Postado em 31/07/2020
EMPATIA E CULTURA SÃO FERRAMENTAS PARA LIDAR
COM EMOÇÕES POTENCIALIZADAS PELA PANDEMIA
Tristeza, ansiedade, irritabilidade são alguns dos sentimentos compartilhados pela população durante esse período de isolamento social. Segundo o psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) Christian Dunker, para a reconstrução de um novo cotidiano precisamos observar a maneira como lidamos com o sofrimento. “A gente passou muito tempo individualizando os sofrimentos. Então, hoje, você tem uma população que não sabe partilhar, não sabe entender, digamos assim, que o seu sofrimento pode ser escutado pelo outro e, assim, produzir experiências verdadeiras de compartilhamento, de intimidade”, aponta. Mas de que maneira? Além de abrir-se para momentos de troca, permitir-se momentos com livros, filmes, peças ou músicas podem servir como um “remédio”. “A cultura não é um acréscimo que torna a pessoa mais sabida. Ela é uma fonte de saúde mental”, defende.
Saúde mental presume saúde. Eu lembraria aqui um dito de Hipócrates, o pai da Medicina, sobre o que fazem os médicos. Ele diz o seguinte: A gente cura o que pode ser curado, mitiga o sofrimento que pode ser mitigado, e o terceiro, esquecido, a gente não pode curar o que não pode ser curado. Do que estamos falando aqui? Dos nossos corpos, que se degradam, da nossa morte, da nossa finitude, daquilo que nos faz humanos. Então, se não é a medicina que cuida disso, quem cuida? De quem é a responsabilidade pelo incurável humano? É aí que vou lançar a ideia de que isso cabe àqueles que cuidam da cultura. A cultura tem por matéria-prima isso que não pode ser eliminado da nossa experiência.
Principalmente nos primeiros momentos da pandemia, a gente teve um problema grave. Quando você deixa de ter um cotidiano organizado, cada passo tem que ser decidido com a sua presença. Isso exaure as pessoas. Então, o que fazer? A resposta era: ler um livro. O livro cria a experiência de tirar você para fora de si e voltar com outro olhar. A rede social não faz isso. Ela te ocupa, mas não tira você de si como um livro ou um filme e uma peça. A condição é sair de si como numa viagem. Olhar para si de outro ponto de vista e voltar a si. Então, a cultura é a nossa viagem portátil. É a cura para nosso egocentrismo, para a reprodução disso que é fonte do nosso cansaço e infortúnio, que somos nós mesmos. A coisa mais difícil é aguentar essa mesma cara, essa mesma vida todo dia. A cultura diz pra gente: existem várias vidas dentro da mesma vida; existem vários modos de expressão e vários modos de representação. A cultura não é um acréscimo que torna a pessoa mais sabida. Ela é uma fonte de saúde mental.
A reconstrução de um cotidiano tem a ver com a forma como você lida com o sofrimento. Que destino você vai dar a esse sofrimento que está experimentando? Tem aquele que vai para debaixo do cobertor da culpa e fica lá até passar. Tudo bem. Esse é um entendimento do que está acontecendo. Outro vai abrir a janela e dizer: “Essa pessoa na rua, sem comida, está sofrendo mais do que eu. Será que eu não posso fazer uma quentinha, ou permitir que ela encontre algum equipamento de suporte? Como psicanalista vou dizer que esta atitude faz bem para sua saúde mental. Por quê? Porque ao se ocupar do sofrimento do outro, ao tornar o seu sofrimento coletivo, ao compartilhar os afetos que vêm junto com ele, você se obriga a produzir uma narrativa, a reconhecer o sofrimento do outro e a dividir os afetos aí envolvidos.
A gente passou muito tempo individualizando os sofrimentos. Então, hoje, você tem uma população que não sabe partilhar, não sabe entender, digamos assim, que o seu sofrimento pode ser escutado pelo outro e, assim, produzir experiências verdadeiras de compartilhamento, de intimidade. Então, essa pessoa que sofre isolada, ela está se defendendo, em regra, de uma coisa que o ambiente digital faz. Nele, o universo privado invade o público (falo minhas coisas, abro meu coração) e o público invade o privado – política, celebridades etc. Isso gera uma tempestade que, para muitas pessoas, resulta no pensamento: “Eu prefiro ficar de fora”. Essa pessoa tende a ter um sintoma que é a alexitimia: não conseguir nomear o que está sentindo realmente. Ela só sensorializa os afetos: “Estou mais confortável com isso ou menos confortável com aquilo; me sinto melhor assim ou pior desse jeito”. Uma espécie de monocromatismo dos afetos. Típico dessa subjetividade na qual o sofrimento está em compressão, em isolamento. Como fazer para abrir as portas de alguém assim? Oferecer aquilo que você está pedindo. Se você quer honestidade, ofereça honestidade. Você quer criar mais intimidade? Ofereça mais intimidade. Assim a gente abre as portas para uma escuta mais empática com aqueles que estão isolados.
Que história você tem para contar da pandemia? Se você tem uma história que te transformou, terá um novo normal. Se você entrou num freezer e saiu meses depois, seria um velho normal? Tanto faz. Acho que em regra, vai acontecer uma coisa muito importante, subjetivamente, que é o seguinte: a gente aprendeu na marra que é possível mudar. A nossa vida mudou. Para o bem, para o mal, mas mudou. Você está em casa e, se for para a rua, é outra rua. A experiência de mudança é, assim, uma pólvora mental. Por exemplo: num grupo de amigos, um deles se separa. Introduziu-se aí a ideia da mudança. Será que meu casamento vale a pena? Acho que muitas decisões serão tomadas. Inclusive porque a gente tem mais tempo para pensar. A gente vê a mudança em curso, tomando por base a China: o número de gravidezes e de separações disparou. Então, essa experiência fez a gente ficar mais próximo; produziu conversas com nossos avós, primos… Também mostrou a proteção e a desproteção. Vamos ter outro mundo? Acho que não. Acho que vamos ver pequenas diferenças que serão muito importantes. Como o valor de um abraço, de estar junto com o outro. O valor da intimidade, da pressa e da aceleração. Isso tudo vai ser posto em xeque.
CHRISTIAN DUNKER esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E no dia 18 de junho de 2020.
Clique aqui e assista ao depoimento de Christian Dunker sobre ansiedade, realizado para o projeto Inspira - Ações para uma Vida Saudável, disponível no portal do Sesc São Paulo.