Postado em 28/02/2021
RUTH ESCOBAR DESBRAVOU TEATRO E POLÍTICA DE MANEIRA CONTUNDENTE
Conhecida pelo semblante altivo e o sorriso à mostra, a atriz, produtora e deputada estadual (em duas gestões, eleita pelo MDB, em 1983-1986 e 1987-1990) Ruth Escobar viveu intensamente, propondo inovações teatrais e desafiando os limites da atuação política. Ao transitar com desenvoltura nessas plataformas, desafiou convenções e fez de sua trajetória um marco. “Ela era uma personagem extremamente polêmica e de muitos ângulos. Ela tinha um papel que fazia questão de interpretar: o da agitadora cultural. E assim viveu. Acompanhei a Ruth em todo esse percurso como grande mobilizadora das questões culturais. No golpe de 1964, por exemplo, ela ia na polícia tentar liberar quem estava preso”, destaca o ator Sérgio Mamberti.
Foi ainda uma liderança teatral inconteste, por meio de suas montagens e em sua capacidade de unir diferentes áreas do pensamento e da política. “Ruth sempre foi uma grande batalhadora, ousada, com uma coragem singular, e nunca deixou de lado, em tudo o que fez no teatro e por ele, seu comprometimento social e político”, atesta o sociólogo e produtor cultural João Carlos Couto (Janjão), que conviveu com ela em muitas situações. Primeiro como espectador das peças Cemitério de automóveis e O balcão, entre os anos 1960 e 1970; e, posteriormente, como colaborador, quando Ruth Escobar o chamou para ajudá-la a retomar seus festivais internacionais de teatro. “Foi um primeiro e rápido encontro, no apartamento dela, que estava de saída para uma viagem. Tudo muito rápido, como a maior parte de suas decisões; no dia seguinte eu já estava trabalhando para a montagem da quarta edição do festival”, conta Janjão.
O produtor lembra que não permaneceu até o fim daquela edição, mas retornou à equipe na seguinte, trabalhando com a atriz de 1994 a 1999. “Os quatro festivais em que estivemos juntos foram grandes êxitos. Falamos de um tempo em que o acesso de São Paulo e de todas as cidades a essas atividades era muitíssimo reduzido. Nossos espaços para teatro eram bem mais escassos e não existiam as redes sociais, nem YouTube ou Vimeo!”, destaca.
Nascida Maria Ruth dos Santos, na cidade do Porto, em Portugal, em 1935, mudou-se para o Brasil em 1951, e alguns anos mais tarde casou-se com o filósofo e dramaturgo Carlos Henrique Escobar. Em 1958, o casal partiu para a França, onde nasceu o primeiro filho. Em uma das muitas imagens que ilustram a biografia escrita pelo jornalista Alvaro Machado, [...] metade é verdade – Ruth Escobar (Edições Sesc São Paulo, 2020), surge uma foto de 1958 da jovem mãe no leito de uma maternidade francesa, segurando o recém-nascido enquanto olhava para a câmera. No ano seguinte, Ruth retornou a São Paulo, para o bairro do Mandaqui. Logo a família transferiu-se para a região central da cidade. Nessa época, concretiza-se a vontade de ter seu próprio teatro. Para tal, Ruth mobilizou várias frentes. Fundou a cooperativa Novo Teatro, em parceria com o diretor Alberto D’Aversa, trabalhou como atriz em Mãe Coragem e seus filhos (1960, de Bertolt Brecht (primeira peça da cooperativa), além de Antígone América (1962), de Carlos Henrique Escobar. O teatro homônimo chegou em 1964, instalado na rua dos Ingleses, no bairro da Bela Vista. Na programação de estreia, outro Brecht, A Ópera dos Três Vinténs, com canções de Kurt Weill.
O ator e diretor Sérgio Mamberti foi um grande amigo da atriz e diretora quando a conheceu na década de 1950, assim que havia se mudado para a capital paulista.
