Postado em 31/08/2020
A cidade de São Paulo encolheu. Não literalmente, claro. Mas essa é a impressão que os moradores da capital passaram a ter assim que começou a medida de isolamento social para contenção da Covid-19. Restrita ao ambiente doméstico, a população redescobriu ou passou a conhecer o bairro onde mora para acessar, com mais segurança e rapidez, alimentos, remédios, livros ou mesmo pequenos serviços. Tanto que, segundo a pesquisa Viver em São Paulo: Especial Pandemia, realizada pela Rede Nossa São Paulo em parceria com o Ibope Inteligência, de 18 a 28 de julho, entre as principais mudanças causadas pela pandemia está a relação das pessoas com os arredores do próprio lar.
Entre os internautas entrevistados, das classes A, B e C da capital paulista, 45% responderam que passaram a dar mais valor ao comércio e aos prestadores de serviços locais. Além disso, 32% disseram prestar mais atenção aos serviços públicos disponíveis e aos que faltam no bairro e 19% começaram a caminhar mais pelas ruas próximas à sua casa. Apenas um terço dos entrevistados afirmaram que nada mudou na relação com as imediações durante a pandemia.
Para entender essa nova relação, o antropólogo José Guilherme Magnani, professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), recorre à perspectiva da Antropologia Urbana. “A dinâmica da cidade é feita pela prática dos moradores. Ou seja, a cidade não é dada de uma maneira fechada. Ela é o resultado das parcerias, das trocas, das alianças e dos percursos que os moradores fazem”, explica. E, se longos percursos foram substituídos por percursos mais restritos, “é como se a cidade tivesse se encurtado”, observa. “Ela continua com o mesmo tamanho, mas o uso feito pelos moradores é diferente e isso faz com que haja uma valorização dos espaços mais próximos.”
Outro laço que se reforça nessa relação próxima com o bairro é o sentimento de pertencimento. “Você começa a valorizar o espaço onde passa seu cotidiano. Estou vendo no meu próprio bairro, caminho, de vez em quando, com todo o cuidado, e começo a observar, por exemplo, o jardim das casas, a maneira como as pessoas cuidam do seu patrimônio”, acrescenta Magnani. “Claro que temos que levar em conta a desigualdade estrutural da sociedade, porque a pandemia só colocou às claras as dificuldades que grande parte das pessoas tem, quem mora em ambientes inóspitos.”
Esse reconhecimento do território também valoriza o comércio, os prestadores de serviço, feiras, praças e outros equipamentos da vizinhança. Nesse cenário, desabrocham iniciativas de empresas e ações sociais de apoio ao comércio e serviços de cada região. Aplicativos de entrega de comida, por exemplo, sugerem restaurantes, padarias e mercados a uma distância de no máximo três quilômetros da sua casa, com a vantagem de redução do tempo de entrega e, muitas vezes, isenção de taxa.
No caso de iniciativas da sociedade civil, há exemplos como o da organização Pertim, que propõe ser ponte entre pequenos produtores (de Morungaba, Itatiba, Jaguariúna, Campinas e região) e consumidores (de Morungaba, Jundiaí, além de Centro e Zona Norte da cidade de São Paulo). “A gente tem reparado que fomentar o consumo local, principalmente no âmbito da agricultura, é muito importante para os agricultores se conhecerem e conhecerem seus próprios consumidores, bem como fortalecer a economia da região”, explica a gestora Julia Camargo, responsável pelo contato com os produtores e a montagem das cestas da Pertim.
Além disso, Julia ressalta o impacto tributário dessa ação, “na medida em que o ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços] fica para o próprio município”. Mais importante ainda são as vantagens para o meio ambiente. “Porque há uma pegada de carbono menor [medida que calcula a emissão de carbono equivalente emitida na atmosfera por uma pessoa, atividade, evento, empresa, organização ou governo], assim como um impacto logístico menor para o agricultor, que não precisa vender a qualquer preço com medo de perder sua produção”, esclarece.
Enxergar o consumo como uma efetiva atitude para a transformação social e exercício da cidadania é outra consequência desse cenário de pandemia. É aí que entra a importância dos grupos de consumo responsável. Iniciativas de quem busca realizar suas escolhas baseadas em critérios éticos, políticos, sociais e ambientais, criando relações mais próximas com aqueles que produzem.
“Em geral, esses grupos viabilizam semanalmente cestas de hortaliças e outros produtos locais, produzidos sem agrotóxico, por agricultores familiares. A proposta não é apenas comercializar, e os grupos promovem também espaços educativos, de práticas cidadãs e de encontro”, explicou a gestora de projetos do Instituto Kairós, Thais Mascarenhas, em entrevista à Revista E, para a matéria Inclusão Produtiva.
Para a agricultora urbana Terezinha dos Santos Matos, que participou do debate Redes de Agroecologia e os Grupos de Consumo no Contexto da Pandemia, em agosto, pelo Sesc Ideias, ações como essa estão gerando muitos frutos. “As vendas dos produtos aumentaram. Enquanto para outros se fecharam portas, para nós, da agricultura, portas se abriram. Por outro lado, o custo aumentou muito na agricultura para reforçar cuidados (manuseio e embalagem)”, conta.
