Postado em 01/10/2021
Um determinado quadro se tornou comum durante este cenário de incertezas, perdas e luto provocado pela Covid-19. Um sentimento que recentemente vem levantando discussões e reflexões de profissionais que trabalham na área da saúde mental. Descrito pelo sociólogo norte-americano Corey Keyes e popularizado em 2020 pelo psicólogo organizacional Adam Grant, o termo languishing (do inglês, definhamento, apatia) é, segundo o psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) Christian Dunker, “uma espécie de vazio emocional”. “Parece ser um estado causado pelo déficit de experiências produtivas de determinação. Diante de tanta indeterminação atualmente, pois não sabemos quando isso vai acabar, não sabemos se vamos sobreviver ou se vamos ter um emprego ou um casamento no final disso tudo, podemos nos desesperar. Mas depois, sem nenhuma previsão de alteração, o mais adaptativo é o recolhimento de expectativas”, explica Dunker.
Já para a psicanalista e professora do curso Ideias de Lacan, organizado pela Associação Livre-SP, Fani Hisgail, “enquanto durarem a pandemia e o risco de contágio, a apatia e o abatimento do ânimo como sintomas da cultura atual esboçam modalidades de defesa do narcisismo, ao sacrificar certa alegria de viver e de satisfação própria”. Afinal, como conceituar e identificar o que é languishing? E de que maneira a consciência desse quadro pode auxiliar a tomada de decisões para o bem da saúde mental da população? Neste Em Pauta, Dunker e Hisgail fazem um alerta e refletem sobre esse quadro que acomete muitas pessoas em todo o mundo.
CHRISTIAN DUNKER
Todo sintoma, inibição ou forma de angústia deve ser entendido como a exageração, fixação ou desvio de um estado anterior no qual este faria sentido ou função. Por isso, eles não são exatamente irracionais, mas respostas retiradas de contexto e desprovidas da memória de seu próprio processo construtivo. Respostas regulares a conflitos que, muitas vezes, são análogos ou homólogos entre si podem ser agrupadas com o mesmo nome e, no limite, cada sintoma carrega a marca indelével e insubstituivelmente singular de seu autor. Por isso, os sintomas foram comparados por Freud a uma obra de arte, cujo sentido pode permanecer opaco até mesmo para seu criador, mas também funcionam como uma religião, composta por mandamentos, preceitos, regras, ritos e práticas coercitivas que o fiel pode seguir, mesmo desconhecendo suas razões.
Languishing é um estado de indiferença anestésica, nem bom nem ruim, mas que faz com que as pessoas sigam suas vidas em uma espécie de automatismo mental e afetivo, como se tivessem se tornado observadores distantes da própria existência. Descrito pelo sociólogo Corey Keyes e popularizado pelo psicólogo organizacional Adam Grant, languishing é uma espécie de vazio emocional.
Compreende-se que o fenômeno tenha se alastrado como uma das principais sequelas da vida em tempos de Covid-19. Apesar da extrema variação das condições objetivas e subjetivas de enfrentamento deste longo período, podemos dizer que todos tivemos que nos haver com três fatores cruciais do ponto de vista psíquico: a privação de liberdade (por exemplo, de circulação, de aglomeração, de viajar); a busca de razões e motivos para nos autolimitarmos ou para não fazê-lo; e a especulação narrativa sobre a extensão temporal do sacrifício, cuja indeterminação, cujo adiamento sucessivo e cuja imprevisibilidade científica continuam até hoje, apesar da vacinação.
PARECIDO COM
Muitas condições psicopatológicas assemelham-se ao languishing. Particularmente, os estados depressivos costumam carregar consigo um manto de indiferença e apatia. Isso se manifesta em dois de seus sintomas principais: a anedonia, expressa pela incapacidade de experimentar prazer com a vida de forma geral, mesmo com atividades que eram antes fontes de satisfação; e a abulia, que aparece como uma dificuldade para iniciar um novo ciclo comportamental, como se levantar de manhã, ir para a cama à noite, interromper o trabalho ou sair para uma reunião de amigos. Tudo se passa como se, depois de um “empurrão” inicial e se a oferta de prazer for bastante elevada, o sujeito finalmente conseguisse seguir em frente, até a próxima parada. Mas o languishing não apresenta esses dois traços característicos. A pessoa se levanta, come e dorme, de modo regrado e sem dificuldade para começar nada, mas se sente como um zumbi anódino cumprindo um programa de maneira automática. Seu humor não se altera, e o indivíduo não fica irritado nem tem explosões de cólera, tão frequentes na depressão, mas é tomado por uma paciência infinita ou por uma passividade indefinidamente elástica. Surge aí uma potência de aceitação contemplativa digna de um monge medieval.