Com ela conviveu antes mesmo da dedicação da então repórter e editora de revista ao teatro. “Na região da Biblioteca Mário de Andrade, andávamos juntos com o Henrique Escobar, com quem ela depois veio a se casar. Aquele local era um centro de encontro de jornalistas, artistas, poetas, estudantes de teatro”, conta Mamberti.
O ator lembra ainda que, assim que Ruth Escobar voltou da Europa, foi convidado pela amiga para fazer Antígona, América (1962). “Desde então, eu passei a conviver muito com ela, a frequentar a casa dela, trocar fralda de filho”, recorda Mamberti, que também atuou em Romeu e Julieta e O Balcão, ambos espetáculos do final da década de 1960, a convite de Ruth - montagens consideradas clássicas no teatro brasileiro.
Sobre essa época, Janjão revive outro momento: “Não posso esquecer que foi no Teatro Ruth Escobar que vi Roda viva. Ruth não estava em cena, mas era uma das produtoras e assumiu a linha de frente no enfrentamento à censura e às agressões sofridas pelo elenco quando da invasão do teatro pelo CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Roda viva, escrita por Chico Buarque e dirigida por José Celso Martinez Correa, foi um dos maiores símbolos de resistência contra a ditadura”.
Se hoje o intercâmbio entre países é rotineiro na cena brasileira, é porque figuras como Ruth Escobar desbravaram esse percurso. Ela lançou os festivais de teatro internacionais no país e fomentou colaborações com diretores estrangeiros, gerando um fluxo inédito. “A primeira colaboração internacional em uma produção brasileira foi dela”, confirma o biógrafo Alvaro Machado. Antes da ação da atriz e empresária, era comum que companhias internacionais visitassem o Theatro Municipal de São Paulo para temporadas, porém “ela passou a convidar diretores importantes” de diferentes nacionalidades para desenvolver espetáculos, como o argentino Victor García. Depois dele, “franceses e ingleses foram convidados para dirigir produções realizadas por Ruth”. Como o norte-americano Robert Wilson.
Para Maria Lívia Nobre Goes, mestranda em artes cênicas com pesquisa sobre o teatro brasileiro na oposição à ditadura e integrante da Companhia do Latão, a principal atuação de Escobar em favor de artistas militantes foi como produtora, acolhendo “encenações de oposição à ditadura e atos contra a censura”. No traçado político, ingressou, em 1980, no “MDB e na fundação da Frente de Mulheres Feministas”, alocada em seu teatro. “A partir de então, sua atuação se volta à pauta das mulheres, que orienta seus mandatos como deputada estadual e sua presença nos debates sobre a Constituição Federal de 1988”, contextualiza Goes.
A dramaturga Ave Terrena, também diretora teatral e professora da Escola Livre de Teatro de Santo André, que realizou em 2018 a dramaturgia de As 3 Uiaras de SP City, incluiu na peça uma passagem emblemática de Ruth Escobar como deputada estadual. “Na pesquisa histórica que desenvolvemos no grupo LABTD (Laboratório de Técnica Dramática), o foco era a ditadura militar. Quando investiguei os documentos escritos e relatos orais relacionados à temática das operações de perseguição às travestis no centro de São Paulo (Tarântula, Rondão, Arrastão, Limpeza, entre outras), me deparei com referências a políticos que participaram da mobilização encabeçada pela sociedade civil contra as violações de direitos humanos de diversos grupos populacionais. Entre eles estava Ruth Escobar”, conta. O livro de Alvaro Machado traz imagens desses episódios.
Ruth Escobar foi escolhida personalidade do ano e levou o troféu Roquette Pinto (1969) pela produção da peça O balcão, com encenação do argentino Victor García; o autor Jean Genet, lenda da literatura francesa, esteve presente à estreia; Em 1974 trouxe pela primeira vez aos palcos brasileiros o dramaturgo Robert Wilson. A peça Time and Life of Joseph Stalin teve o título alterado pela censura para Time and Life of David Clark – a peça, encenada no Theatro Municipal de São Paulo tinha a duração de 12 horas. Em meio à atuação política, em 1987, lançou Maria Ruth – uma autobiografia (edição esgotada). Em 2001, realizou seu último espetáculo, Os Lusíadas, inspirado no poema épico de Luís de Camões. Padecendo do mal de Alzheimer, a atriz faleceu em 5 de outubro de 2017, aos 81 anos. O teatro Ruth Escobar, referência cultural e política do Brasil, continua em atividade no alto da rua dos Ingleses, em São Paulo.
