Postado em 31/03/2021
A implementação da Companhia Cinematográfica Vera Cruz na virada dos anos 1950, em São Bernardo do Campo (SP), foi um capítulo importante para a industrialização e o desenvolvimento do cinema no Brasil. A companhia possuía grandes estúdios, técnicos especializados e maquinários modernos para a época. Para contar um pouco dessa história, com foco nas atribuições profissionais e nos papeis simbólicos das mulheres que trabalhavam no cinema brasileiro, o Sesc Vila Mariana lança em seu canal do YouTube a série "As Mulheres da Vera Cruz", que estreia em 7/4. Quem apresenta os vídeos é a Profª Drª Ana Carolina de Moura Delfim Maciel, autora do livro "Yes nós temos bananas". Cinema industrial paulista: a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, atrizes de cinema e Eliane Lage. Brasil, anos 1950 (Alameda Editorial, 2011), e de capítulos de livros e artigos sobre historiografia e audiovisual, memória, biografia e cultura material.
Na entrevista a seguir, a pesquisadora apresenta uma introdução sobre a Vera Cruz e destaca alguns pontos que serão abordados na série, como a atuação do produtor italiano Alberto Cavalcanti, o legado da companhia, a relevância da atriz Eliana Lage e a tentativa de implantar um star system nacional. Bacharel em História, mestre em Multimeios e doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (2008), onde atua como docente e presidenta da Comissão Assessora da Cátedra Sérgio Viera de Mello - ACNUR/UNICAMP, Ana Carolina também é diretora de filmes documentários (filmografia disponível aqui).
Qual a relevância de pesquisar a história do cinema brasileiro, mais especificamente, da Companhia Cinematográfica Vera Cruz ?
A meu ver, a história do cinema brasileiro precisa ser analisada e redimensionada, pois desde os primórdios da produção cinematográfica nos deparamos com entraves ainda determinantes nos dias atuais. Ao longo de todo século XX presenciamos “surtos” cinematográficos esparsos, com alguns momentos promissores, seguidos por entressafras caracterizadas por uma produção incipiente. Nesse limiar do século XXI ainda dependemos de subsídios governamentais, que oscilam de acordo com as políticas culturais vigentes. Dessa forma, não conseguimos estabelecer uma produção em escala e, consequentemente, enfrentamos dificuldades de conquistar mais espectadores, além do fato de “competirmos”, no circuito exibidor, com filmes produzidos em estúdios norte-americanos que dominam a programação das salas de cinema restando aos filmes nacionais pequeno, ou nenhum, espaço. Nesse sentido, a criação da Companhia Cinematográfica Vera Cruz ainda é marcante, pois tentou reverter esse quadro com a proposta de produção em escala industrial, idealizada pelo italiano Franco Zampari (1898-1966) e Francisco Matarazzo Sobrinho, comumente conhecido como Cicillo, (1898-1977) que, inspirados no sucesso das peças do Teatro Brasileiro de Comédia, ousaram produzir cinema em solo brasileiro, algo que possibilitou a produção de dezoito longas metragens num curto período de cinco anos, saldo ainda relevante considerando as dificuldades em se produzir cinema sete décadas após o surgimento dos estúdios paulistas. Para realizar filmes com a qualidade desejada, eles incumbiram o produtor Alberto Cavalcanti (1897-1982), então radicado na Europa, de trazer uma equipe profissional atuante no cinema internacional. Em 1949, Cavalcanti morava na Inglaterra e passou uma temporada em São Paulo, onde proferiu uma série de palestras no Automóvel Club, na Federação das Indústrias e Comércio, que tinham como propósito discutir a viabilidade técnica e econômica para a implantação de uma indústria de cinema no Brasil. Além disso, proferiu uma série de palestras no nascente “Centro de Estudos Cinematográficos” sediado no Museu de Arte de São Paulo (MASP), foi nesse momento oportuno que Cicillo e Zampari o contrataram como produtor geral da Vera Cruz. Com a chegada de Cavalcanti, teve início uma rivalidade interna na Vera Cruz entre os técnicos por ele contratados e o grupo “dos italianos”, em grande parte oriundos do TBC. Isso gerou uma série de polêmicas e intrigas, impulsionadas em grande parte pela saída de Alberto Cavalcanti da Companhia, ou seja, em 1951. A convivência - propiciada pela Vera Cruz - foi extremamente conflituosa; sendo por vezes inclusive atribuída aos “italianos” a culpa do malogro da industrialização do cinema brasileiro.
