Postado em 30/11/2021
Enquanto na Argentina o cuidado materno é por lei considerado trabalho desde julho passado, o Brasil ainda enfrenta uma série de entraves para reconhecer os direitos daquelas que dedicam longas jornadas aos cuidados familiares e domésticos. Na pandemia, então, esse cenário se mostrou ainda mais grave com o fechamento de creches e escolas somado à ausência (ou enfraquecimento) de toda uma rede de apoio, dadas as restrições domésticas para contenção da Covid-19. “O relatório Sem Parar: O Trabalho e a Vida das Mulheres na Pandemia, realizado pela Gênero e Número e Sempreviva Organização Feminista, revela que, durante o primeiro período de isolamento social, metade das mulheres brasileiras passou a cuidar de alguém e que o trabalho remunerado foi dificultado pela dedicação ao trabalho doméstico e de cuidado”, apontam as psicólogas Patrícia L. Paione Grinfeld e Tatiana Machado, da organização Ninguém Cresce Sozinho. Numa escala global, essa realidade se repete. Segundo dados da Oxfam International, 42% das mulheres e meninas em todo o mundo não estão no mercado de trabalho porque dedicam todo o seu tempo aos cuidados domésticos e familiares. Então, como conciliar maternidade e trabalho? “Temos dificuldade de conceber as mães como trabalhadoras sociais da atividade política e econômica do cuidado. Portanto, as mães que trabalham para os exercícios da cultura econômica que se monetiza também passaram a enfrentar, na pandemia, a dupla jornada de trabalho ainda mais precária”, destaca Thaiz Leão, diretora e fundadora do Instituto Casa Mãe, espaço dedicado à pesquisa e ao desenvolvimento materno-social. Neste Em Pauta, Grinfeld, Machado e Leão tecem suas reflexões acerca do tema.
Patrícia L. Paione Grinfeld e Tatiana Machado
Como conciliar maternidade e trabalho? Essa pergunta frequentemente colocada por mulheres que se tornam mães nos obriga a uma reflexão sobre sua atualidade e permanência. Comecemos lembrando que o verbo conciliar remete, entre outros, aos seguintes sentidos: “pôr ou ficar em paz; tranquilizar(-se); harmonizar ou harmonizarem-se (coisas contrárias, contraditórias, incompatíveis ou que assim o pareçam); compatibilizar”. (Dicionário Houaiss, Objetiva, 2001, p. 786).
Diante de tais definições, convém que nos perguntemos: por que maternidade e trabalho seriam tomados como elementos contraditórios ou incompatíveis? Se prevalecem as tensões, como harmonizar, compatibilizar, pôr em paz essas esferas da vida? Por que esse questionamento se mantém tão presente em nossos dias?
DE QUE TRABALHO SE TRATA?
Quando mães se propõem (e se cobram) essa conciliação, o imenso trabalho do cuidar não é nomeado enquanto tal. Gestar, parir, amamentar, banhar, acalentar e demais tarefas em torno dos cuidados de bebês e das crianças, somados aos serviços domésticos, permanecem invisibilizados, compondo, nessa equação, o nome de maternidade.
Na fala de muitas mulheres, parece óbvia a constatação de que o trabalho a ser conciliado com a maternidade é aquele que se realiza fora de casa. Em outras palavras, o trabalho que, por ser socialmente reconhecido, é remunerado.
O esforço em conciliar maternidade e trabalho revela-se hercúleo ou insustentável. Pesquisa realizada em 2016 pela economista da Fundação Getulio Vargas Cecilia Machado mostra que a empregabilidade de mães no mercado formal de trabalho cai imediatamente ao término da licença-maternidade e nos meses subsequentes. Após 24 meses, quase metade das mulheres asseguradas pela licença está fora do mercado, a maioria por iniciativa do empregador e sem justa causa (seria “justa”, aos olhos do empregador, a “causa” de serem mães?). A mesma pesquisa revela que 12 meses após o início da licença, 32% das mulheres com maior escolaridade e 51% com nível educacional mais baixo encontram-se afastadas do mercado.
