Postado em 30/04/2021
ALÉM DE CENÁRIO, O RIO DE JANEIRO DOS ANOS 1920 GANHA ARES
DE PROTAGONISTA EM NARRATIVA DO BIÓGRAFO E JORNALISTA
Considerado um dos mais importantes biógrafos do Brasil, Ruy Castro tem uma longa trajetória jornalística em veículos que fizeram história, como O Pasquim, Jornal do Brasil, Manchete, entre outros. A verve investigativa, no entanto, foi deslocada das grandes redações para o bureau da literatura ao lançar O Anjo Pornográfico: A Vida de Nelson Rodrigues, em 1992, vencedor do prêmio Esso de Literatura em 1994. Desde então, o escritor coloca uma lupa sobre a vida de personalidades brasileiras, a exemplo do famoso jogador de futebol de pernas tortas em Estrela Solitária: Um Brasileiro Chamado Garrincha (1995), prêmio Jabuti de 1996, e da Pequena Notável em Carmen, uma Biografia (2005), também premiada com o Jabuti, em 2006. Paralelamente, outro personagem essencial em suas obras alternava entre os papéis de cenário e protagonista: a capital fluminense. É o caso de Chega de Saudade: A História e as Histórias da Bossa Nova (1990), A Noite do Meu Bem (2015) e do mais recente Metrópole à Beira-Mar (2019) – todos editados pela Companhia das Letras. Neste último, Ruy Castro ilumina personagens, situações e produções de uma cidade que despontava para a vanguarda, enquanto o Brasil dos anos 1920 ainda engatinhava rumo à modernização. No Sesc Ideias Rio Anos 20, Modernismo à Beira-Mar, exibido no canal do YouTube do Sesc São Paulo, Ruy Castro fala sobre o processo de desenvolvimento e investigação desse livro e sobre o contexto do país na época, ao lado do professor livre-docente no Departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Carlos Berriel, autor de Mário de Andrade Hoje (Ensaio, 1990) e de Tietê, Tejo, Sena: A Obra de Paulo Prado (Topbooks, 2021).
Você não biografa uma pessoa isolada. Você tem que biografar um contexto. Você tem que investigar as pessoas do círculo imediato em volta dessa pessoa biografada, que são os parentes, os amigos mais íntimos, o contexto formado pelos amigos, colegas de profissão, conhecidos. Depois, tem ainda outro círculo ainda mais amplo, que são os conhecidos ocasionais: pessoas que um dia passaram pela vida do seu biografado. E o grande círculo em volta de todos que é a cidade dele, o país dele e a época dele. Tudo isso faz parte do trabalho e do levantamento da vida de alguém. Agora suponha que esse mesmo trabalho seja feito à base de colheita de informações, de todas as fontes possíveis, a partir de entrevistas com pessoas que viveram com aquele personagem na época ou que tiveram um contato direto com aquele personagem. Suponha, então, que você tire esse personagem da frente e o que sobra é o contexto. Sobra a cidade e a época. Foi o que eu comecei a fazer de alguns anos para cá. Já no Chega de Saudade, sobre a bossa nova, era isso, mas eu não sabia ainda que era isso. Depois fui trabalhar nas biografias. E no livro A Noite do Meu Bem, que, supostamente, trata da história do samba-canção, mas na verdade é uma história das relações de poder e de prazer no Rio, capital da República entre 1945 e 1965, basicamente. Uma época em que havia praticamente uma ligação direta entre o Palácio do Catete e a Boate Vogue, que era o centro nacional do prazer e da sofisticação. Tudo isso com uma trilha sonora que seria o samba-canção.
O Metrópole à Beira-Mar, que veio em seguida [do livro A Noite do Meu Bem], surgiu de uma indagação que comecei a me fazer de vários anos para cá. Essas coisas vão sendo elaboradas na cabeça. Até atingirem uma forma definida leva tempo, e quando se definiu para mim veio a pergunta: Por que o Rio e o Brasil eram tão atrasados em 1922 que foi preciso que uma elite viesse nos salvar e nos tirar do atraso secular em que nós estávamos, marcado pela predominância do soneto, pela ditadura da Academia Brasileira de Letras e, principalmente, pela presença nefasta do Coelho Neto [escritor, político e professor brasileiro , 1864-1934]? Nessa mesma época, todos nós sabíamos que, ao mesmo tempo que se considerava isso do Brasil – um país mal saído de 1500 e que precisava ter sua vida e a sua cultura atualizadas em relação ao que estava acontecendo na Europa, por exemplo –, você tinha no Rio pessoas como Di Cavalcanti [pintor, 1897-1976], Gilka Machado [poeta, 1893-1980], Ismael Nery [pintor, 1900-1934], J. Carlos [ilustrador, 1884-1950], João do Rio [jornalista e escritor, 1881-1921], Lima Barreto [jornalista e escritor, 1881-1922], Manuel Bandeira [poeta, 1886-1968]... E estou falando só da turma por volta de 1922. Todos viviam e trabalhavam no Rio. Que cidade é essa, então, que congregava todas essas pessoas que a posteridade consagrou?
VOCÊ NÃO BIOGRAFA UMA PESSOA ISOLADA.