Um dos estados mais dramáticos de indiferença, aos outros e a si, é a síndrome de Cotard, ou delírio das negações. Nela, o sujeito tem ideias de negação e distorção da realidade e pode se comportar como se já estivesse morto. Afirma que não tem mais órgãos internos, que sabe que seu cérebro foi removido, que seu fígado foi extraído e, quando confrontado com o fato de que alguém nessa situação já estaria morto, o paciente costuma rebater assim: “Mas é exatamente isso que aconteceu comigo, estou morto e vazio por dentro. Aliás, pare de me chamar pelo nome dessa pessoa que um dia eu fui”.
OUTRO VAZIO
Nada disso, porém, se passa no languishing, no qual o vazio parece ser de outro tipo, mais ligado à falta de leitura de diferença no mundo do que em si mesmo. A paisagem externa fica igual, as diferenças diminuem quantitativamente e, no fim, qualitativamente. Tudo permanecendo igual por fora acaba produzindo um espelho mental de deserto e indiferença.
O languishing parece ser um estado causado pelo déficit de experiências produtivas de determinação. Diante de tanta indeterminação, pois não sabemos quando isso [a pandemia, no cenário atual] vai acabar, não sabemos se vamos sobreviver ou se vamos ter um emprego ou um casamento no final disso tudo, podemos nos desesperar. Mas depois, sem nenhuma previsão de alteração, o mais adaptativo é o recolhimento de expectativas. É uma redução do desejo, mas sem a crise narcísica que usualmente sobrevém na depressão, nem a perturbação de gozo que caracteriza a esquizofrenia de Cotard.
Quanto mais rebaixamos nossas expectativas, menor será o custo da decepção, até que terminaremos por nada esperar, o que nos imuniza contra o medo e o temor, já dizia a filosofia estoica [doutrina filosófica grega que preza a fidelidade ao conhecimento e o foco em tudo aquilo que pode ser controlado pela própria pessoa, desprezando os sentimentos externos, como a paixão e outros desejos intensos]. Mas é também uma redução da nossa capacidade de experimentar os afetos. Quando não tocamos ou somos tocados corporalmente por longos períodos, quando não coabitamos com outros indivíduos que funcionem como um espelho dos nossos afetos e quando esquecemos de nomear e narrativizar esses afetos, eles podem desvanecer ou definhar, duas traduções possíveis de languishing.
Quanto mais nos dedicamos a perceber o que sentimos, a qualificar nossas satisfações e manipular nossos desprazeres, melhor nos tornamos na arte do uso desses prazeres, até percebermos que podemos manejar as diferenças de satisfação nos tornando senhores do nosso próprio “jardim das delícias”, como pregava a filosofia epicurista [sistema filosófico grego que prega a procura dos prazeres moderados para atingir um estado de tranquilidade e de libertação do medo, com a ausência de sofrimento corporal pelo conhecimento do funcionamento do mundo e da limitação dos desejos].
O languishing parece uma espécie de hibernação psicológica, uma economia no gasto de afetos e desejos, sentidos como “inúteis”. Nossa economia subjetiva de prazer e desprazer depende de nossa política externa e interna para diferenças. Isso significa que o que chamamos de desprazer é simplesmente uma tensão que se acumula, e o prazer alcançado depende, portanto, da diferença entre o desprazer que se suportou e o prazer subsequente.
O prazer reduz a tensão, por isso ele é sempre, mas não somente, uma experiência de alívio. Isso acontece porque cada pessoa parece ter um patamar e um limite quando se trata da diferença libidinal. Limite depois do qual o aumento de tensão não se traduzirá mais pelo aumento de prazer. Patamar que, se não for alcançado, não trará prazer suficiente para justificar o trabalho ou o esforço de alcançá-lo. É um nível que pode ser exemplificado por casais que, com o passar do tempo, passam a ter preguiça de transar, porque outros prazeres e ocupações adquirem um grau de diferença maior do que o próprio sexo.
A degradação do patamar e a redução do limite de suportabilidade da tensão parecem duas estratégias subjetivas altamente adaptadas aos tempos de Covid-19, com sua abstinência prolongada de contato com as pessoas e com situações diferentes, e com sua regularidade de estimulação produzida pela redução do tamanho do mundo ao ambiente doméstico.
