Postado em 30/04/2021
O alto custo de vida, a possibilidade de trabalhar remotamente, o sonho de “uma casa no campo, onde eu possa ficar do tamanho da paz”, como cantou Elis Regina. Essas são algumas motivações que – isoladas ou somadas – estão conduzindo uma determinada parcela da população a deixar as metrópoles. “No presente, há um movimento crescente de pessoas procurando moradia em lugares afastados do perímetro urbano, como o campo e regiões litorâneas, motivadas pelo desejo da experiência de viver em outro contexto sociocultural, pela melhoria da saúde (emocional e física) e qualidade de vida”, observa Fabelis Manfron Pretto, professora colaboradora do Departamento de Geociências da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e membro fundadora da Associação de Preservação do Patrimônio Cultural e Natural (Appac). O isolamento e a busca por qualidade de vida fizeram com que esse movimento de migração sobressaísse durante a pandemia. Mas para quem? “Se o êxodo urbano for compreendido como o retorno aos municípios menos povoados, então não estamos, de fato, falando de êxodo urbano, mas de um movimento de migração de pessoas cuja estabilidade no emprego e a elevada renda as permitem simular, nas ilhas urbanas do interior agropecuário, a vida urbana metropolitana”, aponta Tadeu Alencar Arrais, coordenador do Observatório do Estado Social Brasileiro e professor associado da Universidade Federal de Goiás (UFG). Afinal, o que está por trás desse fenômeno? E como essa ação reverbera nos centros urbanos? Sobre o assunto, os professores e especialistas, que também participaram do Sesc Ideias Êxodo Urbano em Tempos de Pandemia, tecem suas reflexões.
Fabelis Manfron Pretto
No presente, há um movimento crescente de pessoas procurando moradia em lugares afastados do perímetro urbano, como o campo e regiões litorâneas, motivadas pelo desejo da experiência de viver em outro contexto sociocultural, pela melhoria da saúde (emocional e física) e qualidade de vida, estimulando a “fuga” temporária da cidade ou o êxodo urbano. Quando falamos da vida cotidiana, falamos de emoções e elas dão sentido à relação do ser humano com o lugar onde vive, laços formados no dia a dia a partir das relações sociais, com o ambiente do cotidiano e que mudam com as experiências.
O sentimento de pertencer a um lugar e estar feliz nele dá sentido à escolha do local em que se quer viver, em conjunto com outras possibilidades e motivações que interferem nessa escolha, como trabalho, condição econômica e círculo social.
Neste texto faremos uma reflexão sobre quais motivações levam ao desejo de sair da cidade e buscar novos contextos sociais e ambientais e quais impactos essa crescente movimentação pode causar nos locais de chegada.
A busca pela segunda residência é um fenômeno antigo, modificado ao longo do tempo nos âmbitos cultural e material, alterando a maneira como percebemos o ambiente da vida cotidiana, em aspectos relacionados à economia, ao trabalho, ao ócio, às lembranças, ao tempo, à mobilidade e a todo o complexo sistema de vida humana contemporânea. Em cidades de maior porte, as mudanças ocorrem de forma mais intensa pela circulação do capital financeiro e informacional, o que dinamiza o modo de vida. Esses fatores, somados aos problemas urbanos, como violência, medo, artificialização crescente da cidade, estresse do trânsito, desemprego, elevado custo de vida, entre outros, causam a exaustão do modo de vida urbano contemporâneo.
Constrói-se uma representação negativa acerca da cidade, ligada às experiências consideradas ruins por esse grupo de pessoas que desejam sair do ambiente urbano, e outros locais como o campo, regiões litorâneas, cidades pequenas são revalorizados, tornando-se mais atrativos. Compreender o âmbito da busca da segunda residência ou do êxodo urbano pelos moradores da cidade parte da compreensão de que há outros contextos culturais e ambientais – englobando paisagem e modo de vida – que exercem poder de encantamento sobre os citadinos.
