Postado em 31/08/2020
O cenário é um só: a cidade do Rio de Janeiro. Os bairros, em áreas diferentes: Vinicius na Zona Sul, no Jardim Botânico, próximo ao cartão-postal do Cristo Redentor; e Tom, na Tijuca, onde a tradição, a urbanidade e a Floresta da Tijuca identificam a Zona Norte. A falta de cerimônia em tratá-los assim, sem a garantia do sobrenome, tem explicação: afinal, é fácil se sentir meio íntimo dessa dupla… E deixar-se embalar pela amizade e pelas canções dos dois.
A história do início de uma das parcerias mais reverenciadas da música brasileira é conhecida. Vinicius de Moraes (1913-1980) e Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim (1927-1994) reuniram-se em 1956 para moldar a quatro mãos a trilha sonora de Orfeu da Conceição (leia bastidores em Por trás das canções), peça que juntou ainda outros mestres, como Oscar Niemeyer, responsável pelo cenário, e os artistas Carlos Scliar e Djanira da Motta e Silva, criadores dos cartazes. Entre outras qualidades, o espetáculo exibido no Theatro Municipal do Rio de Janeiro foi um marco nas artes cênicas por incluir pela primeira vez, no elenco, atrizes e atores negros do Teatro Experimental do Negro, de Abdias Nascimento. Estrelas como Haroldo Costa, Ademar Pereira da Silva, Ruth de Souza e o próprio Abdias.
Presidente do Instituto Antônio Carlos Jobim, Aluísio Didier afirma que o encontro do talento de Vinicius e de Tom impactou a tradição sonora brasileira e, desde então, influências ecoam modernamente. No caso, a qualidade das canções líricas, “dignas de um Schubert brasileiro”, e da bossa nova, “surgida em 1959, na interpretação de João Gilberto, que percebera nas músicas de Tom e Vinicius o que vinha procurando”, explica. Versátil, a bossa nova recebe arranjos, combina estilos do clássico ao rock e alcança diferentes públicos e gerações. Nessa onda, a parceria entre Tom e Vinicius é sempre renovada em prestígio e admiradores, no Brasil e no exterior.
As canções da dupla são sucesso há anos no Japão, em países europeus e nos Estados Unidos. A terra do Tio Sam abraçou a fusão da bossa nova com o jazz. Parte dessa mítica união está no encontro entre Tom Jobim e Frank Sinatra (1915-1998), que pode ser apreciado em Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim (1967). Disco premiado pela crítica norte-americana, foi alçado ao topo dos bambas. No ano de seu lançamento, foi o segundo mais vendido nos Estados Unidos, atrás apenas de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles. O convite para a gravação veio do próprio Sinatra, em telefonema recebido no Bar Veloso, localizado no bairro de Ipanema e frequentado por Tom. A passagem é contada minuciosamente pelo jornalista e escritor Sérgio Cabral, na biografia Antonio Carlos Jobim (Lazuli, 2006).
Ao que parece, a união dessas duas personalidades distintas não resultou em um caldo tão harmonioso quanto a amizade musical entre Tom e Vinicius, que durou até a morte do Poetinha, em 9 de julho de 1980. Garota de Ipanema, composição célebre da dupla e cantada por Sinatra, com Tom ao violão, em registro fácil de encontrar no YouTube, acena aos rapazes de Liverpool novamente: a Editora do Grupo Universal, responsável pela averiguação da comercialização, informa que a música é a segunda canção mais executada do mundo, “perdendo – apenas – para Yesterday, de John Lennon e Paul McCartney”, confirma o professor e pesquisador musical Omar Jubran.
Aluísio Didier menciona que a obra deixada por ambos é objeto de estudo em universidades americanas “pela arquitetura dos contrapontos, harmonias, pelo bom gosto de suas melodias e pelo ritmo da bossa nova, introduzido por João Gilberto em síntese com suas composições”.
Nesse fluxo entre o Brasil e o exterior surge a bossa nova, e temos Chega de Saudade, música de autoria de Tom e Vinicius que, em 1959, deu nome ao LP homônimo considerado o fundador do estilo, lançado por João Gilberto, outro nome estelar que conecta o país ao radar sonoro mundial.
Na opinião de Georgiana de Moraes, filha de Vinicius que também enveredou pela música – Georgiana é cantora –, o trabalho com Tom foi decisivo na vida profissional e pessoal do pai. “As canções da parceria com Tom tornaram o reconhecido poeta Vinicius em compositor popular de enorme sucesso nacional e internacional. Em poucos anos, a dupla viu sua obra conquistar o mundo. Um período relativamente curto (entre 1956 e 1962), mas de enorme intensidade”, avalia.
Após a sucessão de composições, a carreira de ambos seguiu trilha particular. O reencontro aconteceu em 1977 e virou um disco ao vivo, registrado no show Tom, Vinicius, Toquinho e Miúcha, gravado no Canecão, tradicional casa de espetáculos do Rio de Janeiro.