O ponto traiçoeiro aqui é que tais ajustes da economia libidinal não são sempre simples de reverter. Se antes sofríamos com o “medo de ficar de fora” (das redes sociais e do mundo tecnológico), cunhado pela expressão em inglês FOMO (Fear of Missing Out), agora sofremos com o FODA (Fear of Dating Again), que é o medo de sair para encontrar outras pessoas, pelo temor de ter desaprendido, durante o período de isolamento social, certas habilidades relacionais concernentes aos usos dos prazeres.
O LANGUISHING PARECE UMA ESPÉCIE DE
HIBERNAÇÃO PSICOLÓGICA, UMA ECONOMIA NO GASTO DE
AFETOS E DESEJOS, SENTIDOS COMO “INÚTEIS”
TIPOS DE INDIFERENÇA
Freud dispunha de três palavras para designar “diferença” em alemão, e ele de fato as usou para contextos distintos do nosso funcionamento mental. Há a diferença (Unterschied) que organiza a polaridade básica de nossa sexuação do Outro; há também a diferença (Diferentz) que organiza nossa sensibilidade ao semelhante, de modo que aqueles que se parecem muito conosco tenham suas diferenças narcisicamente aumentadas; e, finalmente, há a diferença (Verschiedene) entre prazer e desprazer pulsional, determinada pela alternância entre atividade e passividade, entre amor e ódio, entre desejar e ser desejado. Se há três tipos de diferença, que interferem em nossa economia libidinal, é justo supor que existam também pelo menos três variedades de indiferença.
Existe, portanto, aquela indiferença forçada e cruel, narcísica e sádica, de ver o Outro precisar de nós, seja do nosso amor, seja do nosso desejo ou da nossa capacidade de compartilhamento de satisfação. Isso permite gozar com a precariedade do Outro, nos colocando em posição de superioridade senhorial. Para alguns, isso conduz ao delírio de imunidade e ao negacionismo porque esses sujeitos não conseguem renunciar ao suposto cargo de senhores do mundo e de seus destinos.
Em segundo lugar, há a indiferença depressiva e delirante, na qual amor e ódio ou amor e indiferença tornam-se idênticos. Aqui, a diferença é fonte de comparação e dor, de impotência diante de ideais inatingíveis e de miséria moral daquele que se entende rejeitado pelo Outro.
Finalmente, há o terceiro tipo de indiferença, que parece caracterizar o languishing, que é uma forma de indiferença global ao conflito e às oposições que tornam o Outro indiferente, seja ele o mundo, nosso empregador ou parceiro amoroso. Aqui temos uma insensibilidade ao conflito que incide como uma espécie de calosidade protetiva da nossa alma. Não há pedidos, diretos ou indiretos, para que a vida valha a pena, ou especulações sobre as razões para seguir em frente.
O vazio aqui não é demanda de esperança, mas inércia, letargia, em que tudo parece cingido por uma inconsequência geral. Muitos adolescentes nos ensinam algo sobre o languishing, para desespero de seus pais, porque muitos deles parecem se recusar a sonhar e a entrar em conflito. Eles suspendem o problema da decisão de reentrada no mundo, no qual muitas vezes não percebem lugar algum, não se encaixam. Dessa forma, a falta de vazio do lado de fora é incorporada como um vazio contemplativo que repercute o som do mundo, mas não move o indivíduo rumo à transformação.
FANI HISGAIL
No começo dos anos 20 do século 21, a população mundial foi surpreendida com as restrições sanitárias de contato social devido à Covid-19, de modo que tivemos que habitar por semanas, meses e mais de um ano todo, o ambiente do lar, enquanto pais e filhos, casais e pessoas sozinhas tiveram, ou ainda estão, em confinamento. Inúmeras reportagens, artigos, opiniões de especialistas foram fundamentais para instrumentalizar a população em relação ao modo como o vírus atinge o pulmão e outros órgãos do corpo. Os sintomas psíquicos oriundos dessa situação demonstraram como estamos despreparados e fragilizados diante do perigo da morte, dos ritos fúnebres e do efeito cumulativo no dia a dia que a pandemia traz para nós, os vivos.
É fato que a batalha com o inimigo secreto e invisível reúne a massa dos vivos como testemunha da mortandade, referida nos boletins diários dos números da massa de mortos. Elias Canetti, Nobel de Literatura em 1981, define brilhantemente que a luta entre os vivos e os mortos tem um caráter intermitente, pois nunca se sabe quando ela virá. E, no caso da pandemia da Covid-19, o combate se estende por um longo período. O epicentro ocorrido em Manaus (AM), transmitido online e em tempo real, mostrou caixões amontoados nos necrotérios dos hospitais juntamente com as cenas de covas abertas, dispostas em fileiras nos enterros restritos a um ou dois membros da família.