Imagem: Estúdios Vera Cruz
A saída de Alberto Cavalcanti foi determinante para as dificuldades encontradas pela Vera Cruz?
Na verdade, a saída de Cavalcanti foi um primeiro grande abalo nos planos de industrialização do cinema brasileiro, a isso deve se somar o alto custo para montar os estúdios e compra de equipamentos, os orçamentos para realização dos filmes que levariam em média cinco anos para amortizar os investimentos, a dificuldade enfrentada para distribuição dos filmes, uma vez que o mercado era dominado por filiais de empresas norte-americanas, tais como a Universal e Colúmbia Pictures, que tinham mais interesse em escoar suas próprias produções, os empréstimos bancários que fizeram com que a Companhia tivesse que empenhar todos seus bens. O lucro dos filmes, muitos dos quais renderam muita bilheteria, não era suficiente para alavancar outras produções e honrar compromissos bancários. Em 1954, com todos os bens empenhados e procurando reverter o inevitável, a empresa fez mais um empréstimo no Banco do Estado de São Paulo. Impossibilitados de sanar as dívidas corrigidas com juros crescentes, o controle acionário da Companhia passou para o banco credor. Em linhas gerais foi assim que a industrialização do cinema brasileiro fracassou, passadas sete décadas e esse ainda é um projeto inatingível. Para quem quiser aprofundar essa análise sugiro consultar o meu livro "Yes nós temos bananas". Cinema industrial paulista: a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, atrizes de cinema e Eliane Lage. Brasil, anos 1950 (Alameda Editorial, 2011).
Quais eram os papéis destinados às mulheres na Vera Cruz, e no audiovisual em geral, na época?
Temos notícia de mulheres atrizes atuando no cinema brasileiro desde os primórdios do século XX, quando ainda havia muito preconceito contra essa carreira, atrizes tinham “má reputação” e poucos espaços eram ocupados pelas mulheres. Ainda nos anos 1950, várias atrizes que entrevistei relatavam isso. Os papéis eram bastante variados, pois a Vera Cruz pretendeu realizar filmes de vários gêneros. Se pensarmos especificamente nos filmes que Eliane Lage atuou, por exemplo, havia espaço para “Marina”, a protagonista de Caiçara uma jovem de origem humilde e enigmática que tenta se desvencilhar de um marido indesejado; Ângela, por sua vez, era baseado no conto “Sorte no Jogo” de Hoffman, e a protagonista que dá nome à trama fica às voltas com o sofrimento causado pelo marido viciado em jogo, enquanto "Sinhá Moça" é um épico sobre a escravidão e Eliane Lage desempenha o papel principal como filha de um fazendeiro escravocrata contra o qual se rebela. E, finalmente, em Ravina (realizado pela Brasil Filmes) ela era uma jovem sedutora. Com uma diversidade de argumentos tal como esta, os papéis variavam muito, o que se estende para toda a filmografia da Vera Cruz. As atrizes não encarnavam “tipos” mas se encaixavam aos gêneros e temáticas que os filmes lhes exigiam.
Eliane Lage (imagem: Estúdios Vera Cruz)
Quais atrizes foram expoentes?
