Postado em 29/09/2020
Grandes ou pequenos, em papel ou digital, os livros abrem janelas para diferentes paisagens. Eles também se tornaram, de certa forma, um alento para milhões de leitores que mantêm o isolamento social em suas residências. Pequenas e médias livrarias criaram estratégias de venda e de entrega, enquanto grandes livrarias enfrentam mudanças drásticas. Já as plataformas digitais, essas dispararam em vendas. “O coronavírus pode até ter obrigado as livrarias a fechar as portas, mas o apetite dos leitores por novas histórias continuou – e os livros digitais tornaram-se aliados para manter o hábito de leitura durante o confinamento”, observa Rodrigo de Almeida, escritor, editor, consultor e diretor editorial. Contrariando a queda de números do começo da pandemia, nos últimos meses houve um aumento da venda de livros, segundo o Sindicato Nacional dos Editores de Livros.
Para Alexandre Martins Fontes, que há três décadas atua no mercado livreiro e editorial brasileiro, os tempos atuais são de cautela: “Vivemos momentos de muita aflição e de incertezas e, certamente, temos inúmeros desafios à nossa frente”. Qual será o futuro das livrarias? Os e-books irão abocanhar todo o espaço dos livros de papel? Essas e outras questões são levantadas por Almeida e Martins Fontes neste Em Pauta.
ALEXANDRE MARTINS FONTES
Ao longo de sua história, só em raríssimos momentos o Brasil pôde contar com um projeto político educacional corajoso, coerente, consistente, consequente. Estou convencido de que só através de uma educação universal (acessível, questionadora, abrangente, democrática, transformadora), uma sociedade pode garantir oportunidades iguais para todos. Infelizmente, como sabemos, estamos (sempre estivemos) muito longe dessa realidade. Ao contrário, nossa crônica incompetência nessa área, continua fazendo do Brasil “o país do futuro” mais antigo do mundo.
Nos últimos anos, tem se falado muito sobre uma crise mundial do livro. As pessoas estão lendo menos? O e-book veio para acabar com o livro em papel? A internet e as vendas online ajudam ou atrapalham o mercado livreiro? As livrarias físicas estão, de fato, com os dias contados?
Não sou muito apegado a exercícios de futurologia. Definitivamente, não tenho bola de cristal. Procuro sempre tomar muito cuidado com projeções e especulações para não cair em armadilhas do meu próprio pensamento ou de minha vontade de desenhar um futuro de acordo com meus desejos pessoais.
Dito isso, acredito, sim, que as pessoas estejam lendo menos. Assim como têm ido menos ao cinema, como leem menos jornais e revistas, como a audiência da novela não se compara àquela do início do século e por aí vai. A maneira como consumimos informação mudou drasticamente nos últimos tempos com o avanço da internet, a modernização de tablets e aparelhos de celular, os serviços de streaming, o surgimento dos podcasts etc.
Apesar disso, o livro tem se mostrado extremamente resiliente e capaz de se adaptar a essa nova realidade e de enfrentar esse universo altamente competitivo. Nos últimos 15 anos, tenho acompanhado, com alegria e entusiasmo, o surgimento de novas e vibrantes livrarias nas mais variadas cidades do mundo.
E por falar em livrarias físicas, não posso deixar de dizer que o debate entre e-book e livro em papel já não faz o menor sentido. Se voltarmos alguns poucos anos no tempo e examinarmos as projeções feitas por analistas acerca do percentual de mercado que seria ocupado pelo e-book em 2020 – e até antes disso –, veremos claramente o quanto essas projeções estavam erradas.
As previsões não chegaram nem de perto a se concretizar, especialmente no Brasil. Há quem diga que o livro digital ocupa 4% do nosso mercado, outros apontam que esse número esteja mais perto de 8%. Seja como for, para a maioria das editoras brasileiras, trata-se de um faturamento marginal, pouco relevante.
Nos Estados Unidos, nos últimos cinco anos, vem se verificando um aumento nas vendas de livros físicos e uma queda acentuada do e-book. Feita essa constatação, quero deixar claro que não vejo o livro digital como um concorrente do livro físico. Muito pelo contrário: como editor e livreiro, torço, isso sim, para que as pessoas leiam cada vez mais (independentemente do formato). E, certamente, o e-book não representa, em hipótese alguma, uma ameaça às livrarias físicas.