O retorno ao trabalho após a licença (ou os poucos dias em que a mulher sem direitos trabalhistas reserva junto ao seu bebê no pós-parto) é um dos momentos em que o esforço de conciliação entre trabalho e maternidade ganha contornos dramáticos. O acúmulo de funções, a cobrança por produtividade e o não reconhecimento das atividades de cuidado como trabalho resultam na chamada “carga mental materna”. Não à toa, é quando muitas mães relatam que só voltarão ao labor porque precisam dele para compor a renda familiar ou para manter acesa a chama de sua realização profissional.
SEM PARAR
A pandemia colocou um holofote sobre essa questão. O relatório Sem Parar: O Trabalho e a Vida das Mulheres na Pandemia, realizado pela Gênero e Número e Sempreviva Organização Feminista, revela que, durante o primeiro período de isolamento social, metade das mulheres brasileiras passou a cuidar de alguém e que o trabalho remunerado foi dificultado pela dedicação ao trabalho doméstico e de cuidado.
O Ipea também destaca que as mulheres foram um dos grupos mais afetados pela empregabilidade no período pandêmico. Enquanto no segundo trimestre de 2019 elas ocupavam 46,2% dos postos de trabalho, no mesmo período de 2020 esse número caiu para 39,7%. A situação é mais acentuada para as mulheres pretas. O relatório acima citado aponta que elas representam 58% das mulheres desempregadas.
Tais dados, tanto quanto a escuta clínica nos consultórios de psicologia, mostram que, apesar dos avanços sociais na direção da equidade de gênero, com pais assumindo posições mais ativas e presentes junto aos filhos e filhas, e empresas começando a conceder licença parental estendida ou universal, para citar alguns exemplos, é sobre a mulher que ainda recai a maior parte do trabalho de cuidar da prole. A própria insistência de muitas mães na pergunta – “como conciliar maternidade e trabalho?” – é indicativa de sua posição “privilegiada” na responsabilidade pelo cuidado.
SE O TERMO MATERNIDADE ENCOBRE IMENSA CARGA DE TRABALHO
DESQUALIFICADO ENQUANTO TAL, QUAL É, AFINAL, A CONTRADIÇÃO
ENTRE ESTE E O TRABALHO REMUNERADO?
NA CONTA DA MATERNIDADE
A maternidade não é um fenômeno biológico. O que chamamos de maternidade são ideias e imagens sócio-historicamente construídas e que, portanto, se modificam em diferentes épocas e culturas. Isso significa que, no processo de tornar-se mãe, cada mulher precisará lidar, consciente ou inconscientemente, com os ideais de seu tempo que regem o exercício da parentalidade e, mais especificamente, com aquilo que é atribuído às mães.
A ideia de que mulheres nascem para ser mães ou sabem cuidar de bebês por instinto é velha e remonta ao século 18 (Badinter E., Um Amor Conquistado: O Mito do Amor Materno, Nova Fronteira, 1985). Permanece, em nossos tempos, parte importante do imaginário social, que tributa às mães a responsabilidade pela criação dos filhos, e isso precisa, com urgência, ser desconstruído.
Uma pessoa nascida com útero pode vir a gestar um bebê e se tornar pai. Uma pessoa nascida com pênis, que se identifica como mulher, trans ou travesti, pode se tornar mãe, se assim desejar. Uma mulher que não pode ou não deseja gestar, pode se tornar mãe por adoção. Uma pessoa que perde seu filho não deixa de se considerar mãe ou pai. Isso nos mostra que, para além e aquém do trabalho de cuidado, tornar-se mãe remete a algo da construção de uma identidade e não se relaciona, necessariamente, com o processo corporal da perinatalidade (gestação, parto, amamentação).
Compreender a maternidade a partir do instinto, com sua concomitante e paradoxal supervalorização da função e desvalorização de quem a exerce, esbarra em outro, e massacrante, ideal de nossa cultura: o da “mãe perfeita”.
Imaginariamente, a mãe é capaz de conciliar todas as tarefas, de “dar conta de tudo”. Logo, quando a conciliação se revela impossível (exatamente porque idealizada) é na conta materna que se sublinha o que faltou, o que ficou de fora. As mães se veem impossibilitadas de abrir mão de seus ideais de maternidade e de produtividade, aos quais estão estruturalmente submetidas. É ela que não dá conta – e por isso se demite, é demitida, não é promovida e adoece. É aqui que o discurso da conciliação vem sendo tratado como saída individual para um problema socialmente estabelecido.
