Postado em 31/10/2020
1.
luis me aconselha a trancar
a porta do quarto para dormir
a casa por algum motivo de dia
é grande mas de noite é ainda maior
quando chego
por onde passo
fecho as portas atrás de mim
que é para não me espalhar demais
para caber nesse cômodo
onde tudo esteja à vista
lá fora na praça
as pessoas não dormem nunca
fabricio escreveu que em são paulo
não faz noite pra valer
o céu nunca fica preto preto
tem noites mais pro rosa e noites
que puxam pro verde
e quando ele se mudou pra cá
não conseguia pregar o olho
com tanta claridade simplesmente
não conseguia
marilia me diz que um bebê
de seis semanas
com dois milímetros já tem
um coração que bate e que aparece
como um ponto piscando nos exames
kammal da minha janela
ao ver a obra do teatro
que há muitos anos pegou fogo
o barulho incessante dos guindastes e tratores
diz que a terra aqui
é vermelha
mas no rio é de que cor?
no rio se você cavar fundo
só vai achar areia?
agora toda vez que olho
pela janela de manhã
repito sem me dar conta
a terra aqui
é vermelha
2.
tem um poema de t.s. eliot que diz
o rio é dentro de nós
e o mar é o que fica em volta
as veias sobem e descem
num movimento que se pensar demais
arrisca parar de funcionar
as veias do meu avô não estão bombeando
a dose certa de oxigênio
mas o medo de escrever isso
é que se algo acontecer com ele o poema
vai virar uma espécie de maldição
semana que vem o bebê na barriga
completa cinco meses
os bebês na barriga quando se desenvolvem
passam por todas as etapas
da vida na terra
quer dizer começam como um grão um nada
quase um micróbio que o corpo da mãe
pode tentar expelir
como um ser estranho e perigoso
depois o embrião vira um invertebrado
um peixe nadando com cauda e sem pálpebras
até ganhar coluna vertebral
e feições humanas
se pensar bem até mesmo
o feto boiando no líquido amniótico
de certo modo imita
a forma gorda do planeta
agora está começando a esquentar
nos dias de verão a praça fica cheia
quarta-feira é dia de circo
assisto da janela
a mão esquecida
apoiada na barriga
3.
de manhã bem cedo fomos tomar
sol na praça
e uma senhora com o labrador
que sempre tem algo a dizer disse
você não devia sair sem meias
está muito frio para o menino
ficar fora de casa
da outra vez ela disse
que ele estava um pouco amarelo
deve ser icterícia
era a primeira vez que saíamos de casa
e o médico mais tarde
confirmou o diagnóstico
a um filho não se deve
ensinar a não ter medo
a um filho se deve ensinar
a ter os medos certos
a não derrapar na borda da piscina
a não se esgueirar na janela
a não ficar obcecado de paixão
a não dirigir embriagado
a não perder o fio da meada
a um filho se deve ensinar
que o medo em alguns casos pode ser
chamado de cautela
e que o medo em alguns casos
pode inspirar coragem
e quase nada
é mais bonito que coragem