Nessa relação de conhecer seu bairro e comprar de empreendedores locais ganham também pequenos prestadores de serviço, como o sapateiro, a costureira, o artesão, entre muitos outros. Para o antropólogo José Guilherme Magnani, “é quase como se fosse uma volta à antiga relação do escambo e da troca: você sabe com quem está trabalhando”, considerando fatores como o impacto social, econômico e ambiental da fabricação ao transporte e entrega daquele produto.
Será que mesmo depois da pandemia, comportamentos e ações comprometidas com a vizinhança irão persistir? “Acho que sim, porque são valorizados, por exemplo, os serviços e as ofertas que são feitas no interior desse pedaço mais restrito, que exige menos pessoal para trabalhar, menos insumo, menos equipamentos”, diz Magnani. “Não tem aquela dimensão das grandes empresas. Isso começa a ser reconhecido e estabelece um novo pacto entre as pessoas do mesmo bairro.”
PROPOSTA DE BAIRROS ONDE COMÉRCIO, SERVIÇO E LAZER ESTÃO
A POUCOS MINUTOS DE CASA PODE SER O FUTURO DAS GRANDES CIDADES
Criado pelo professor e especialista em cidades inteligentes Carlos Moreno, professor da Universidade Paris-1 Sorbonne, o conceito de “cidade a 15 minutos” pode se tornar presente em diversas metrópoles, principalmente diante dos desafios impostos pela pandemia. Uma ideia que consiste, segundo depoimento do professor, em redescobrir o bairro para que a cidade não seja socialmente segmentada. A proposta foi apresentada pela prefeita de Paris, Anne Hidalgo, no começo deste ano, e consiste na criação de áreas de uso misto. Ou seja, espaços onde é possível habitar, trabalhar, consumir, usufruir de espaços culturais e jardins, sem precisar se transportar a longas distâncias.
Bairros onde poderíamos nos locomover a pé ou de bicicleta para realizar atividades que hoje nos tomam horas de metrô, ônibus ou carro. Uma vizinhança equipada por áreas verdes, comércio, prestadores de serviço, escola, ambientes de coworking, postos de saúde, espaços para fruição cultural, entre outros equipamentos essenciais. “Bem diferente das ‘zonas estritamente residenciais’ de São Paulo, onde é necessário o carro até para chegar à padaria mais próxima (de bairros em franco despovoamento, do Morumbi ao Pacaembu)”, escreveu em sua coluna na Veja São Paulo, Raul Juste Lores, autor de São Paulo nas Alturas (Três Estrelas, 2017) (leia o Encontros com o escritor e jornalista sobre arquitetura e urbanismo).
Imaginamos como seria um bairro em São Paulo, aos moldes da “Paris a 15 minutos”.
AÇÕES FOMENTAM PROJETOS SOCIAIS EM COMUNIDADES
ONDE ATUAM UNIDADES DO SESC SÃO PAULO
Em São Paulo, o Sesc realiza uma programação permanente voltada aos pequenos empreendedores e projetos sociais onde as unidades estão inseridas. São ações formativas promovidas ao longo do ano e mostras nas quais é possível conhecer presencialmente produções de grupos que atuam a partir de critérios socioambientais em cada território.
“O Sesc tem realizado um trabalho educativo junto a coletivos, cooperativas e pequenos empreendedores para fortalecer sua atuação localmente e em rede. As programações têm discutido a importância do consumo local e das atividades econômicas que têm impacto positivo no desenvolvimento das comunidades”, explica Midiã Claudio, assistente da Gerência de Educação para a Sustentabilidade e Cidadania do Sesc.
Com a pandemia, essas ações ganharam outros formatos. “Há uma continuidade da divulgação dessas iniciativas, algumas vinculadas à economia solidária, além da realização de cursos virtuais voltados para esses grupos e projetos a partir das demandas sociais identificadas em cada região”, complementa Midiã Claudio. Conheça algumas ações realizadas pelas unidades do Sesc São Paulo em comunidades onde atuam:
Ipiranga
As ações do Sesc Ipiranga com a Rádio Comunitária de Heliópolis tiveram início no projeto Sesc Verão 2020, em janeiro, e seguem desde então. Neste período de isolamento, foi criada uma série de bate-papos e entrevistas ao vivo, transmitidas por meio das plataformas digitais e redes sociais tanto da unidade quanto da Rádio Heliópolis. Na programação do dia 28/9, o tema é Corrida de Rua como Fenômeno Cultural e Social, com Renato Mendes, do coletivo Corre Helipa, sobre estrutura, formação do grupo, gestão e organização de eventos. Também entra na pauta o projeto Entre Sesc – Vou de Tênis, que aborda o uso da cidade e a mobilidade urbana. Acesse: www.sescsp.org.br.
Registro
O projeto Sabão e Saberes é uma ação realizada pelo Sesc Registro no município. Todo o sabão produzido com óleo de cozinha usado será doado ao Fundo Social de Solidariedade de Registro e direcionado às famílias atendidas pelos programas sociais. O uso do sabão é indicado para higienização das mãos, auxiliando na prevenção do novo coronavírus, além de limpeza de louça e roupa.