Aqui, entro numa outra questão importante quando se pretende examinar melhor o contexto do livro e da leitura no Brasil. Quem segue mais de perto o mercado editorial brasileiro certamente vem acompanhando as notícias sobre as recuperações judiciais de duas das maiores redes de livrarias do país. Não cabe entrar agora nos detalhes acerca dos motivos que as levaram a se aproximar do fundo do poço nem apontar o quanto eu lamento o que considero equívocos estratégicos cometidos por essas duas gigantes.
O que é preciso destacar é que no momento em que essas duas empresas, que representavam cerca de 30% a 40% do faturamento de muitas editoras, perdem boa parte de seu protagonismo, outras livrarias começam a ocupar o espaço deixado por elas. De minha parte, torço apenas para que esse espaço não seja ocupado por uma única empresa. No nosso segmento, quanto maior a concorrência, melhor.
Livro é cultura, e o Brasil precisa desesperadamente de mais livrarias espalhadas por suas ruas e cidades (e, é claro, também na internet). Neil Gaiman, autor inglês de grande sucesso internacional, afirma que “uma cidade não é uma cidade sem uma livraria. Livrarias físicas oferecem alegria e conhecimento, alimentam imaginação e criatividade, unem pessoas e ideias. Um país sem livrarias é um país sem alma, um país sem rumo. Assim, é preciso aplaudir movimentos que buscam fortalecer o pequeno livreiro e que vêm ganhando cada vez mais notoriedade. Campanhas como a #VemPraLivraria, ou o Projeto Retomada das Livrarias, lançado durante a pandemia, merecem o entusiasmado apoio de toda a sociedade civil brasileira.
E já que mencionei esse momento dificílimo que o mundo inteiro está enfrentando, vale analisar os impactos da pandemia do novo coronavírus no mundo do livro. Qual será o novo normal de um mercado que ao longo dos tempos pouco flertou com a normalidade? Num primeiro momento, vimos uma forte migração dos consumidores para lojas virtuais.
Com o confinamento, leitores, em todas as partes do globo, viram-se obrigados a comprar seus livros online. Da mesma forma, as vendas de e-books também cresceram. Isso confirma que as livrarias (pequenas, médias ou grandes) não podem jamais deixar de investir em tecnologia e ter uma presença online. Se alguém tinha alguma dúvida sobre esse assunto antes da pandemia, agora não há mais o que questionar.
TENHO MUITAS RAZÕES PARA CONTINUAR ACREDITANDO
NO FUTURO DO LIVRO E NO PAPEL FUNDAMENTAL
DAS LIVRARIAS FÍSICAS (PEQUENAS, MÉDIAS OU GRANDES)
Vivemos momentos de muita aflição e de incertezas e, certamente, ainda temos inúmeros desafios à nossa frente. Muito tem se falado sobre o impacto do aumento do preço do livro para a sociedade brasileira. Infelizmente, pouca atenção tem sido dada ao que acontecerá com as livrarias brasileiras caso isso acontença. Estudos mostram que uma livraria muito bem administrada trabalha com uma margem de lucro de 4 a 4,5%.
Sou categórico ao afirmar que a maioria das livrarias brasileiras não conseguirá arcar com o tributo proposto de 12% e, consequentemente, fechará suas portas. A sociedade brasileira não pode permitir que isso aconteça. Recentemente, ouvi do meu amigo Rui Campos, experiente livreiro, sócio-fundador da Livraria da Travessa, que nenhuma livraria é substituível. Nada poderia ser mais verdadeiro!
Apesar de todos esses desafios, continuo acreditando no futuro do livro e no papel fundamental das livrarias físicas. As livrarias devem se concentrar na sua verdadeira vocação. Além de vender livros, elas precisam ser um local de encontro; acolher a vida cultural das cidades ou dos bairros que ocupam; jamais abrir mão da luta pela absoluta liberdade de expressão e do debate de ideias; investir em eventos em que cada um de seus frequentadores tenha vez e voz; atuar na transformação e no enriquecimento da sociedade a sua volta. Dessa forma, as livrarias serão sempre vivas, atuantes, necessárias... insubstituíveis! Sejam quais forem as dificuldades do momento; sejam quais forem os governos.
