Postado em 30/06/2021
ECONOMISTA EQUATORIANO QUESTIONA A IDEIA DE DA MERCANTILIZAÇÃO DO TEMPO DESTINADO À CRIATIVIDADE E À CONVIVÊNCIA
Nascido em Quito, o economista e professor Alberto Acosta acumula diferentes vivências na sua forma de ser, estar e pensar no mundo. Ex-gerente de marketing da Corporação Estatal Petrolera Equatoriana, Ministro de Minas e Energia do Equador em 2007, além de candidato à Presidência da República do país natal em 2013, Acosta conta que passou a investigar profundamente o tema lazer após receber o convite do Sesc São Paulo para participar do 15º Congresso Mundial de Lazer, em 2018. Desde então, o autor de livros como Breve História Econômica do Equador (Fundação Alexandre de Gusmão, 2006) e O Bem Viver: Uma Oportunidade para Imaginar Outros Mundos (Elefante, 2016) pesquisa como esse direito garantido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela Constituição do Brasil e de tantos outros países está atrelado à ideia de produtividade e a outros valores do mercado de trabalho. Em abril, Acosta falou sobre estas e outras questões no Sesc Ideias O Direito ao Lazer e Sua Importância na Vida Cotidiana, com o diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, num debate transmitido pelo canal do YouTube do Sesc São Paulo. “O lazer mercantilista tem que ser transformado em outro tipo de lazer, que seja emancipatório, e o trabalho que deixa a gente alienado tem que mudar”, disse.
Uma das perguntas que me faço aqui é: tem algum sentido falar de ócio em meio à pandemia? Comecemos por pontuar que não se pode confundir o ócio com o tempo livre provocado pela pandemia. Agora nós estamos na quarentena, num confinamento, e com certeza o trabalho remoto que recebemos faz com que a gente fique muito cansado porque ficamos o tempo todo conectados. Mas muitas pessoas não têm esse trabalho, nem esse tempo de lazer ou esse tempo livre. O tempo de lazer e o tempo livre são diferentes. E o tempo de uma pessoa que está desempregada não é lazer. O lazer tem que ser visto de uma outra forma. Estamos diante de uma crise muito complexa que é de civilização. Na pandemia, a crise provocada pelo coronavírus, e também suas sequelas, é uma faceta muito complexa. O coronavírus não provoca uma crise, ele faz com que a crise fique ainda mais forte. E o coronavírus serve como uma grande lupa para conseguirmos ver nosso mundo, para ver alguns aspectos que antes não percebíamos de forma clara. Por que a gente está nessa situação? Não é o coronavírus que apareceu da noite para o dia, não é um fenômeno natural. Temos processos que vão quebrando o metabolismo social e natural. Temos processos bem identificados pela ação dos seres humanos que geram condições cada vez mais difíceis e complexas para os próprios seres humanos.
A pandemia não serviu para que os poderosos do planeta, ou seja, aqueles que dirigem a economia e a política, pensem em mudar o sistema. A gente quer voltar para o crescimento econômico, voltar para aumentar as exportações, para aumentar os investimentos. Aumentam as exportações de petróleo e de mineração com muito impacto social e ambiental também. A especulação continua presente. A gente quer voltar a essa normalidade, mas essa normalidade, na verdade, é uma anormalidade que causa muitos problemas. Não vai ser mais a mesma coisa, vai ser algo pior. Então, nos dias em que estamos aqui lembrando e discutindo sobre o lazer, o Dia Internacional do Lazer (16/4), a gente deveria ficar mais preocupado em relação ao que significa o lazer. E eu encontrei também que essa discussão já estava presente entre os pensadores da Grécia. Sócrates falou muito bem: os momentos de lazer são a melhor de todas as aquisições, ou seja, o momento em que podemos realizar, sem pressão de qualquer tipo, é um espaço fundamental na vida do ser humano. Mas não o lazer na modernidade, dentro da lógica do capitalismo. Este foi se tornando diferente: em vez de expressar liberdade e autonomia do ser humano, o lazer está se tornando uma mercadoria. É mais um dos espaços de mercantilização criado pelo capital. Ou seja, deveria ser um momento de criatividade, que integra as comunidades, de celebração do sagrado, porque a vida é sagrada, mas o lazer é um mero espaço de descanso para repor as forças de trabalho e continuar produzindo. A gente descansa para produzir, não para ganhar qualidade de vida.