Muitos dos migrantes temporários ou definitivos constroem sobre o local em que desejam morar perspectivas ligadas às memórias passadas, à infância, à tranquilidade da rotina e ao contato com a natureza. Uma experiência por período curto ou longo de viver em outro lugar e ter outro modo de vida pelo qual desenvolveu afinidade. Geralmente esse contato se dá pelo turismo ou pelo lazer e pode ser acentuado pelo viver do outro: histórias contadas pelos pais e avós, ou seja, pela memória individual ou social, ou ainda como sonho vendido nos meios de comunicação por meio dos setores de turismo e imobiliário. Por vezes, essa imagem bucólica é somada às insatisfações pontuais com a vida na cidade, geralmente ligadas ao esgotamento psicológico associado a esse modo de vida, tornando-se motores para o desejo de mudança ou de “fuga”.
O mercado imobiliário influencia esse processo vendendo o sonho da conquista de outro modo de vida ligado à tranquilidade do campo, da praia ou da cidade pequena, o que mostra a inserção do domínio do mercado na posse da terra, já que a segunda residência pode ser um investimento fundiário ou fonte de renda para pessoas com maior poder econômico. Ainda se percebe a produção de nichos de mercado e especialização dos lugares que se tornam locais de consumo do ambiente, do modo de vida das pessoas, da paisagem, exaltando características locais, seja pela emoção que causa ou pelo consumo desses elementos culturais.
O acesso ao consumo de espaços como o campo, a praia e as pequenas cidades e sua cultura local têm limitações restritas a certas classes econômicas e/ou condições de renda e trabalho, pois “fugir” da cidade tem preço. Existe a relação entre o desejo de acessar outro modo de vida e a condição econômica, já que quem pode pagar tem maiores possibilidades de expansão da mobilidade, do consumo e da atuação sobre diferentes espaços. A possibilidade de acesso a novas experiências se restringe à medida que o acesso ao capital é restrito. A segunda residência ou a saída definitiva da cidade está na intermediação entre o imaginário/desejo/sonho e poder de compra.
AS TENSÕES LEGÍTIMAS DA VIDA DOS CITADINOS QUE SONHAM
EM FUGIR DA CIDADE OU MUDAR-SE DEFINITIVAMENTE NÃO PODEM
SER ENTENDIDAS COMO FUNDAMENTALMENTE PSICOLÓGICAS OU METAFÍSICAS
Com a expansão urbana acelerada ocorre o desejo pelo distanciamento cada vez maior dos grandes centros, o que perpassa pela busca do conforto individual e restritivo oportunizado pela distinção de renda. Na área rural, por exemplo, esse processo causa a reorganização da posse da terra, pois muitos residentes do campo vendem a terra (áreas são divididas em lotes menores) para moradores urbanos. Assim se formam aglomerados de casa de segunda residência, próximos a comércios e vilas distritais, por vezes alterando a rotina e o modo de vida local de maneira positiva (venda de produtos locais para os citadinos, trabalho temporário ou fixo nas segundas residências) e negativa (som alto, festas nos fins de semana, aumento do fluxo do trânsito, presença de pessoas estranhas e aumento da sensação de insegurança).
A aquisição da segunda residência e o êxodo urbano não são recentes, mas se intensificaram recentemente. A nova movimentação migratória, definitiva ou temporária, gera mudanças nas áreas de saída e chegada dessa população. Podem ocorrer impactos ambientais (sistema de saneamento, redução/aumento da produção de lixo, ocupação de áreas de proteção ambiental) econômicos (relacionados à redução/ao aumento de consumo no comércio local, dos trabalhos temporários ou não, taxas e impostos sobre uso do solo urbano e rural).
Impactos também no setor de saúde (fluxo de pessoas em hospitais, demanda por profissionais da saúde, medicamentos da rede pública); legais (posse da terra, impostos, vendas ilegais de propriedades); relacionados ao fator habitação (uso do solo, acesso à moradia); além de outras demandas ligadas ao conjunto de atividades que compõem os diferentes espaços e o modo de vida local e peculiar.