Sem margem de dúvida, Eliane Lage foi moldada como a estrela de primeira grandeza dos estúdios da Vera Cruz, ao contrário de algumas atrizes dos estúdios que acumulavam experiência pregressa no cinema ou teatro, Lage tinha outra trajetória de vida. Filha da família Lage, que no começo do século XX detinha um império que englobava estaleiros e mineradoras, ela havia passado alguns anos vivendo na Europa e Grécia, quando em 1949, de volta ao Brasil, participou de um jantar oferecido por Francisco Matarazzo e Franco Zampari aos técnicos estrangeiros que chegavam ao Brasil para trabalhar na Companhia Cinematográfica Vera Cruz, e conhece Tom Payne, que chegava da Inglaterra para ocupar cargo de diretor cinematográfico na companhia. Eles se apaixonaram e, conforme ela afirmava reiteradas vezes, foi esse o motivo que a fez decidir ser atriz. Ela era uma estrela fora dos moldes e não se encaixava no perfil comportamental das “stars” hollywoodianas, tal como a imprensa brasileira pretendia divulgar as atrizes nacionais. Avessa à badalação, ela se esquivava dos “holofotes”, sendo que as revistas especializadas da época – tal como a Cinelândia – exploravam essa postura “outsider”, comparando-a com a atriz sueca Ingrid Bergman, que também havia optado por uma vida reclusa.
Além de Eliane Lage, tínhamos nos estúdios as atrizes Tônia Carrero, Ilka Soares, Ruth de Souza, Marina Freire, Maria Fernanda, Marisa Prado, Cleyde Yaconis, Cacilda Becker, Gilda Nery, Leonora Amar e Inesita Barroso, apenas para citar aquelas que tiveram papéis com maior destaque. Lamentavelmente, a trajetória profissional da maioria delas ainda precisa ser redimensionada, hoje em dia pouco se sabe sobre as estrelas da Vera Cruz.
Inspirado pela era do ouro de Hollywood, a Vera Cruz é conhecida por implantar o star system em seu modo de produzir. O que seria esse star system e qual a repercussão desse método junto ao público, imprensa e outras produtoras?
Ao consultar revistas nacionais circulantes nos anos 1950 é possível notar um processo de divulgação voltado para a implantação de um star system made in Brazil. São inúmeros exemplos de “estrelas” que povoavam as páginas das revistas nacionais, algumas destas sequer tiveram a chance de participar de filmes. Cientes da importância desse canal de comunicação, a Vera Cruz estruturou internamente um departamento de publicidade que, atento à fórmula norte-americana, divulgava seu cast exclusivo no mercado nacional, apostando nesse importante meio de difusão que eram as revistas de atualidades tais como, Manchete e Cruzeiro e, principalmente, aquelas especializadas em cinema tais como Cinelândia e Cena Muda. No auge de seu funcionamento, a Vera Cruz enviava para aproximadamente 600 veículos de comunicação imagens e textos informativos sobre suas produções, seus bastidores e seu elenco. Como a produção nacional não era expressiva, e faltavam filmes e atores, as revistas intercalavam notícias do cinema hollywwodiano com os mais variados assuntos relacionados ao cinema nacional para preencher suas edições.
Revista Cinelândia (imagem: Reprodução)
A Cinelândia era uma revista de grande circulação nesse período e apresentava proposta gráfica semelhante à congênere norte-americana Photoplay. Para nutrir seus editoriais, Cinelândia mantinha correspondentes e comentaristas nos Estados Unidos (e também na Europa); além de acordos com a Dell Publishing Company e a Margood Publishing Corporation, ambas sediadas em Nova Iorque. Além das informações estritamente relacionadas ao cinema, tais fontes divulgavam uma nova imagem da mulher moderna. Ícones da publicidade e lançadoras de modismos, atrizes estrangeiras (e por vezes nacionais) surgiam como consumidoras de uma ampla variedade de produtos: pasta dental Kollynnos, sabonete Eucalol, maquiagem Max Factor e Coty, cigarros e cremes embelezadores.