VOCÊ TEM QUE BIOGRAFAR UM CONTEXTO
Não há dúvidas sobre a importância dessas pessoas que estavam ativas e produtivas na mesma cidade, na mesma época. Todas fazendo coisas que não estavam sendo feitas antes. Eu acho que esse é um critério da Modernidade. Não há dúvida de que ninguém tinha feito música popular como o Pixinguinha antes do Pixinguinha [músico e maestro, 1897-1973]. Ninguém tinha pintado como o Ismael Nery antes do Ismael Nery, nem tinha feito poesia como o Manuel Bandeira antes do Manuel Bandeira. E tudo isso não começou em 1922, começou em 1916, 1918, 1919, 1920, 1921. Ou seja, aquele “atraso” que diziam haver em 1922 não é verdade. Porque já havia toda essa corrente cultural avançando em direção ao ano de 1922. Então, eu sempre fiquei muito intrigado de saber por que esse elenco e essas obras todas que realizaram não eram associadas ao Modernismo. Ninguém ligava para aquilo e era como se fosse algo natural. O importante mesmo eram aqueles que vieram nos salvar do “atraso”. Não só essas pessoas, mas, para completar, as que viriam depois, em 1924, 1926. Como Adhemar Gonzaga [jornalista e cineasta, 1901-1978], que criou a revista e crítica de cinema no Brasil, um cara da maior importância na história do cinema, mas pouco se fala dele no contexto dos anos 1920; o Agripino Grieco [crítico literário, 1888-1973], que deixou uma obra crítica monumental; o Álvaro Moreyra [1888-1964], como jornalista e personalidade, e a mulher dele, Eugênia Álvaro Moreyra [jornalista, atriz e uma das líderes da campanha sufragista no país, 1898-1948] – provavelmente não havia outra igual no Brasil, pelo comportamento de vanguarda, cabeça, coragem e postura. Tinha Aracy Cortes [1904-1985], que foi uma grande cantora; Cecília Meireles [1901-1964], não como poeta ainda, mas como educadora e folclorista, uma mulher da maior importância naquela época; Gilka Machado, então, nem se fala: a poesia que ela fazia não por acaso deixou chocados e estupefatos vários homens que não estavam preparados para aquele tipo de obra – um deles, nosso querido Mário de Andrade [escritor, musicólogo e historiador, 1893-1945]. Você tinha a Elsie Houston [cantora, compositora e pesquisadora, 1902-1943], sem a qual não teríamos recolhido a quantidade de música do folclore brasileiro que ela descobriu e ajudou a harmonizar, juntamente com Villa-Lobos. E por aí vai.
Por causa dessas pessoas, descobri a cidade [do Rio de Janeiro]. Tive que ler uma quantidade monumental de imprensa daquela época. O Rio tinha 17 jornais diários, cada qual tirando quatro ou cinco edições. Tinha ainda 20 revistas semanais. Comecei a descobrir a cidade em volta. Li relatos de coisas que aconteciam às quatro horas da manhã no Automóvel Clube, na Rua do Passeio – onde, há 57 anos, o presidente João Goulart fez o discurso que provocou a saída dos militares de uma base de Minas Gerais para derrubá-lo –, e o Automóvel Clube era importantíssimo. Uma cidade onde você podia passar um telegrama ou comprar flores às três da manhã. Uma cidade que praticamente não dormia. Cassinos clandestinos, ligações políticas fora do comum. Não era porque o Rio era a capital da República. Era uma capital acostumada a receber pessoas que dominavam e lutavam para mudar a vida no Brasil. As cidades têm que ter uma vida interna, não podem ser cenográficas nem vitrines. A cidade precisa de alma e isso leva décadas, séculos. E o Rio tinha tudo isso nessa época, por isso era uma metrópole. A cidade onde as coisas se decidiam.
Assim como o movimento do teatro, o movimento editorial, o movimento livreiro, o movimento musical… O Rio já tinha toda uma estrutura que envolvia dezenas de milhares de pessoas das mais variadas profissões criativas e que não eram marginais. Eram criadores totalmente inseridos no mercado, não era uma ação entre amigos. Eles tinham que batalhar para vencer a concorrência. A criação artística no Rio dos anos 1920 era uma coisa que se confundia com o mercado. O sujeito que chegasse de Curitiba, São Paulo, do Amazonas, não importa de onde viesse, vinha muito jovem e com duas coisas embaixo do braço: uma era um livro de poesias inédito, outra uma carta de algum figurão da terra deles estabelecido no Rio. Imagina a quantidade de gente que vinha e tinha que seguir esse périplo. Pessoas que vinham para disputar nesse mercado. E aquele livro de poesias era rapidamente publicado ou abandonado. Enfim, o Rio era essa cidade: a única com mais de um milhão de habitantes, a única com arranha-céu, vários prédios com elevador, o que era novidade, hotéis com telefone e água corrente nos quartos. Uma cidade iluminada com lâmpadas modernas e que ficava acesa a noite inteira. Havia movimento e tinha bonde a noite inteira. A última edição do jornal saía às nove horas da noite. Era esse tipo de cidade que produzia essa efervescência cultural. Nenhuma cidade do Brasil tinha isso. Por que essa cidade com todo esse contexto de modernidade não entrou para a história como sendo a cidade do Modernismo? Porque não precisava. Ela já era moderna sem manifesto.