Voltando ao começo deste artigo, a sociedade brasileira precisa se convencer, de uma vez por todas, da importância revolucionária da educação. Não podemos poupar esforços para transformar esse país em que vivemos (e que amamos) num lugar mais justo, mais igualitário, mais leitor. Temos um longo e gigantesco desafio à nossa frente. Apesar das muitas limitações, as editoras e livrarias brasileiras vêm, obstinada e incansavelmente, cumprindo seus papéis como empresas e contribuindo para a construção de um país melhor.
Vida longa aos livros e à leitura!
Vida longa às editoras e às livrarias!
Alexandre Martins Fontes é formado em Arquitetura pela Universidade de São Paulo (USP) e, há 30 anos, atua no mercado livreiro e editorial brasileiro como diretor-executivo da Editora WMF Martins Fontes e da Livraria Martins Fontes Paulista.
RODRIGO DE ALMEIDA
O cenário é de ficção científica, mas os relatos surpreendentes, dramas, conflitos, tragédias e impasses são bastante reais. Enquanto escrevo este artigo, contabilizam-se cerca de 960 mil mortos em todos o mundo, sendo mais de 136 mil no Brasil, numa pandemia que já infectou mais de 30 milhões de pessoas no planeta. Não há razão para duvidar que esses números serão extraordinariamente maiores no momento em que você estiver lendo – inclusive e sobretudo no Brasil, errático no enfrentamento da crise.
Os meses de quarentena, comércio fechado, exigências de isolamento social, uso de máscaras na rua e outros cuidados, bem ou mal cumpridos país afora, deixaram rastros sombrios – mais de 12 milhões de desempregados, renda em queda constante, aumento da informalidade e do subemprego, e dificuldades profundas para empresários e trabalhadores são algumas das sequelas econômicas.
Com tudo isso, seria de esperar que o livro, peça já combalida antes da pandemia, exibisse sinais adicionais de agonia. Livrarias e bibliotecas fechadas, menos dinheiro e mais incertezas amplificavam os prognósticos do desalento coletivo. Embora o comércio online já fosse responsável por cerca de 45% do faturamento de editoras, as livrarias físicas ainda são o cerne do negócio do livro no Brasil. E duas delas estavam em apuros antes mesmo da pandemia – o que já era ruim ficaria pior, muito pior.
E, de fato, os meses seguintes seriam trágicos, mas, apesar de tudo, o livro sobreviveu. E sobrevive. Depois da brusca queda e do prenúncio de crise histórica, o mercado mostrou recuperação. Longe de ser a ideal, mas ainda assim uma recuperação. O coronavírus pode até ter obrigado as livrarias a fechar as portas, mas o apetite dos leitores por novas histórias continuou – e os livros digitais tornaram-se aliados para manter o hábito de leitura durante o confinamento.
Tornou-se clássico um número divulgado ainda em abril, quando a Bookwire, que distribui e-books para cerca de 550 editoras no Brasil, anunciou a distribuição de 9,5 milhões de exemplares digitais, entre pagos e gratuitos. Um número correspondente a 80% do volume comercializado durante todo o ano de 2019 – um ano já relevante.
DECRETOS EM TORNO DO “APOCALIPSE DO LIVRO”
NÃO SÃO NOVIDADE – NEM VIERAM JUNTO
COM O LIVRO DIGITAL, COMO PODEM IMAGINAR ALGUNS,
NEM COM A PANDEMIA
A pandemia reafirmou uma convicção compartilhada por profissionais do livro mesmo nos piores períodos da crise recente: o Brasil enfrentou e enfrenta uma crise de modelo do mercado editorial, não uma crise de leitura; os meses de quarentena significaram um duro golpe contra as livrarias, atormentaram os pequenos livreiros, assustaram editores de todos os portes. Mas a leitura está lá. O fato é que a pandemia ajudou a formar novos leitores digitais e reafirmar o potencial do hábito de leitura no Brasil.
Ao mesmo tempo, inspiram-se questionamentos inevitáveis: fim do livro impresso? O que acontecerá com as livrarias? Quão longevos serão os hábitos nascidos do isolamento social? Qual o modelo capaz de conciliar o reforço do hábito de leitura com a sustentação financeira do mercado editorial? A extensa e frágil cadeia produtiva do livro, envolvendo autores, editores, produtores, gráficas, livrarias e... leitores.
