Postado em 30/08/2021
AUTOR DE BIOGRAFIA RECÉM-LANÇADA
SOBRE UMA DAS ARQUITETAS MAIS GENIAIS DO SÉCULO 20
COMENTA DETALHES DA PESQUISA E EPISÓDIOS NARRADOS NO LIVRO
Suas raízes se soltaram do solo italiano para atravessar o oceano Atlântico, rumo ao Brasil. Assim começa a história de Lina Bo Bardi (1914-1992) no país. Um dos mais importantes nomes da arquitetura, famosa por projetar o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp) e o Sesc Pompeia, ambos na capital paulista, Lina foi premiada, neste ano, com o Leão de Ouro na Bienal de Veneza. A história da família materna de Francesco Perrotta-Bosch também fez o caminho para o Novo Mundo. E, deste elemento em comum, das semelhanças entre as vivências de Lina Bo Bardi na Itália da primeira metade do século 20 e aquelas narradas pela avó materna do ensaísta e arquiteto, germinou o “estímulo inicial”, como disse o autor, para a feitura de Lina: Uma Biografia (Todavia, 2021).
Fruto de uma extensa pesquisa, de levantamento de fontes inéditas, de uma bibliografia brasileira e italiana, além de dezenas de entrevistas, o livro examina importantes episódios da vida e do legado desta criadora que já no primeiro capítulo se apresenta aos leitores: “Eu disse que o Brasil é meu país de escolha, e por isso, meu país duas vezes”. Para a arquiteta e urbanista Marta Bogéa, professora associada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), que assina a contracapa do livro, Francesco realiza uma narrativa que desvencilha Lina da figura mítica. “Permitindo reconhecer que essa fabulosa mulher só foi tão fabulosa e encantadoramente radical, corajosa e transformadora porque também guardava dentro de si uma série de idiossincrasias e circunstâncias”, disse no Sesc Ideias Lançamento de “Lina: Uma Biografia” (Todavia), com a presença do autor e do Diretor Regional do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda.
EM COMUM
Acho que toda biografia — talvez todo trabalho em que a pessoa se debruça, e nessa biografia foram três anos; mas, pesquisando sobre a Lina, foram mais de 11 — tem que ter um estímulo pessoal. E o primeiro estímulo vem da Lina arquiteta imigrante, que veio da Itália na década de 1940, algo que foi o meu primeiro: “Olha! Que incrível!”. Isso, obviamente, se entrelaça com a história da minha família. A Lina veio para o Brasil em 1946, e a minha dedicatória “aos meus” é para minha família por parte de mãe, que veio da Itália para o Brasil na década de 1930, quando a Guerra bateu na porta. As histórias deles são as da minha infância. Quando eu era pequeno, minha avó me contava histórias da Itália nesse período, exatamente essa fase da Lina de 1923. É até curioso que as histórias dela na década de 1920, na escola, para mim soassem extremamente familiares. Claro que há as minúcias da vida da Lina, mas o contexto da Itália fascista, do Mussolini, de um ditador, de um país que fazia guerras imperiais, era algo que, de certa maneira, eu já conhecia de ouvir falar. Então, é óbvio que tem algo que me toca no familiar. Isso foi muito importante como alimento para o meu livro.
NA TERRA DO SOL
Arquitetos imigrantes no Brasil, em especial em São Paulo ao longo do século 20, foram vários. Mas por que a Lina sobressai nesse grupo grande e valioso? O que vou expondo ao longo do livro é como ela tem, digamos, um interesse genuíno pelo Brasil. É por isso que eu queria logo começar com um dos episódios da Bahia, chamado Deus e Diabo na Terra do Sol [capítulo II], que é não somente a participação dela, mas sua interlocução e colaboração com Glauber Rocha e um grupo grande de intelectuais num momento frutífero baiano, do final dos anos 1950 até 1964. Ela começa a visualizar características e interesses que são muito originais. Por isso, o grande ponto desse segundo capítulo é o que ela chama de “pré-artesanato nordestino”. Objetos que ela viu e que parecem, à primeira vista, banais, feitos a partir de coisas encontradas, de coisas que, digamos, já cumpriram seu ciclo de vida dentro da cadeia de consumo, como uma latinha de óleo de carro. Pessoas que literalmente nada têm, que vivem numa condição de miséria, pegam aqueles objetos, fazem pequenas modificações e dão um novo uso e vida a eles. Isso é o que ela chama de pré-artesanato nordestino e, como apresento no livro, e ela falou em diferentes momentos da vida, podia ser um novo ponto de partida para o Brasil. Um ponto de partida econômico, político, social, de design ou de desenho industrial, de arquitetura.
