Postado em 31/07/2020
Xote, Xótis ou até Chótis. A palavra vem de Schottisch, em referência à polca escocesa. Em Portugal, o gênero é conhecido pelo termo chotiça. E o mexe e remexe não parou por aí. Atravessou o oceano e veio dar no Brasil, por volta de 1851, pelas mãos do professor de dança José Maria Toussaint. Durante o Segundo Reinado, a aristocracia se esbaldava nos salões com a melodia, que também caiu no gosto da população escravizada.
Dessa forma, em pouco tempo, o xote se popularizou e tornou-se marca de compositores nacionais até os dias de hoje. “Tanto a embolada quanto o xote são gêneros musicais utilizados na canção popular brasileira”, afirma o dançarino, músico e coreógrafo Antonio Nóbrega, estudioso da cultura popular.
Por falar em embolada, ela tem uma origem diferente da do xote. Trata-se de um gênero poético-musical surgido da tradição oral da cultura popular do Nordeste brasileiro. Nos anos 1920, despertou a curiosidade de Mário de Andrade, que pesquisou e registrou emboladas durante viagem de estudos à região. A manifestação ganhou espaço no território nacional entre as décadas de 1970 e 1980, época em que os emboladores estiveram presentes no rádio, nos discos e em programas de televisão.
O Maestro Chiquito (Francisco Fernandes Filho) explica que a embolada é uma das modalidades do coco (dança e ritmo originados do canto dos catadores de coco, com influência indígena e dos batuques africanos). “Existem inúmeros tipos de coco: o coco de embolada, no pandeiro, trupé, o samba de coco”, relata o maestro.
De acordo com Antonio Nóbrega, congregar o coco é uma das características que distinguem o xote da embolada. O coco se desdobra em modalidades poéticas, sendo a carretilha a mais comum. “É usada pelos sambistas, por Noel Rosa e, modernamente, por Chico Buarque. Eu também uso, Alceu Valença usa”, acrescenta.
Nota por nota, como se forma a carretilha? “A carretilha se constitui por quatro versos. O primeiro com quatro sílabas e os demais com sete, sendo que o segundo rima com o terceiro”, ensina Nóbrega.
O xote viajou nosso território. É encontrado no Sul, quando ouvimos o xote gaúcho, e no Nordeste, pela sanfona de Luiz Gonzaga (1912-1989), entre vários músicos que difundiram o ritmo, e pela batida da zabumba. Outro mestre da composição nordestina é Jackson do Pandeiro.
Fernando Moura, um dos autores de Jackson do Pandeiro: O Rei do Ritmo (2001, edição esgotada), põe Jackson no “epicentro da construção da identidade musical brasileira”, que na linha da história foi representada por pessoas e movimentos. Desde Chiquinha Gonzaga, ao aparecimento do samba na cena urbana, passando pelos cantores românticos das décadas de 1920 a 1940, as cantoras do rádio, até o movimento do baião de Luiz Gonzaga, seguido pela bossa nova, tropicália e o BR Rock. Além disso, há os movimentos com raiz no Nordeste que nos anos 1990 migraram para o Sudeste, redimensionando a música regional e outras vertentes.
Nesse mapa, “Jackson entra eletrizando com o coco, frevo, samba, samba de latada, xote”, cita Moura. O artista soma 435 músicas catalogadas, número que evidencia a diversidade de ritmos de sua discografia. Não à toa é chamado rei do ritmo, “em consequência da sua diversidade, do seu olhar precioso, vigoroso para os diversos gêneros. Ele traz a faceta urbana do nordestino que está na cidade, na construção desse Brasil que começou a ganhar uma dimensão de progresso a partir da década de 1960, inserindo-se nele”.
Em Jackson há surpresa em cada audição. “Por causa dos elementos diversificados, apesar de a estrutura musical ser específica. Isso o diferencia nesta constelação, mas o coloca no topo da cadeia de construção da nossa identidade musical, não apenas a nordestina, mas a brasileira, conferindo a dimensão da sua música no contexto mundial”, observa.
