Postado em 07/05/2021
Por Rodrigo Montaldi* e Mariana Fessel**
Um banho de mar pela manhã e uma pedalada para ver o mar que margeia Santos. A ciclovia do jardim da praia apresenta a cidade do lazer, os pitorescos prédios tortos de quando a cidade passou por reformas sanitárias e começou a olhar para a praia como diversão. A pedalada continua sentido à Ponta da Praia, onde se abre o canal de entrada dos navios e o verde dos jardins vai se transformando nos cinzas armazéns de cargas das docas. Viadutos, guindastes, pavilhões... é a cidade das máquinas ou das pessoas?
Entrando em uma rua à esquerda, surge um misto de casarões, ruínas de passado e de pessoas esquecidas. Mas tem gente naquelas ruas estreitas. Tem também pequenos comércios, vendedores ambulantes, bicicletas cargueiras. Um falatório de anúncio de serviços, sotaques diferentes vindos de outras partes do Atlântico Negro e Caribenho. A pele da maioria das pessoas é negra de vários tons. Sobrados altos, janelas e portas de madeira. Um entra e sai vigoroso de adultos, crianças, idosos, mulheres, homens daquelas casas: são as moradias em cortiços.
Entre a ostentação da paisagem da orla ao Centro Histórico da Bolsa do Café está o bairro do Paquetá. Neste percurso é possível observar as várias “cidades” existentes em Santos, que nem sempre estão nos cartões postais ou na publicidade. O projeto "Conexões Paquetá – 10 olhares com muitas emoções" é um convite a ver e ouvir as histórias que os moradores do bairro Paquetá têm a contar.
Num ano complexo como 2020, o Turismo Social Sesc SP suspendeu seus passeios e excursões, mas não as ações do projeto "Brasileiro Que Nem Eu", dedicado a visitar comunidades tradicionais e a aprender com elas. Em Santos, uma destas comunidades é a Associação dos Cortiços do Centro (ACC), que recebe grupos de viajantes no roteiro "Emoções no Paquetá", para contar sobre as histórias de uma bairro marcado pelas moradias em cortiços e sua luta pelo direito à habitação.
Mantendo o distanciamento físico, mas em aproximação afetiva com as pessoas da ACC, o Projeto Conexões Paquetá reuniu 10 fotógrafos/ fotógrafas amadores e moradores do bairro em uma residência artística que, orientados pelo fotógrafo e arte educador Rodrigo Montaldi, embarcaram em uma imersão de 12 a 22 de dezembro de 2020.
Realizada por meio de duas oficinas presenciais (seguindo os protocolos sanitários de distanciamento) e do uso da internet - do WhatsApp para orientações técnicas e artísticas -, Conexões Paquetá teve como proposta metodológica discutir as variáveis da construção imagética. O ponto de partida foi o olhar da espacialidade do Paquetá como documento material da dinâmica da vida humana no mundo, ligada às relações sociais, que, por sua vez, está intimamente conectada à forma pelas quais diferentes grupos expressam suas visões de mundo e reproduzem seu poder. Os processos políticos, econômicos, sociais e culturais que levam paisagens como a do Bairro Paquetá ao estado de abandono têm impacto direto na condição de existência das vidas de quem habita aquele território. Apresenta-se, neste espaço, um diálogo do passado áureo do café com o presente dos cortiços que aponta os processos históricos de acumulação/exclusão de grupos sociais no direito ao espaço e moradia, revelando alguns mecanismos de as (não)políticas sociais impulsionam fluxos de construção-destruição-transformação dos centros urbanos.
Primeira oficina da residência artística com participantes do projeto, realizada na sede da Associação dos Cortiços do Centro, dia 12/12/2020 (Foto: Cadu Castro)
Algumas das referências de inspiração do projeto partiram do conceito de cartografia social e afetiva, como o reconhecimento de aspectos ligados ao âmbito social a partir da experiência vivida pelas pessoas. Uma cartografia construída a partir do próprio exercício técnico e criativo destas, possibilitando, portanto, revelar problemáticas, subjetividades e proposições criativas de diferentes sujeitos que compõem uma comunidade de luta em seu próprio território, seu espaço vivido.
Outras referências vieram do filme “Era o Hotel Cambridge” (2016), de Eliane Caffé, e a trilha sonora que esteve nos encontros da residência artística partiu do álbum AmarElo (2019) do rapper, cantor e compositor Emicida.
As pessoas participantes nessa residência identificam-se como moradores de cortiço, lideranças comunitária, militantes, cabeleireira, artesã, arte-educadora, ativista do hip hop, recepcionista hospitalar, reformador de bicicletas, jardineiro, auxiliar de limpeza, ex-morador em situação de rua, ex-usuário de drogas e um imigrante do Haiti, que deixou a família em seu país de origem para “tentar a vida” no Brasil.
Da esquerda para a direita: Nay Faustino, Samara Faustino, Sergio Ricardo, Thais Telles, Jô de Lima, Bete Nagô, Joyce Aparecida, Tanto Faz Um de Nois, Wilson Jean Bart, Beto Assis. Dia 12/12/2020. (Fotos: Mariana Fessel e Cadu Castro)
Os residentes foram incentivados a construírem um diário imagético-poético e político durante os 10 dias da residência. Criaram um banco de imagens com registros dos espaços em que vivem e circulam, mas produziram bem mais que isto. Representaram sonhos e perspectivas por melhores condições de vida no bairro, contaram seus cotidianos, os desafios, as lutas, e projetaram um olhar de vitalidade sobre este território de contradições entre riqueza do patrimônio arquitetônico e descaso do poder público com as pessoas e suas moradias.