Quem trabalha com livros precisa ser, antes de tudo, um otimista. Mas otimismos, no Brasil, requerem engenho, criatividade e muito trabalho. Se essa tríade é fundamental para a sobrevivência do mercado num país de ciclos econômicos de altos e baixos constantes, e de desigualdades profundas, ela se torna ainda mais relevante num momento de redefinições de modelo.
Decretos em torno do “apocalipse do livro” não são novidade – nem vieram junto com o livro digital, como podem imaginar alguns, nem com a pandemia. Anos atrás, em visita ao Brasil, o historiador Robert Darnton, diretor da Biblioteca da Universidade de Harvard, lembrou que, em 1928, Walter Benjamin já dizia que, ao que tudo indicava, o livro estaria chegando ao seu fim. Não chegou. A publicação de livros não parou de crescer.
No universo da leitura no Brasil, uma palavra-clichê me parece o caminho adequado: convergência. As pessoas se esquecem que o livro é uma tecnologia – foi inventado e exige certos conhecimentos para ser utilizado. É inegável que o livro sobrevive também à custa do surgimento não só de novos suportes como até mesmo de novas estruturas narrativas e novos gêneros literários, nascidos das próprias mudanças tecnológicas e das consequentes alterações de hábitos e gatilhos mentais.
Acredito no princípio da coexistência. Não pelo romantismo estéril, que recorre à certeza de permanência do livro porque, nas palavras clássicas de Monteiro Lobato, um país é feito de homens e livros (no que José Olympio acrescentou “e ideias”). O pior erro para quem trabalha com o livro é se ancorar nas premissas da inércia e da tradição – a convicção de que certos e velhos hábitos dificilmente morrem. Sua excelência, o leitor de livros, certamente discordará.
A indústria do livro pode se inspirar na indústria fonográfica, para não cometer os mesmos erros. Lembremo-nos que, em 1999, um garoto, audacioso, arrogante e maluco chamado Shawn Fanning criou o Napster, site de compartilhamento de arquivos. Num piscar de olhos, a indústria fonográfica perdeu totalmente o controle sobre sua principal fonte de receita: a música. Faixas e mais faixas foram parar na web, o Napster acabou perdendo a batalha jurídica, mas mudou para sempre o setor. Anos depois, os executivos da indústria fonográfica admitiram que demoraram para tomar uma atitude e rever seus próprios modelos.
A indústria do livro não pode cometer os mesmos erros. É fato que a estrutura competitiva da indústria editorial foi fundamentalmente alterada nos últimos anos e está sob sério risco devido ao poder concentrado e à influência de uma empresa em particular – a Amazon. É fato que o modelo de grandes redes mostrou sua debilidade; que a vida é extremamente arriscada para pequenos editores e livreiros; que os padrões existentes no relacionamento da cadeia são desfavoráveis para muitos e concentradores. Que autores ainda são o elo mais prejudicado dessa mesma cadeia. Mas também é fato que se trata de um mercado que muda a passos lentos, preso a dogmas, certezas, modelos tradicionais e trilhas conhecidas.
A cabeça do leitor, no entanto, é mais sábia e mais aberta a novas experiências. Se isso não significa que migrará em massa para o livro digital, deixando o livro impresso à deriva, também não significa que voltará ao estado pré-pandemia. Se é verdade que muitos recorreram ao livro digital pela ausência de lojas físicas, também é verdade que ganham força inquestionável o comércio eletrônico, as livrarias online e as possibilidades de alcance do livro fora dos territórios consagrados (inclusive o território nacional).
As exigências, mudanças e expectativas deste leitor provocarão alterações de longo prazo. As belíssimas iniciativas de livreiros independentes, com entregas criativas, o agudo crescimento do e-commerce, a busca de novos mercados, a reação ágil e engenhosa de muitas editoras, a busca por novos mercados e novos modelos, tudo que se percebeu ao longo desta dolorosa pandemia deve gerar frutos positivos quando ela passar. O maior beneficiário dessas mudanças é e será a razão da existência de quem trabalha com livro: o leitor.
Rodrigo de Almeida é jornalista e cientista político. Foi editor em editoras como Ediouro e LeYa e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). É editor, consultor, diretor editorial da Buobooks.com e diretor-executivo da Pensata Comunicação & Cultura. Autor de À Sombra do Poder: Bastidores da Crise Que Derrubou Dilma Rousseff (LeYa) e O Brasil Tem Jeito? (Zahar), entre outros livros.