Postado em 30/06/2021
Um homem que sabe tudo
é um homem que tem medo
e nunca será uma árvore.
Não terá galhos, nem olhos
para ver o que não sabe.
Um homem sabe o medo,
quando é arrogante
e arrota nas madrugadas.
Tem filhos, tem bens,
não sabe dizer: “meu bem”.
Um homem é sempre filho
e mija atrás dos muros,
diz que pode, porque paga,
e morre na madrugada.
Um homem que sabe tudo
já morreu, para a mulher,
antes que o filho aprenda
a mijar também, a arrotar,
a escarrar
na cara das notícias.
O filho do homem que sabe
também sabe, mas
morre
antes de nascer.
Surge, de manhã,
em forma de sonho
que a mulher apaga
assim que acorda
com o barulho do homem
e levanta
para ver o sol
do seu próprio ser.
O homem
jamais desperta.
Ele abre os olhos,
começa
toda sua aula completa
sobre nunca se saber.
A mulher
sabe que não sabe.
Ela já foi embora
antes que ensinasse
ao homem
como se limpa um sonho,
como se abrigar
do medo
entre os braços,
fazê-lo dormir,
tirá-lo da sala
e limpar a cozinha.
A mulher não sabe
como é que ela fez.
E sabe.
Ela não lembra
de ter fabricado
o seu próprio caldeirão.
Dentro da noite,
mexe,
com sua colher de sonho.
Subimos as escadas
do farol
para ver a paisagem.
Os leões
ficaram lá embaixo,
fazem xixi amarelo.
Ouvimos os seus gritos
soados
na era dos dinossauros.
Sua pele combina
com as pedras
manchadas em alguns pontos
onde os leões
se aninham, nojentos.
Eu, você, sua pele combina
com o rugido dos bichos,
seus cabelos
se enredam
ao pé do vento
onde subimos,
para ver a paisagem.
Você já viu tudo, e senta
no último degrau, me espera
como uma criança
enquanto faço as fotos
que você nunca verá.
Sua face, assim, sentado
combina com o farol, no topo:
você combina o tempo todo
com esse medo de cair
se me alongo mais um pouco
para fazer um close
no leão lá embaixo, um porco
que urra e de repente é você
que solta a gosma da boca
enquanto se move, um vagar,
e se ajusta na outra pedra.
Você e esse leão, tão amigos,
já viram tudo, já fizeram
tudo o que quiseram
comigo,
já mijaram no vento amarelo,
dormiram no ponto
onde o sol se põe
e vocês combinam, sim,
já combinaram
de me ver cair,
o leão-marinho
e você,
meu urso,
um urso apenas
de passagem.
TORNA-VIAGEM
encontrei a cobra
cortada ao meio
e ainda filhote
cheguei a salvo do
bote da jararaca
apesar de cortada
ela estava
com a cabeça
em pé
os vizinhos já cansaram
de dizer
que devo cortar as gramas
podar os matos
por questões de segurança
por questões de higiene
por favor
há tantos perigos
nessas varandas
eu não ligo
para os vizinhos
eu moro
à vista das cobras
empilho garrafas
vazias
de vinho
dizem
ali mora a bruxa, olha
ela deixa ao léu
ela bebe
e quando sai
nem nos cumprimenta
não tem nem carro
é bela pangaré
eu escarro
nas varandas
na da frente
e na de trás
observo como somem
a cada tossida rouca
como se trancam
a salvo da mulher louca
sou como a cobra
que mataram
tenho a cabeça
em pé
dou apenas alguns passos
no meio da pandemia
meu pequeno corpo morto
olha o céu
escarra
na cara de quem mata
no pátio devassado
cenário do descalabro
quem terá matado
a outra
erguida ainda
no meio do meu peito?
é ânsia de voto ou de vômito,
vontade de falar tudo o que vai na goela;
é gula civil
esse gosto amargo enforcado na garganta,
esse lodo preso nas telas, no passo em punho,
nas poças do sangue
deslocado de sentido
.
é enjoo, sim, é vontade de voo,
de voto, de voragem
e de alguma sorte,
mas os tempos são outros:
tempos de julgar, de saber, de prender,
de passar as escopetas de punho em punho,
.
são tempos de morte, pandemia,
as panelas vazias e cheias de ruído
dizem que não, não sossegue, e se negue
a toda a vida assim amortecida
entre os trunfos tão falsos dos perfis
.
e são tempos de fome, sim:
fome de céu, de abraço, de um silêncio
que congregue
quem pede
que culpem os culpáveis,
não a culpa.
.
são tempos de desinventar
o que odiar, de parar pra pensar
em criar um lugar bem sossegado
(um pátio, um peito, uma página)
pra sarar dos atropelos
enquanto eles pagam a conta.
Telma Scherer é escritora, artista e professora de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Publicou o romance Lugares Ogros (Caiaponte, 2019), o híbrido Entre o Vento e o Peso da Página (Medusa, 2018), e cinco livros de poesia, entre eles Rumor da Casa (7 Letras, 2008), Depois da Água (Nave, 2014) e Squirt (Terra Redonda, 2019), este último, semifinalista do prêmio Oceanos de Literatura em Língua Portuguesa. Suas obras mais recentes são o poema Não Alimente a Escritora (Urutau, 2021) e o romance As Avessas (Ipêamarelo, 2021).