CONTRADIÇÃO EM TERMOS?
Se o termo maternidade encobre imensa carga de trabalho desqualificado enquanto tal, qual é, afinal, a contradição entre este e o trabalho remunerado? Se cuidar de crianças não é responsabilidade exclusiva nem tampouco atribuição natural das mulheres, por que seguimos falando sobre maternidade e trabalho?
Como se vê, a artificial incompatibilidade entre os dois elementos não é consequência da (des)organização pessoal de cada mulher ante o imperativo da conciliação, conforme descortinou a crise sanitária, política e humanitária decorrente da pandemia da Covid-19. Trata-se de problema estrutural a ser coletivamente enfrentado.
Explicitada a inconsistência dos termos maternidade e trabalho na pergunta que mobiliza tantas mães e que deu origem a estas reflexões, resta-nos abandonar o ideal da conciliação e recolocar o problema em termos mais justos e, quiçá, realizáveis considerando as particularidades do nosso momento histórico. Como nos responsabilizamos – coletivamente – para garantir que bebês e crianças não sejam privados daquilo que é essencial para o seu desenvolvimento?
THAIZ LEÃO
“Art. 3° - Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.
Parágrafo único – Não haverá distinções relativas à espécie de emprego e à condição de trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual.”
Consolidação das Leis do Trabalho, DECRETO-LEI Nº 5.452, DE 1º DE MAIO DE 1943
O maternar é um verbo infinitivo, num sentido maior que o gramatical. É importante antes de afirmar considerarmos que: Enquanto mães, nós não somos “inspiradas” a essas ou aquelas “atividades maternais”; o maternar é anterior à experiência do indivíduo de aqui e agora, é uma atribuição social, no sentido de ser determinada pelo nosso pacto sociocultural, e de função, no sentido de atender uma necessidade vital, que é de, dentro da estrutura político-social brasileira, prioritariamente proporcionar e garantir cuidado.
Para uma vida intergeracional, ou seja, a vida que atravessa gerações, o exercício do cuidado não é só poético, é fundamental. O cuidado é necessário por toda a vida, com maior ou menor necessidade, a depender de cada pessoa; e peculiarmente durante a infância e as últimas etapas do nosso envelhecimento.
O cuidado, como todo trabalho, é um exercício constante que requer um corpo com saúde integral para bem investi-lo, ou seja, com vitalidade física e psíquica que lhe garanta execução. E essa garantia de vitalidade, pela lógica da cadeia social de correlações, não vem pela iniciativa de quem trabalha o cuidado, mas sim, por todo o conjunto do tecido social – principalmente entre os de poderes e os de maioria – que determinam conjuntamente a facilidade de alcançar outros direitos de base para o bem viver.
O trabalho pode até ser uma fonte de prazer e realização, porém, no ralo grosso, o trabalho tem a função prioritária, na maioria dos lares brasileiros, de garantir acesso à mínima expressão de dignidade humana na forma de ofertar acesso à alimentação e à moradia. Quando é necessário o cuidado e não há cuidado, há risco.
Das relações da maternidade com o mundo, a bem da verdade, deveria custar um pouco para chegarmos a falar de trabalho, visto que da perspectiva de saúde integral, no social amplo, não temos condições apropriadas para qualquer que seja a vida. Ainda mais em um contexto de pandemia, onde perdemos, em pouco mais de um ano, conquistas de garantia de bem-estar e bem viver de uma luta de décadas. Como é o caso dos índices de combate à fome.
O CUIDADO, COMO TODO TRABALHO,
É UM EXERCÍCIO CONSTANTE QUE REQUER UM CORPO
COM SAÚDE INTEGRAL PARA BEM INVESTI-LO,
OU SEJA, COM VITALIDADE FÍSICA E PSÍQUICA
QUE LHE GARANTA EXECUÇÃO
Mesmo no contexto de pandemia, que tornou contundente o quanto a vida facilmente se inviabiliza por falta de políticas comunitárias e institucionais, ainda assim temos dificuldade de conceber as mães como trabalhadoras sociais da atividade política e econômica do cuidado. Portanto, as mães que também trabalham para os exercícios da cultura econômica que se monetiza passaram a enfrentar, na pandemia, a dupla jornada de trabalho ainda mais precária.