LICENÇA POÉTICA
Faço esse livro explodido temporalmente pela licença poética que a Lina me dá quando ela mesma escreve e afirma que o tempo não é linear. O tempo é um maravilhoso emaranhado no qual podemos encontrar soluções sem começo nem fim. Ela me deu essa licença poética quase como um presente, e desse presente eu faço a estrutura do livro. Essa primeira aproximação acontece em relação ao valor que ela vê em objetos de sobrevivência na Bahia e à própria experiência pessoal dela em Milão, durante a Segunda Guerra Mundial, quando bombas inglesas destruíram o escritório dela. Então, viver sob risco não era algo distante ou uma teoria. Lina viveu isso na pele. E faço essa aproximação quase como uma sugestão para o leitor: será que ela estabeleceu uma empatia com esses objetos, com essas pessoas, com aquele momento no Nordeste devido à própria vivência e experiência pessoal? Então, essa é uma das amarrações que procuro fazer no livro para tentar compreender um pouco essa mulher fascinante.
OBRA MADURA
O Sesc tem que ser visto, numa primeira medida, como uma instituição que proporcionou à Lina sua obra madura. A instituição que permitiu a Lina fazer um projeto que era mais dela, que era dela em sua essência. O Masp é uma grande obra, mas era também um espaço de Pietro Maria Bardi, marido dela, era um trabalho de muitas mãos. Já o Sesc foi um trabalho para a Lina já madura, no seu momento mais experiente, de colocar e apresentar, digamos, ao mundo, muito do que ela tinha dentro de si: suas inquietações, questões, idiossincrasias, seus contrastes internos e, também, sua genialidade e erudição. Um fato que quis deixar muito claro no livro, e que me parece muito relevante, já que muitas publicações sobre a Lina a posteriori não colocam de maneira clara, é que o Sesc Pompeia surge primeiro de uma vontade da equipe do Sesc e chega como convite à Lina. No começo, ela fica um pouco reticente, mas depois aceita. Acho que isso acontece em todos os projetos que aparecem no livro: primeiro ela é reticente, para depois entrar de corpo e alma. Ela e aquele grupo de jovens que a tinha como figura experiente daquele momento vão fazer experimentações, algumas muito radicais, ou exposições que, em grande medida, consolidam ideias que a Lina já trazia de muitos anos antes.
SEUS CONTRASTES
A Lina tinha a capacidade de dialogar. Era uma pessoa de embate, suas trocas não eram (ou eram raramente) plácidas, ela tinha embates muito duros e no dia seguinte mandava um “beijo” para a pessoa com quem, no dia anterior, havia tido um arranca-rabo. Ela era assim, era essa figura. E lidar com esses contrastes da Lina é fundamental, senão a gente não vai conseguir compreendê-la. Mas é preciso dizer que ela tinha uma capacidade de diálogo impressionante. A habilidade de criar uma rede de colaboradores entre si. Não são todos os arquitetos, artistas e intelectuais que têm essa capacidade de diálogo tal qual ela teve.
EU FAÇO ESSE LIVRO EXPLODIDO TEMPORALMENTE
PELA LICENÇA POÉTICA QUE A LINA ME DÁ QUANDO
ELA MESMA ESCREVE E AFIRMA QUE O TEMPO NÃO É LINEAR
LEGADO PERENE
Durante o meu trabalho de pesquisa, foi fundamental ter toda a documentação disponível. O que se comprova no papel é importante porque, obviamente, nas entrevistas, cada pessoa tem uma visão diferente, visões que são contrastantes. E, muitas vezes, a documentação ajuda a comprovar algo. Apesar de que a verdade absoluta não existe, assim como não existe uma biografia definitiva. Reuni a maior quantidade possível de documentação comprobatória, a maior parte de informações por entrevistas, a leitura e a revisão bibliográfica. Achava que ia acontecer isto, e de fato: encontrei mais de 100 dissertações e teses sobre a Lina. Então, ela é uma pessoa muito estudada, e isso é ótimo. Mostra para nós que ela é uma figura muito pujante, que gera incômodos e inquietações, e que apresenta questões muito válidas ainda em 2021, quase 30 anos depois de seu falecimento, 40 anos depois das aberturas do Sesc Pompeia [a de 1982 e a de 1986]. Com este livro, apresento algumas questões, novos documentos e fatos, mas Lina Bo Bardi merece ainda ser muito mais estudada e debatida.