Postado em 27/08/2020
Por Margareth Araujo*
Meu nome é Margareth, tenho 34 anos, meu pai era preto de pele escura, minha mãe é preta da pele clara e nordestina. Sou mãe de uma adorável garotinha de quase 4 anos e estou em um relacionamento interracial com um homem branco. Também sou dona de casa, mãe solo (hoje divido os cuidados da minha filha com o padrasto dela, meu companheiro), professora de educação infantil, turismóloga, gestora de negócios turísticos e gestora de relacionamento com o cliente. Sou funcionária do Sesc São Paulo há 10 anos, estou na Central de Atendimento em Sorocaba, e se você já foi até lá, deve ter me visto!
Sou preta de pele clara e isso me traz, desde a infância, vantagem, comodismo, falta de pertencimento e reconhecimento e explico o porquê. Nasci e fui criada na Cohab 1, que fica em Artur Alvim, na zona leste de São Paulo, bairro periférico e organizado, com acesso a saneamento básico, escolas públicas, comércio farto e extremamente digno. Fui uma criança muito feliz, que corria livremente entre os prédios e em meio a muitos amigos. Minha família sempre foi pobre, mas asseguro aqui que nada nunca me faltou. Não conheço a dor da fome e do frio e, perto de muitos amiguinhos, eu tinha vantagem, não precisei trabalhar antes dos 16 anos e comia iogurte de morango uma vez por mês, quando minha mãe fazia as compras mensais. Usei roupas da moda e creme no cabelo crespo!
Meu lugar entre meus amigos era de garota “branca”, pois entre eles eu tinha a pele mais clara e os traços “alongados”. Perdi a conta das vezes que meu nariz foi elogiado por ser “fino”. Meu cabelo é crespo 3C e também diferente das minhas amigas, que tinham 4B e 4C. Elas, assim como eu, sempre estavam muito bem penteadas e mesmo assim eram chamadas de cabelo de “bombril”. Esse lugar me deu conforto e embora fosse chamada de “neguinha do saravá” por um vizinho, eu nunca fui apelidada de outras formas racistas como minhas amigas foram; embora eu ficasse revoltada junto com elas, isso não me trazia o sofrimento que elas passaram - tive vantagem também nesse lugar.
Sempre fui uma garota estudiosa. Na adolescência, eu tive a vantagem de ser aprovada no CEFAM (Centro Específico de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério) e lá alguns conceitos sobre o racismo me foram apresentados. Anualmente, em novembro, era celebrada a semana da Consciência Negra e foi assim que eu aprendi sobre a verdadeira forma de como os nossos ancestrais foram trazidos ao Brasil e fui apresentada a uma nova perspectiva de beleza, diferente das minhas bonecas e do que eu assistia na televisão. Nessa semana, esperávamos ansiosas ao desfile de Miss e Mister Afro e minha melhor amiga, preta retinta, levou três títulos dos três anos que estudamos lá. Foi ela que também que apresentou um mundo novo: cantores e cantoras de música black americana, exaltação à nossa beleza e junto com ela fui à minha primeira balada: Baile Black Charm. Que mundo maravilhoso!
Saí do Magistério mais consciente do meu lugar na sociedade e entrei em uma universidade, graças ao ENEM. Sou aluna da primeira turma do PROUNI. Ingressei em uma universidade privada, com bolsa integral e pela primeira vez na vida eu senti o peso do racismo. Nunca vou esquecer do meu primeiro dia na universidade e da forma como eu fui encarada pelas meninas da minha classe. Nunca!
Meu amigo e eu, hoje também ativista, éramos os únicos pretos assumidos na turma e a cada dia algum tipo de racismo recreativo era feito pelos colegas e professores. Havia ainda um olhar, uma dúvida sobre a nossa capacidade acadêmica… Não foram anos fáceis, mas foram anos que eu engoli muita coisa simplesmente por não ter força suficiente para me defender. E que meu único conforto era o olhar desse amigo e a cobrança do único professor preto da universidade, que me dava, além de conforto, força. Esse professor pode não saber, mas eu o admiro e agradeço cada bronca coletiva na turma, que achava que o programa do governo e as cotas eram esmolas.
Foram quatro anos de muito choro no ônibus e sorriso ao chegar em casa. Eu sou a primeira universitária da minha família e dos meus amigos de infância, então eu não podia demonstrar para minha mãe as dificuldades que eu enfrentava. Ela queria que eu vencesse e, na minha visão da época, os fracos não venciam! Eu precisava resistir e me formar e assim aconteceu. Eu me formei! E eu nunca vou esquecer do olhar da minha mãe na hora que eu recebi o meu diploma universitário. A filha da faxineira e do tapeceiro havia vencido!
A partir dali, começaria outra batalha: a de conseguir um emprego na minha área. Uma companhia aérea absorveu quase todas as formandas da minha turma, mas eu não fui aprovada; uma rede hoteleira multinacional absorveu outras garotas, mas eu não fui escolhida. Fui trabalhar em uma operadora de turismo e não fui tão bem acolhida pela chefia. Na primeira crise, eu saí e fui trabalhar em uma empresa mais descolada, onde o quadro era bem diverso e de lá eu escolhi me demitir para trabalhar no Sesc, onde estou há 10 anos. O Sesc é uma empresa que tem me acolhido nas minhas dificuldades e acertos e que hoje me dá condições muito dignas de vida; abriu muitos de meus horizontes culturais e me permite aprender algo todos os dias.
Tenho total consciência das minhas vantagens, não sofri quase nada se compararmos a minha jornada a de tantas outras mulheres pretas retintas, que são preteridas em todos aspectos sociais. Minha pele preta clara me trouxe possibilidades e posição de vantagem na infância, adolescência, na vida acadêmica, profissional e afetiva. Embora minhas tentativas de relacionamentos afrocentrados não tenham tido êxito, eu sempre encontrei afeto entre homens brancos e minha filha é preta da pele mais clara que a minha e ainda assim é a única criança preta de sua turma. Ela estuda em um colégio privado da nossa cidade e hoje meus esforços se concentram em criar uma criança emocionalmente forte para enfrentar o racismo e as provas que a vida trará. Sei que será uma vida com mais vantagens em relação a minha, mas ainda assim em um mundo racista.
Eu espero que ela tenha forças para responder e enfrentar as situações que eu tive que engolir. Espero que ela possa se tornar uma mulher que apoia as outras mulheres e que em sua posição de vantagem possa fortalecer a nossa luta contra o racismo. Espero que ela encontre em mim afeto, escuta ativa, carinho e proteção. Que possamos caminhar juntas, assim como na Marcha sobre Washington pela Liberdade, porém, aqui no Brasil, pelos nossos irmãos pretos brasileiros.
*Margareth Araujo é mãe da Maria Flor, turismóloga, curiosa das artes têxteis manuais, amante de pagode e agente de atendimento do Sesc Sorocaba.
Este relato faz parte de uma série de ações realizadas pelo Sesc Sorocaba dentro do Iorubrá, projeto que potencializa e valoriza as culturas negras. Leia também o manifesto escrito por funcionários da unidade.