Elas enfrentaram e enfrentam a redução da equipe de cuidado com o fechamento das escolas, a redução de recursos para o cuidado, com a retirada da merenda escolar da rotina de seus filhos, com a adaptação da rotina diária de trabalho, através do tensionamento da conciliação trabalho/filhos/casa e/ou o estendimento do turno de trabalho para até 22 horas por dia (incluindo os finais de semana), e ainda o aumento do custo de vida, por meio do aumento das contas de consumo e alimentação dentro de casa.
As mães trabalhadoras enfrentam todos os desafios que uma dupla jornada de trabalho impõe, conciliando cargas horárias, garantindo entregas, cumprindo exigências, seis em cada dez vezes sozinha, enquanto trabalhadora autônoma da “microempresa”, ou pátria, que só ela ou prioritariamente ela forma para seus filhos.
O que a pandemia expôs, no exercício do meu trabalho com o projeto Segura a Curva das Mães, que constituiu uma rede de emergência com foco em prioridade em atenção à segurança alimentar e de saúde de mães e seus filhos em 24 estados do Brasil, é a fragilidade das relações político-sociais das mães com uma sociedade em que a única oferta de compartilhamento de cuidado é o espaço e o tempo da escola, que foram, como bem sabemos, já no início da pandemia, as primeiras políticas públicas a se extinguirem.
O que as mães fizeram e fazem todo dia pelos seus filhos, na pandemia e fora dela, pode realmente torná-las aptas para o intitulamento de guerreiras. Mas, antes de correr o risco de tornar romântico esse conjunto de experiências e dores, já que jogar flores sobre ferimentos de guerra é um exercício fúnebre, nós precisamos com urgência nomear contra o que elas estão lutando.
As mães e crianças viveram com aguda violência a realidade de cruzar diariamente duas funções que não se cruzam, a dimensão do trabalho não agrega a maternidade e as infâncias, enquanto para o exercício da proteção e seguridade humana as mães são a linha de base.
O cuidado é uma atividade que pode e constantemente exige muito física, psíquica e emocionalmente do cuidador. Muitas vezes me fizeram a pergunta: “Como conciliar trabalho e maternidade?”, a resposta que hoje considero suficiente é: não as separando.
É central para o nosso desenvolvimento econômico e social, quando na perspectiva de alcançarmos coletivamente o bem viver, dar centralidade ao debate da jornada do cuidado, principalmente para as mães, com ações a curto, médio e longo prazo por meio do desenvolvimento de políticas públicas que subsidiem a possibilidade do desenvolvimento econômico paralelamente ao desenvolvimento humano digno. Não será fingindo que o ônus e bônus do bem-estar da população é, desde a primeira instância, ofertado sem nenhuma discriminação a todos.
É necessária a discussão e endereçamento das horas trabalhadas. Das lesões por esforço, do investimento, da administração, de equipamentos e políticas de proteção e segurança, da organização social, da gestão de recursos humanos, materiais e imateriais. É necessária à maternidade de forma urgente e prioritária, bem como a discussão, com profundidade, sobre suas demandas e melhores práticas.
A separação da vida “familiar” da vida “econômica” é antes de tudo uma manobra simplista. Idealizada, romanceada e defendida por quem não cuida ou não concebe o que é um viver social comunitário amplo. É, sim, em algum sentido, mais fácil para o mercado materializar uma ideia de experiência de trabalho no vácuo, onde os trabalhadores a partir do nada e de lugar nenhum surgem integralmente disponíveis para oito horas de trabalho. Com menos variações possíveis entre a pessoa que trabalha e o ato de trabalhar. Sem antes considerar tudo o que compõe a vida de uma pessoa. Qualquer exercício cultural, político, social e econômico que considere apenas parte da vida não é legítimo, é um exercício conveniente a poucos.