Personalidade sempre ativa, incentivadora e líder cultural, Ruth continua sendo lembrada por dezenas de seus amigos. “Minha relação com ela foi algo muito importante na minha vida. E, até o final, eu estive muito próximo dela. Tive a oportunidade de vê-la em vários momentos que foram flagrados pelo Alvaro (Machado) nesse trabalho primoroso, que é esse livro. Ruth marcou presença como uma das figuras mais importantes da cultura brasileira”, atesta Sérgio Mamberti.
ENTRE INÚMERAS REALIZAÇÕES, MERECEM DESTAQUE ALGUMAS PEÇAS ANTOLÓGICAS
Festivais Internacionais de Artes Cênicas (1974-1999)
Ao todo, oito Festivais Internacionais de Artes Cênicas foram organizados por Ruth Escobar em São Paulo, em 1974, 1976, 1981 e, depois, anualmente de 1994 a 1999 [exceto em 1997], (alguns deles em parceria com o Sesc), representando em seu conjunto um desafio tão monumental quanto pioneiro no país. O crítico Sábato Magaldi chegou, na época, a equipará-los, em sua função, às Bienais Internacionais de São Paulo no que dizia respeito à abertura para um diálogo continuado com as vanguardas artísticas de diferentes partes do mundo. Na primeira edição estiveram presentes referências capitais como Jean Genet e Robert Wilson.
I Festival Nacional das Mulheres nas Artes (1982)
Com seleção de 257 programas e cerca de 860 participantes, o festival, dedicado “a las locas de la Plaza de Mayo”, contou com as principais figuras femininas do país em artes visuais, música, teatro, dança, cinema e literatura. Do exterior, vieram a cantora argentina Mercedes Sosa, que se apresentou com Clementina de Jesus, e a atriz francesa Annie Girardot, entre outras. Definido por Escobar como “seis festivais [seis artes] num único evento”.
Cemitério de automóveis (1968)
Peça que inaugura a produção artística internacional sediada pelo Teatro Treze de Maio, é o primeiro espetáculo brasileiro de vanguarda cênica comissionado a um criador estrangeiro não estabelecido no país. Com direção do argentino Victor García, trata-se de uma colagem de fragmentos de peças do espanhol Fernando Arrabal. No elenco, a própria Ruth Escobar, Íris Bruzzi, Stênio Garcia, entre outros.
BIOGRAFIA REAFIRMA TRAJETÓRIA DINÂMICA EM RICO MATERIAL DE PESQUISA DE TEXTOS E IMAGENS
A obra [...] metade é verdade – Ruth Escobar (Edições Sesc São Paulo, 2020) é uma biografia de fôlego em sua forma, com mais de 600 páginas e de 400 imagens. Para reunir um extenso material sobre essa artista multifacetada, o autor, Alvaro Machado, dedicou quatro anos a investigações que passaram por mais de 400 caixas de documentos e 1500 fotografias, tudo de um acervo pessoal de Ruth Escobar, além de entrevistas e de documentos jornalísticos. “Eu não conhecia nem 70% das ações e realizações de Ruth Escobar antes de começar a pesquisa e achava que sabia bastante coisa por conta da minha idade, 65 anos, e por ter vivido boa parte da vida cultural a partir da década de 1970”, conta o escritor.
Ao final, Alvaro convida o público a esse mergulho profundo sobre a vida e obra dessa personagem histórica. “As pessoas que já leram o livro tiveram a mesma sensação que tive: admiração e espanto pela abrangência e multiplicidade das ações dessa grande figura”, acrescenta. Saiba mais sobre esta e outras obras lançadas pelas Edições Sesc São Paulo pelo site: www.sescsp.org.br/edicoessescsp.