O LAZER TEM QUE SER UMA FORMA DE CONVÍVIO NA COMUNIDADE NATURAL E HUMANA
Nesse cenário, o lazer, muitas vezes, é o caldo de cultivo para crescentes frustrações. Ou seja, os divertimentos são passivos. A gente fica horas frente a um televisor. A gente vê filmes bons, mas às vezes a gente não vê nada importante. A gente não tem nenhum relacionamento ou atividade com a comunidade, com a família. E, nesse sentido, esse lazer passivo não demanda nossos recursos físicos e mentais. Dessa forma, o lazer se tornou um dos maiores negócios do mundo. Inclusive, a gente recorre à sua utilidade a partir da métrica do prazer, como os economistas definem. Ou seja, algo próprio do utilitarismo e do hedonismo: o lazer como uma mercadoria de consumo. O lazer também é transformado em um objeto das políticas de Estado. O Estado quer organizá-lo e planejá-lo. Ou seja, essa instrumentalização do lazer é uma ferramenta para controlar e disciplinar a sociedade. Lembro a vocês algo que não é de agora. No Império Romano, as pessoas iam ver o enfrentamento entre cristãos e leões. O coliseu romano fazia parte dessa política de pão e circo, ou seja, lazer mercantilizado, lazer controlado. É muito importante recuperar alguns elementos históricos para repensar o lazer.
A gente pode ter essa ideia do bem viver que provém de culturas de povos originários. Eles definem esse bem viver como algo diferente do que a gente experimentou nos últimos tempos. O ponto-chave do bem viver é que nós somos uma comunidade humana e natural também. Nós somos uma só comunidade de vida. Nós temos que deixar de atuar à margem da natureza. A gente tem que se integrar a ela. E, nesse sentido, o bem viver convida a gente a pensar num mundo inspirado nas harmonias e nos equilíbrios. Para falar em termos simples, talvez, em termos políticos, eu falaria que o bem viver procura reproduzir a vida digna e não o capital. Mas aqui vamos tocar numa questão-chave: o bem viver vem de comunidades que têm uma longa história. E essa história é caracterizada por relacionamentos holísticos do ser humano com ele mesmo, com outros seres humanos e com seres não humanos. A gente não tem que ser simplista e achar que vai conseguir construir uma sociedade livre de conflitos. Sempre vai haver conflitos, mas é preferível que a gente tenha como ponto de orientação uma sociedade que procure a vida na harmonia do ser humano com ele mesmo, do ser humano com outros membros da comunidade, das comunidades entre si e das comunidades e indivíduos morando em harmonia com a natureza do que continuar nesse caminho que está levando a gente para um abismo – que é o produtivismo, consumismo e individualismo.
O lazer tem que ser uma forma de convívio na comunidade natural e humana. E essa visão dos povos originários permite que a gente consiga ver de outra forma o planeta e pensar diferente na organização social e política. O interessante é que, sem idealizar e sem romantizar o mundo indígena, possamos abrir a porta para projetos coletivos, para um futuro diferente. Não existe somente um único bem viver, nós temos muitos bem viveres. Temos que tirar o potencial de mercadoria do lazer e aumentar o potencial criativo e lúdico do lazer para todos. E a gente tem que fazer isso em prol da pluridiversidade do planeta. O lazer mercantilista tem que ser transformado em outro tipo de lazer, que seja emancipatório, e o trabalho que deixa a gente alienado tem que mudar.