Luana Flores, cantora, DJ, beatmaker, percussionista e artivista que se apresentou em uma das atividades integradas da exposição À Nordeste, em cartaz na unidade 24 de Maio em julho do ano passado, acredita na possibilidade de trazer novos paradigmas ao conjunto de ritmos. “Muitas vezes, eles são permeados por letras machistas, gordofóbicas, lesbofóbicas”, destaca. “Dessa forma, busco entender a estética como política, pensar a música como veículo de reconstrução social e reverenciar a minha ancestralidade matriarcal nos trabalhos que produzo.”
Em agosto, a artista leva ao público um novo material sonoro e audiovisual que apresenta “um pouco do universo feminino da reza, das benzedeiras e como essa prática vai se moldando nos tempos atuais/virtuais”. Luana é uma das fundadoras do grupo Coco das Manas, e dessa experiência iniciou sua pesquisa com foco na musicalidade da cultura popular nordestina como uma ferramenta social para o empoderamento feminino. A sua trajetória é um dos exemplos de artistas jovens que resgatam e renovam gêneros musicais, originando combinações que resultam no eletrococo e eletrobaião, unindo as vozes e percussões da tradição nordestina aos beats eletrônicos.
Porém, a fusão não se limita aos beats e batidas. Luana se considera parte de uma geração de mulheres nordestinas livres para falar sobre as opressões e as lutas cotidianas. “Vejo de extrema importância fazer isso pelos sons da nossa cultura e transportá-los não só para um universo de beats eletrônicos, mas também para uma atmosfera de luta contra as opressões sociais”, finaliza.
PROFESSOR DESDOBRA OS GÊNEROS E SUAS INFLUÊNCIAS
“A embolada e o xote são dois ótimos exemplos da nossa enorme riqueza cultural. Pensando em gêneros musicais que se assemelham a essa descrição, é fácil ver uma conexão com a rumba cubana e o blues dos Estados Unidos. Pelo aspecto específico da improvisação, a embolada tem uma ligação muito evidente com o rap, mas eu vejo também uma relação direta com o dixieland [subgênero do jazz vinculado a New Orleans] e o jazz.
O pensamento de improvisação como desenvolvimento de ideias curtas (motivos), a ligação com uma ideia original, o desafio entre improvisadores, tudo isso são elementos ancestrais que vieram da África e germinaram frutos diferentes de acordo com o local e época. Aos poucos o xote foi sendo incorporado à grande família musical do baião, ritmo por sua vez claramente derivado do norte da África, e passou a fazer parte do repertório dos forrós.
A divisão rítmica do xote é diferente, com interpretação tercinada, que é algo visto na música do Marrocos, Egito, Tunísia, mas que as pessoas associam ao reggae jamaicano e (outra vez) ao jazz. A obra do Jackson do Pandeiro é valiosíssima, um colosso que trouxe tanto uma história de raízes muito profundas quanto olhou alto para o futuro. Para mim, Jackson está no mesmo panteão que Luiz Gonzaga, Jobim e Villa-Lobos.”
ÁLBUM DIGITAL CELEBRA LEGADO DE MÚSICO E COMPOSITOR PARAIBANO
O centenário de Jackson do Pandeiro (1919-1982) ganhou comemoração à altura de seu legado pelo Selo Sesc. Sessões Selo Sesc #8: Toada Improvisada – Jackson do Pandeiro 100 Anos pode ser ouvido no Sesc Digital (https://sesc.digital/colecao/43138/sesses-selo-sesc-8-toada-improvisada-jackson-do-pandeiro-100-anos).
O álbum digital foi gravado no dia do centenário do compositor paraibano, em 31 de agosto de 2019 no Sesc Santana. São 21 canções do repertório de Jackson em releituras conduzidas pelo violinista francês Nicolas Krassik, a cantora espanhola Irene Atienza e os brasileiros Junio Barreto, Silvério Pessoa, Mariana Aydar e Targino Gondim, acompanhados pelo violão de sete cordas de Gian Correa, pela sanfona de Cosme Vieira e pela percussão de Kabé Pinheiro.
Toada refere-se ao conjunto de sons de vozes, em cantigas de melodias simples, textos curtos com sentimentos sob medida, estruturados por um belo refrão para se cantar junto. “É uma homenagem para esse gênio da música popular brasileira”, comenta o músico pernambucano Silvério Pessoa.
Outros lançamentos do Selo Sesc também estreiam na plataforma Sesc Digital antes de chegar aos canais musicais de streaming.