetáculo foi muito bem recebido, estreou em 2017 no Anchieta (Sesc Consolação). Quero apresentá-lo após a quarentena. Essa ideia de três mulheres isoladas, num confinamento, numa prisão mental.
Teatro pós-pandemia
Há inúmeras respostas da classe artística nesse momento que, para mim, são de solidariedade. Levar a arte até a casa das pessoas, teatro ao vivo, virtualmente, artistas gravando poemas, trechos de espetáculos sendo compartilhados. Mas no teatro é essencial o encontro, estarmos num mesmo espaço, ainda que isso seja adaptado. O teatro foi uma das primeiras artes a fechar e será uma das últimas a abrir. Mas o teatro sobrevive sempre e sobreviverá, e nesse sentido eu sou muito otimista. A arte é fundamental e num momento como esse mais ainda. Vamos alimentar nosso imaginário.
Daqui para a frente
Acabei de participar da fotografia e da montagem de um filme que a Helena Ignez dirigiu para o Instituto Moreira Salles, mas não estou, pessoalmente, num momento de criação. Estou muito mais num momento de recolhimento e de gestação em todos os sentidos. Uma ideia de novo mundo que está sendo gestado e como a gente vai sair disso. A arte tem nos ajudado a nos centrar e sermos propositivos com amor, poesia e solidariedade. Acho que a gente vai viver algo artisticamente forte depois de tudo isso. Estamos gestando obras incríveis neste isolamento, estando conscientes ou não.