Contudo, não é possível deixar de pensar sobre a cidade e a relação que se estabelece com ela buscando compreender o que leva pessoas a não desejarem mais viver na cidade e/ou o que se tornou incômodo a ponto de gerar a necessidade/desejo de mudança temporária ou definitiva desses citadinos para outros locais. Ou seja, repensar a cidade enquanto espaço de vida com qualidade e não apenas como espaço de sobrevivência.
A pandemia propiciou um momento para experimentar múltiplas emoções relacionadas aos locais da vida cotidiana, o que leva a pensar sobre “qual é o lugar em que desejo viver, no sentido amplo da palavra”. A renda é fator determinante para a saída da cidade de maneira definitiva ou temporária, como a aptidão a novas aventuras, a coragem da mudança de profissão, ou desapego em deixar velhos hábitos, amigos e comodidades para trás e mudar-se para um novo local.
A pandemia ressaltou aspectos do desgaste e exaustão causados pelo modo de vida urbano contemporâneo e, sendo possível interpretar a relação das pessoas com o lugar onde vivem por meio de suas experiências, da influência da história pessoal e do desejo, travestido ou não na forma de consumo, também é possível pensar em ações e mudanças que permitam ao ser humano ser pleno e feliz no seu ambiente cotidiano e pensar qual cidade queremos para a vida cotidiana.
As tensões legítimas da vida dos citadinos que sonham em fugir da cidade ou mudar-se definitivamente não podem ser entendidas como fundamentalmente psicológicas ou metafísicas, mas devem ser encaradas como parte do processo de construção humana e espacial, de um sistema que requer mudanças por se apresentar de maneira ultrapassada e desgastante e que perpetua amplo leque de problemas econômicos, sociais e culturais.
Fabelis Manfron Pretto é doutora em Geografia pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), professora colaboradora do Departamento de Geociências da UEPG e membro fundadora da Associação de Preservação do Patrimônio Cultural e Natural (Appac).
Tadeu Alencar Arrais
É comum, em tempos de desespero, antecipar soluções para problemas que afligem a humanidade. As soluções nem sempre são novas e, frequentemente, nascem mais do desejo romântico e da pressa do que da análise crítica. A ideia de um êxodo urbano nesses tempos pandêmicos se encaixa nessa narrativa. O problema não é a Covid-19, muito menos a ineficiência política. A chaga, a evitar, é a cidade.
A representação da cidade como ambiente insalubre, perigoso, inoperante, não é nova. No final do século 19 surgiu o mais refinado discurso de condenação da cidade. A Cidade Jardim de Ebenezer Howard (1850-1928) prometia reunir, em um só espaço, o melhor da cidade e o melhor do campo. Algumas cidades europeias já haviam tentado solucionar os problemas urbanos a partir de reformas radicais, o que resultou, invariavelmente, na expulsão da gente pobre do centro das cidades. Reformar a cidade ou fugir da cidade são soluções, historicamente, utilizadas para negar a experiência urbana.
Da ideia de comunidade fechada, defensiva, expressa de forma brilhante no filme Foi apenas um Sonho (2009), dirigido por Sam Mendes, surge a magia suburbana como solução para os problemas urbanos. Ali, a divisão espacial do trabalho reforça os papéis sociais e os regimes de opressão dissimulados pela comunidade. A melancólica April é tão oprimida quanto Emma Bovary, do célebre romance (Madame Bovary, 1856) de Gustave Flaubert (1821-1880).
Há em comum, nas duas mulheres, a esperança de encontrar na grande cidade o remédio para a melancolia provinciana.
No Brasil não foi muito diferente. Caminhamos, desde o início do século 20, de reforma urbana em reforma urbana. Os fatos políticos que emergiram no Rio de Janeiro, com o “bota abaixo” da reforma Pereira Passos, ilustram como nosso urbanismo teve como método a violência e como objetivo a separação. O olhar retrospectivo poderia, a partir de um diagnóstico da pobreza urbana, do déficit habitacional, da violência urbana e do desemprego urbano, imaginar a volta para o campo como solução ideal, afinal vendemos uma paisagem do campo como um ambiente onírico e modernizante. Esquecemos que fincar-se no campo tanto quanto regressar para o campo é sinônimo de reforma agrária, tema indigesto para as elites brasileiras.