Além das atrizes e dos produtos de consumo, os termos estrangeiros também se faziam presentes lançando modismos: assim determinada star tinha “it”, “sex appeal” era “vamp”. Tendo como paradigma ídolos já consagrados, ressaltavam-se possíveis traços de semelhança entre brasileiras e hollywoodianas (não necessariamente norte-americanas natas, como era o caso de várias atrizes da época). Para citar um exemplo do elenco da Vera Cruz, a atriz Eliane Lage era caracterizada como um “misto” de semelhança entre Greta Garbo e Ingrid Bergman. É notável que essa associação tenha atravessado décadas, voltando à baila em várias entrevistas que captei com seus contemporâneos. O produtor José Luiz Francunha afirmava que ela era “a nossa Greta Garbo”. Já o montador Mauro Alice se dizia responsável pela comparação: “De verdade, ela era a nossa Ingrid Bergman (...) Eu que inventei, eu que descobri, porque eu acho que ela era a minha Ingrid Bergman”.
Até mesmo as leitoras participavam dessa busca de similitude, que poderia ser comprovada por meio de concursos, tal como foi divulgado pela revista Cena Muda: “Grande concurso Hollywood – quem se parece com as estrelas?”. Para concorrer bastava comprovar semelhança com determinada atriz.
Mas, como uma produção periférica e que caminhava lentamente – face ao sistema de produção hollywoodiano -, o star system brasileiro caiu no esquecimento antes mesmo de se consolidar. No que diz respeito às atrizes dos anos 1950 foram poucas que conseguiram continuar atuando, seja no cinema no teatro ou na televisão, após a bancarrota da Companhia.
Durante a pesquisa, você conheceu algumas pessoas que trabalharam na Vera Cruz. Qual o sentimento que relataram em relação à memória da Companhia?
Durante minha pesquisa de doutorado, tive o privilégio de entrevistar vários profissionais que trabalharam na Vera Cruz, desde técnicos, passando por atores e atrizes e produtores, resultando em horas de gravação. Foi um trabalho quase “arqueológico” para conseguir encontrar esses remanescentes. Nesse sentido, gostaria de destacar o papel fundamental desempenhado pelo diretor Galileu Garci, que mantinha contato com vários antigos colegas e intermediou meus contatos iniciais. Durante as gravações das entrevistas afloraram muitas mágoas e frustrações pela incompreensão, ou até mesmo pelo progressivo esquecimento da importância da Vera Cruz na cena cinematográfica brasileira. Entrevistei o próprio Galileu Garcia, o montador Mauro Alice, Máximo Barro, o produtor José Luiz Francunha, o cenógrafo Pierino Masenzi e o diretor Fabio Carpi (ambos italianos), a secretária Gini Bretani, as atrizes Ruth de Souza, Ilka Soares, Inesita Barroso, Vanja Orico, Eliane Lage, Vera Sampaio, os atores Anselmo Duarte e Pedro Paulo Hatheyer. Foi muito importante esse trabalho de coleta de depoimentos, pois pude constatar vários olhares sobre essa experiência que apontavam êxitos, alguns equívocos, mas sobretudo redimensionavam e traziam do obscurantismo dados importantes pautados no testemunho de pessoas que, efetivamente, vivenciaram a Vera Cruz.
Na década subsequente à fundação da Vera Cruz, mais precisamente em 1963, foi lançado o livro Revisão Crítica do Cinema Brasileiro de autoria de Glauber Rocha. Em suas afirmações somam-se exemplos de críticas e desqualificações aos estrangeiros que, segundo ele, tiraram a oportunidade de cineastas brasileiros. Há uma tendência crítica que considera que os “estrangeiros”, por desconhecerem a cultura brasileira, foram, em grande parte, culpados pelo insucesso da Companhia. Tal juízo de valores atravessou décadas e instaurou uma certa tendência em analisar a cinematografia da Vera Cruz por esse viés. Nos anos 1970, o crítico literário Antônio Candido de Mello e Souza contestava tal postura em sua arguição proferida na defesa de tese da historiadora Maria Rita Galvão, nomeando um aspecto velado nesse percurso crítico da presença dos italianos (ou dos estrangeiros em linhas gerais) nas telas brasileiras: “preconceito”. Sete décadas passadas, considero que nos seja possível refletir o legado da Companhia Cinematográfica Vera Cruz extrapolando oposições dicotômicas. Só assim poderemos anistiar os italianos e refletir porque ainda não possuímos uma indústria de cinema nacional.