O resultado dos anos de encontros e desencontros desses grandes artistas? Quase 50 canções, de samba e bossa nova até o poema sinfônico Sinfonia da Alvorada (1961), encomenda do presidente Juscelino Kubitscheck para a inauguração de Brasília. “Eram, além de parceiros musicais, grandes amigos”, confirma Georgiana. Com saudade do amigo, Tom Jobim escreveu em 1977: “Meu Vinicius de Moraes, não consigo te esquecer. Quanto mais o tempo passa, mais me lembro de você. Cadê meu Poetinha? Cadê minha letra, cadê? E morro neste piano, de saudade de você”.
Orfeu da Conceição (1956): Desde a década de 1940, Vinicius de Moraes ruminava a ideia de transportar o Orfeu da mitologia grega para uma favela carioca por meio de uma peça teatral. A estreia aconteceu no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. E foi por causa de Orfeu da Conceição que o veterano Moraes, à época com 43 anos de idade, iniciou sua parceria com Tom Jobim, um jovem de 29. Foram apresentados pelo crítico Lúcio Rangel. Vinicius convidou Tom para que, juntos, compusessem a trilha sonora da peça. Lisonjeado com o convite, mas “apertado” financeiramente por aqueles tempos, não teve pudores para perguntar ao poeta e diplomata: “Tem um dinheirinho nisso aí?”. Lúcio Rangel não pôde esconder o constrangimento. Mas a parceria deu frutos. E dos mais doces e saborosos.
Garota de Ipanema (1962): Havia uma primeira versão que para a dupla teria por título Menina que Passa. A letra foi composta em Petrópolis (RJ) por Vinicius, e a melodia em sua casa, no bairro de Ipanema. Alguns versos da composição diziam: Quando na tarde vazia / Tão linda no espaço / Eu vi a menina / Que vinha num passo / Cheio de Balanço / Caminho do mar... A dupla de autores acabou rejeitando o trabalho. A segunda e definitiva versão foi inspirada em Helô Pinheiro (Heloísa Eneida Menezes Paes Pinto), que, com 17 anos, passava, diariamente, em frente ao Bar do Veloso, no bairro de Ipanema, a caminho da praia. A primeira gravação, no Brasil, coube ao cantor Pery Ribeiro, em 1962. No mês de março de 1963 a composição ganhou versos em inglês de Norman Gimbel, passando a ser denominada The Girl From Ipanema, e foi gravada em Nova York pela cantora Astrud Gilberto (em inglês), com o seguinte time de músicos: João Gilberto (violão), Tom Jobim (piano), Stan Getz (saxofone tenor), Tommy Williams (contrabaixo) e Milton Banana (bateria). Daí para a frente, tornou-se um sucesso mundial arrebatador: na França, La fille d’Ipanema, com a cantora Jacqueline François; na Itália, La Ragazza di Ipanema, com a cantora Mina Mazzini; na Finlândia, Ipaneman Tyttö, com a cantora Laila Kinnunen. E mais uma curiosidade: Flavio Fonseca e Alejandro Cossavella gravaram Knabino el Ipanema – pasmem –, em esperanto.
Água de Beber (1963): Em meio ao projeto de construção de Brasília, o presidente da República Juscelino Kubitscheck faz um convite a Vinicius e Tom para passarem uma temporada na futura capital do país, a fim de se inspirarem a compor uma sinfonia que seria apresentada no dia da inauguração da cidade (a obra ganhou o título de Sinfonia da Alvorada). Juscelino mandara construir uma espécie de palácio de madeira, o qual foi apelidado de Catetinho. Próximo a ele havia um córrego. E, numa noite, caminhando ao lado do tal curso d’água, Tom Jobim pergunta a um dos trabalhadores da construção se aquela água poderia ser bebida. E a resposta foi direta: é água de beber, sim, senhor, camará. Nascia ali o samba que, além de inúmeras gravações de artistas brasileiros, foi registrado por Frank Sinatra.
COM DIREÇÃO MUSICAL DE DORI CAYMMI, DISCO TRAZ MÚSICAS DE TOM E
VINICIUS NA VOZ DE NANA CAYMMI
Nana Caymmi desbrava lindamente as composições da dupla de amigos em Nana, Tom, Vinicius (Selo Sesc, 2020), revelando o entrosamento musical histórico entre as famílias Caymmi e Jobim. As releituras ressoam a produção cuidadosa: Eu Sei que Vou te Amar, Soneto da Separação, Canção do Amor Demais, Valsa de Eurídice e As Praias Desertas são algumas das 12 faixas que compõem o disco gravado com a participação de instrumentistas brasileiros e da Orquestra Filarmônica de São Petersburgo, a mais antiga orquestra russa. Além de cuidar da direção musical, Dori Caymmi, irmão da cantora, também toca violão e é autor dos arranjos das versões interpretadas por Nana. O disco pode ser ouvido gratuitamente na plataforma Sesc Digital: https://sesc.digital/colecao/45665/nana-tom-vinicius.