GLORIFICAR O ÊXODO URBANO É DESISTIR DA CIDADE. DESISTIR DE UM PROJETO
QUE ESTIMULA O DEBATE PÚBLICO POR SER CERCADO PELA DIFERENÇA
A ideia de êxodo urbano assume ares caricaturais. É sentença metonímica. Pega a mais reduzida parte da pirâmide social e projeta, para todos, seus desejos defensivos. Se o êxodo urbano for compreendido como aquisição de uma segunda residência, então não estamos, de fato, falando de êxodo, mas da reversão de um excedente de renda de uma pequena fração da elite para as franjas metropolitanas. Se o êxodo urbano for compreendido como o retorno aos municípios menos povoados, então não estamos, de fato, falando de êxodo urbano, mas de um movimento de migração de pessoas cuja estabilidade no emprego e a elevada renda as permitem simular, nas ilhas urbanas do interior agropecuário, a vida urbana metropolitana.
Intelectuais e estilistas, mais que professores e quase como jornalistas, são obcecados pelas tendências.
A tendência gera uma agenda de pesquisa que, movida pela pressa, negligencia aspectos da realidade. São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Belém somam mais de 22 milhões de pessoas. Imagino que todas essas pessoas até possam sonhar em compor rocks rurais. Mas a reprodução da vida interrompe os sonhos.
O sonho que, plantado nos morros, mocambos, comunidades, cortiços, invasões, entre as marquises ou debaixo de viadutos, não é o mesmo sonho colhido nos condomínios horizontais de luxo. O sonho periférico é aquele de conseguir, a partir de trabalhos precários, as mínimas condições para reprodução da vida.
Não há escapismo onírico que preencha o estômago. A prioridade confunde-se com o sonho – alimentar-se três vezes ao dia, beber água potável, locomover-se com alguma dignidade e trabalhar quando for possível.
A fração abastada que, em plena pandemia, se aglomera nos bares da Vila Madalena e do Leblon, jamais permitirá que os mais pobres se afastem completamente da cidade. A cidade precisa de seus braços. Precisa de entregadores de aplicativos, porteiros, empregadas domésticas, motoristas, cuidadores de idosos e toda sorte de gente tão invisível quanto os sonhos que cultivam. A esses jamais será dada a oportunidade de fugir da cidade.
É por isso que a gramática do novo normal e do isolamento social, para uma parte expressiva da população urbana brasileira, não passa de uma piada de mau gosto. Lavar as mãos, hábito banal contra a Covid-19, pode não ser comum em ambientes sem rede de água tratada. Para um morador do Lago Sul ou de Alphaville, sair ou não de casa pode sim resultar de uma escolha individual. Para os pobres, essa escolha, frequentemente, adquire contornos dramáticos: perecer em casa, suportando as dificuldades impostas pela densidade e a ausência dos serviços públicos, ou arriscar-se nas ruas em busca de alguma renda.
Glorificar o êxodo urbano é desistir da cidade. Desistir de um projeto que estimula o debate público por ser cercado pela diferença. O medo da cidade alimenta desejos despóticos. Não é por acaso que as narrativas distópicas tenham, em comum, a criminalização do espaço público. No antigo subúrbio de Saint-Antoine, descrito por Victor Hugo (1802-1885) em Os Miseráveis (1862), o encontro cotidiano do extremo da indigência com o extremo da inteligência pariu temor. Esse encontro, perigoso aos olhos do poder, semeou revoltas, revoluções, mudanças. Foi, também, a partir dos muros de Paris que a frase “Sejamos realistas, exijamos o impossível!” espalhou-se, em velocidade pandêmica, para as grandes cidades como Praga, Rio de Janeiro, Cidade de México etc.
Fugir da cidade é não reconhecer a potência mobilizadora, coletiva, transformativa, do espaço público e, portanto, da própria política.
Tadeu Alencar Arrais é professor associado de Geografia da Universidade Federal de Goiás (UFG), pesquisador do CNPq e coordenador do Observatório do Estado Social Brasileiro