Postado em 30/06/2020
BIÓLOGO E NEUROCIENTISTA REALÇA A IMPORTÂNCIA DO SONO DE QUALIDADE
PARA A COMPREENSÃO DO PRESENTE E A CONSTRUÇÃO DO FUTURO
São muitas as preocupações com o país e o mundo neste cenário de pandemia. Estamos aprendendo outras formas de trabalhar, de estudar, de nos relacionar, de comer e até mesmo de dormir. Se antes o sono era subestimado e ocupado pelo trabalho e uso de aparelhos eletrônicos, hoje ele está ainda mais reduzido e fragmentado. Dos sonhos, então, há pouca lembrança. E, quando acontece, o conteúdo onírico revela, majoritariamente, medos e angústias. Professor-titular de Neurociências e vice-diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Sidarta Ribeiro pesquisa sono, sonho e memórias há duas décadas e aponta: “Talvez o grande mal-estar da civilização que a gente vem experimentando nos últimos tempos tenha a ver com o abandono da arte de sonhar”. Autor de O Oráculo da Noite: A História e a Ciência do Sonho (Companhia das Letras, 2019), entre outras obras, Sidarta Ribeiro comprova em estudos científicos a importância do sono de qualidade, capaz de gerar sonhos que permitam a compreensão do presente e a construção de um porvir distinto do momento atual.
FONTE DE INSPIRAÇÃO
Talvez o grande mal-estar da civilização que a gente vem experimentando nos últimos tempos tenha a ver com o abandono da arte de sonhar. Por um lado, nunca tivemos tanta tecnologia e, por outro, estamos com a sensação de fim de percurso, como se não houvesse futuro possível. Isso é uma contradição. Como podemos ter tantos meios para mudar o mundo e ao mesmo tempo tanta desesperança? O capitalismo e a ciência estão muito bem casados há 500 anos. Nesse percurso, o sonho foi abandonado. Era totalmente natural no Império Romano, na Grécia Antiga, no Egito Antigo, na Suméria, na Babilônia, na aldeia xavante, uma liderança dizer: “Eu tive um sonho e por causa dele devemos mudar nossa atitude coletiva”. Nos últimos 500 anos, isso deixou de ser uma boa razão para mudanças. O sonho, que era tido como uma revelação potencialmente divina, passou a ser considerado um subproduto do sono, sem grande valor. E isso ocorreu apesar do fato de que os sonhos continuaram contribuindo para a criatividade, tanto para artistas, a exemplo de Salvador Dalí [pintor espanhol, 1904-1989], quanto para cientistas, como Dmitri Ivanovich Mendeleev [físico e químico russo, criador da primeira tabela periódica, 1834-1907].
ORÁCULO DIÁRIO
Ao longo do tempo fui construindo uma teoria ampla sobre essa articulação dos níveis biológico e psicológico que tem a ver com aquilo que é relatado na experiência humana como experiências místicas, experiências dos sonhos. E o sonho, muitas vezes, como oráculo. Pensando muito sobre isso, tentando buscar um sentido biológico disso, cheguei a essa concepção que está expressa no livro O Oráculo da Noite – a ideia de que os sonhos são um oráculo probabilístico. Ou seja, eles são uma simulação de um futuro possível construída com base nas probabilidades de eventos que existem na realidade e que podem chegar a acontecer. Então, não é um oráculo que determina o que vai acontecer, mas uma espécie de simulação, de tentativa de perscrutar o futuro para tentar entender o que está acontecendo.
MOMENTOS DE CRISE
Jung [o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, 1875-1961, fundador da psicologia analítica] coletou os próprios sonhos e os sonhos dos pacientes, tanto antes da Primeira Guerra Mundial quanto da Segunda Guerra. Eram sonhos bastante premonitórios, que anunciavam o banho de sangue que viria. Hoje em dia tem muita gente fazendo pesquisa com os sonhos na pandemia. No meu grupo, a pesquisadora Natália Mota começou um trabalho sobre os sonhos das pessoas utilizando o WhatsApp e coletando sonhos toda manhã. O que ela verificou nessa pesquisa é que as pessoas estão sonhando mais com contaminação e com doença. Estamos vivendo uma distopia. Não só a pandemia, uma coisa incrível que mobiliza todo mundo no planeta inteiro, mas ainda por cima no Brasil estamos vivendo o negacionismo em seu grau mais alto. E isso gera uma dupla paranoia, porque não é só a desproteção diante da natureza, mas também a desproteção diante de uma sociedade que está doente. O sonho do brasileiro está em xeque. O que a gente tem percebido é o aumento do desespero. É por isso que eu e tantas outras pessoas temos insistido na necessidade de a gente se reconectar com os nossos próprios sonhos e que sejam sonhos coletivos. Esse é um momento importante para que a gente possa construir um sonho que valha a pena ser vivido.
BOM PARA A SAÚDE
O sono é muito mais antigo que o sonho. Boa parte dos problemas de saúde nas grandes metrópoles tem a ver com o sono de baixa qualidade. É fator de risco para diabetes, obesidade, doenças cardiovasculares e, no limite, Mal de Alzheimer. O sono é um momento de restauração fisiológica do corpo inteiro, não só do cérebro. É também o momento em que as memórias são processadas.
Boa parte do que o sono faz é jogar fora algumas memórias. Por outro lado, algumas coisas precisam ser lembradas e o sono faz essa triagem. Precisamos também de criatividade, de ideias novas e esse é o papel do sono. As pessoas dormem muito mal, e agora, na pandemia, diria que isso se exacerbou. Outras pessoas estão conseguindo mais sono, mais sonho, mais introspecção. Tenho defendido que a gente preste atenção no sono e o preserve. O sono não é um espaço para ser ocupado pelo trabalho.
DE CADA UM
Numa noite normal, que seria de sete ou oito horas de sono, as primeiras quatro horas vão ser quase exclusivamente de um sono de ondas lentas, e as outras quatro horas de um sono REM [em português, Movimento Rápido dos Olhos, fase do sono profundo, na qual ocorrem os sonhos mais vívidos]. Se você dorme quatro horas, você está abrindo mão de metade da noite, e isso acontece muito com as pessoas que esperam o sono vir enquanto usam algum aparelho eletrônico, alguma tela. O fato de haver uma estimulação visual constante vai impedir que a pessoa durma por duas razões: a estimulação frequente com novidade faz com que o cérebro inteiro libere mais noradrenalina e não queira dormir. Além disso, essa luz de comprimento azul vai inibir a produção de melatonina, que é o hormônio necessário para que o cérebro saiba a que horas ele quer dormir. Se a gente quiser ter uma vida saudável, não é tão complicado assim. Os gregos já tinham entendido isso: sono bom, alimentação boa, exercício físico regular e de qualidade, e relações não tóxicas.
SABEDORIA E TECNOLOGIA
Em diferentes grupos indígenas é comum que as pessoas tenham os mesmos sonhos. Entre os Guajira, por exemplo, que vivem entre a Colômbia e a Venezuela, às vezes 20, 30 pessoas têm o mesmo sonho. E, no Ocidente, no mundo industrializado, isso é visto como algo muito estranho. Mas isso está ocorrendo agora na pandemia. Pessoas estão tendo sonhos semelhantes porque estamos numa situação semelhante. Tenho defendido que, para a gente sair dessa situação bem, vamos precisar fazer uma síntese daquilo que seria a tese do onírico, que vem do passado neolítico, do xamanismo, por exemplo, com a ciência e a tecnologia. Se conseguirmos juntar todo esse conhecimento com sabedoria, talvez a gente encontre os caminhos para um futuro melhor.