O resultado dessa residência são testemunhos em foto e voz, por meio de uma série de 19 "álbuns-áudios" sobre o Paquetá em conexões com muitas emoções. Ver e ouvir essas histórias, contadas por homens e mulheres que residem ou residiram nos cortiços do Paquetá, é o convite do Projeto Conexões Paquetá – 10 olhares com muitas emoções. Como diz Emicida em AmarElo: “Se isso é sobre vivência, me resumir à sobrevivência, é roubar um pouco de bom que vivi”, então “permita que eu fale, e não as minhas cicatrizes”, pois “tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nós? Alvos passeando por aí”.
Sejam bem-vindes a este passeio virtual pelas fotografias com muitas emoções dos residentes do projeto e do bairro Paquetá.
Assista os álbuns-áudios:
Imagem produzida por Nay Faustino, participante da residência artística Conexões Paquetá.
Imagem produzida por Samara Faustino, participante da residência artística Conexões Paquetá.
Imagem produzida por Bete Nagô, participante da residência artística Conexões Paquetá.
Imagem produzida por Jô de Lima, participante da residência artística Conexões Paquetá.
Imagem produzida por Sergio Ricardo, participante da residência artística Conexões Paquetá.
Colagem produzida por Beto Assis, participante da residência artística Conexões Paquetá.
Imagem produzida por Joyce Aparecida, participante da residência artística Conexões Paquetá.
Imagem produzida por Thais Priscila Telles, participante da residência artística Conexões Paquetá.
Imagem produzida por Tanto faz um de Nóis, participante da residência artística Conexões Paquetá.
Imagem produzida por Wilson Jean Bart, participante da residência artística Conexões Paquetá.
* Rodrigo Montaldi é turismólogo, gestor de projetos, fotógrafo e arte-educador. Desde 2002 atua na gestão de projetos socioambientais, unindo a fotografia em ações de educomunicação e comunicação comunitária e projetos autorais de artes visuais..
** Mariana Fessel possui licenciatura em história, estudo no campo do patrimônio cultural e educadora. É animadora cultural no Sesc SP responsável pelo programa do Turismo Social no Sesc Santos.
Ficha Técnica Conexões Paquetá - 10 olhares com muitas emoções
- Fotógrafas/fotógrafos residentes:
Bete Nagô
Gradsnay Faustino
Jô de Lima
Joyce Aparecida
Beto Assis
Samara Faustino
Sergio Ricardo
Tanto faz um de Nóis
Thais Priscila Telles
Wilson Jean Bart
- Fotógrafo/ arte educador orientador: Rodrigo Montaldi
- Produção: Cadu de Castro
- Edição de Vídeo: Junior Castro
- Realização: Sesc Santos
Sobre os residentes:
SAMARA FAUSTINO
Moradora de cortiço no Centro de Santos, 62 anos, com muitas emoções vividas na luta pelo direito à moradia.
NAY FAUSTINO
31 anos, nascida em Guarulhos e criada no centro de Santos, onde mora com seus 2 filhos e marido. É recepcionista hospitalar e também atua junto com a mãe na ACC.
JÔ – JOAQUINA DO SOCORRO LIMA
Nascida no Maranhão, em São José do Ribamar. Mora em Santos há 36 anos.
BETO ASSIS
Nascido em Cubatão e morador do Paquetá. É pai de duas meninas e trabalha com jardim.
BETE NAGÔ
Mulher Preta, fotógrafa, artesã, arte-educadora e militante, dentre eles o Coletivo Mães de Maio. Tem as vivências diárias nos movimentos sociais, atividades culturais e artísticas da Baixada Santista e no eixo SP/RJ com a base da composição do seu trabalho. Tem como lema: "Quem vem do mangue jamais se perde na lama, sim, eu resisto à margem beirando e registrando todo o caos!"
JOYCE APARECIDA
35 anos, natural da cidade de São Paulo. Mora no Paquetá há 21 anos, tem uma filha, casada e trabalha como auxiliar de limpeza.
THAIS PRISICILA TELLES
37 anos, nascida em Santos, tem 2 filhos e ama a sua cidade.
SÉRGIO RICARDO ARÃO DA SILVA
Natural de São Vicente. Foi para Santos aos 8 anos de idade, mais precisamente para o Paquetá, onde reside até os dias de hoje. Trabalha com reformas de bicicletas.
WILSON JEAN BART
Haitiano residente no Brasil desde 2016. Sempre morou em Santos, lugar onde nasceu seu filho Fábio, que é brasileiro e tem orgulho disso. Relata que veio para o Brasil buscar uma vida melhor, pois no Haïti as coisas estão difíceis. É feliz aqui por ter a oportunidade de dar uma vida melhor para sua família.
SANDOVAL DE VAZ
Conhecido como Tanto Faz, nasceu em São Paulo, chegou em Santos como morador de rua e usuário de drogas. Recuperou-se e hoje é morador de cortiço, e afirma ter sido na cidade de Santos que resgatou sua minha dignidade. É ativista do hip hop e produtor de eventos culturais.