Para nos salvar tivemos que evitar o próximo, manter distância uns dos outros e até dos familiares que necessitaram de intubação traqueal para estabilizar o quadro de falência respiratória causado pelo coronavírus. Imbuídos de um momento de poder, os que escaparam de ser abatidos pelo vírus hoje são os sobreviventes, cujo triunfo é a renovação do desejo de viver.
FUNCIONAMENTO DO EU
Entretanto, o sofrimento psíquico exposto na vida cotidiana descreve patologias oriundas da pandemia, como modalidades de mal-estar manifestadas em sonhos, pesadelos, agonias estridentes, sintomas somáticos e outros que vêm comprometendo a saúde mental da população. A doença mental se destaca por haver um retorno a estados anteriores da vida afetiva e do funcionamento do Eu, especialmente quando se está em perigo. O aumento das demandas de análise e de psicoterapias testemunharam o que está contido e recalcado no inconsciente, de tal modo que a palavra possa transformar o sofrível em algo superável e sanável.
Corey Keyes, sociólogo e psicólogo norte-americano, que cunhou a expressão languishing – que se traduz por definhando, abatido, lânguido, ao passo que em espanhol languideciendo significa perder o espírito, o vigor e a energia –, inspirou outro psicólogo organizacional, também norte-americano, Adam Grant. Este observou que o efeito cumulativo da pandemia produzia nas pessoas a falta de alegria, de objetivos e sensação de “definhamento” constante, a ponto de desenvolver um estado de apatia, de vazio e de desespero silencioso. Em grego clássico, Apatheia vem de Páthos, que significa tudo aquilo que afeta o corpo e a alma, as paixões e a dor, o sofrimento e a doença. Por conseguinte, como suportar tamanho desprazer e ao mesmo tempo lidar com um mundo externo desprovido de atração libidinal?
Apesar do contato digital e da vida online possibilitarem as relações funcionais a distância, o estado emocional que alguns acusaram foram sintomas de debilitação progressiva, extenuação e abatimento. O cotidiano pandêmico trouxe à baila os efeitos da imersão no campo digital, quando o contato com o mundo externo só podia ser por esta via. Extenuante e cansativa, ao mesmo tempo que envolvente e apaixonante, a vida digital ofertou a expansão da produção humana, mas não impediu que surgissem formas de sofrimento mental.
EM GREGO CLÁSSICO, APATHEIA VEM DE PÁTHOS,
QUE SIGNIFICA TUDO AQUILO QUE AFETA O CORPO E A ALMA,
AS PAIXÕES E A DOR, O SOFRIMENTO E A DOENÇA
MODALIDADES DE DEFESA
Enquanto durar a pandemia e o risco de contágio, a apatia e o abatimento do ânimo como sintomas da cultura atual esboçam modalidades de defesa do narcisismo, ao sacrificar certa alegria de viver e de satisfação própria. A privação da vida social e cultural, a carência de vacinas, a perda do emprego e a inflação galopante contribuem para o surgimento de formas de anestesia emocional, tais como agonias com ou sem o desespero e a falta de esperança.
Conseguiremos transpor as feridas e sequelas da Covid-19 no que tange ao trabalho do luto e do desligamento necessário que o Eu deve realizar? Todavia esse penoso desprazer é aceito por todos como algo natural num mundo que se torna pobre e vazio de sentido. Podendo haver um desânimo profundo, perda da capacidade de amar e também inibição de qualquer atividade enquanto durar o processo do enlutado.
Acontece que o sofrimento imposto pelo luto não se desfaz facilmente, pois a morte se apresenta sempre mascarada e ataca a torto e a direito na pandemia. No começo, foram os idosos os escolhidos, mas ela descobriu os jovens abaixo dos quarenta anos para abraçar sem piedade. Nunca se satisfaz e o grandioso nunca está na medida certa para ela, uma vez que não perde tempo com nada.
Como se defender dela quando a noção de tempo é outra nos estados de guerra e de pandemia? A ordem é o uso de máscara e o distanciamento social na perspectiva de todos a serem imunizados para, assim, tornar a vida mais tolerável para nós, mesmo sabendo do seu fim.
Espera-se que quando passar o luto e a ameaça do contágio possamos constatar o que Freud escreveu em 1916 a respeito da Primeira Guerra Mundial: “Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu e, talvez, em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes”.
Viva a Vida!