Postado em 30/11/2021
Ana Bottosso vê movimento na palavra, no cinema, nas artes visuais e em outras linguagens artísticas que a provocam para a criação de novas coreografias. Bailarina, coreógrafa, professora e diretora da Companhia de Danças de Diadema, ela busca inspiração para suas obras em livros, como Eu por Detrás de MIM (2016), baseada no conto O Espelho, de Guimarães Rosa (1908-1967), ou em produções audiovisuais, a exemplo do espetáculo SCinestesia (2021), apresentado na programação virtual do Circuito Sesc de Artes em setembro, baseado em uma animação polonesa da década de 1980. Uma bagagem que ela compartilha com os bailarinos e bailarinas do grupo e também com os participantes das oficinas de dança do projeto social e artístico que a Companhia de Danças de Diadema realiza desde sua fundação, em 1995. Desde 2020, com a pandemia, os alunos dos bailarinos-orientadores puderam acompanhar virtualmente as oficinas. “Produzimos 678 videoaulas e, em outubro, tivemos a felicidade de estarmos juntos, presencialmente”, compartilha Ana Bottosso. Esse período em que a dança precisou se reinventar no ambiente virtual (leia matéria Corpos em Expansão, da Revista E nº 295, publicada em março de 2021), também foi um marco para novas criações do grupo. Em parceria com o Sesc São Paulo, a companhia estreou o espetáculo virtual #paranoiaconfinado, uma adaptação da versão presencial Paranoia (2011), inspirada no livro homônimo do poeta paulistano Roberto Piva (1937-2010). Neste Encontros, a bailarina, que também é idealizadora e coordenadora do projeto ABCDança, fala sobre coreografias para um “tablado virtual”, fomento à dança, além de pesquisa e criação.
PELA TELEVISÃO
A dança começou na minha vida muito cedo. Sou de Presidente Prudente e para lá não iam muitos espetáculos de dança, mas quando havia, eu estava presente. Curiosamente, eu me identifiquei com a dança na televisão. Na TV Cultura passavam espetáculos e eu dizia para minha mãe que queria fazer aquilo. Poder ver aqueles corpos se movendo tão bem delineados e desenhados me atraiu desde o início. Sou filha de artistas, meu pai, já falecido, artista plástico, e minha mãe, pianista, ainda tem uma escola em Presidente Prudente, o Conservatório Musical Maestro Julião, onde comecei a dançar aos seis anos. Eu tinha uma energia tão grande que me machucava direto subindo em telhados, correndo, pulando. Nesse sentido, acho que a dança também serviu para que eu pudesse organizar meu corpo e me equilibrar. E essa energia só aumentou de lá para cá. A paixão pelo movimento só aumenta.
PASSO A PASSO
Depois de vários estudos no conservatório, eu recebi um convite para ir a São Paulo no momento em que eu estava entrando na faculdade – eu fiz Ciências Sociais na PUC-SP. Recebi um convite pela Ilara Lopes, uma grande mestra e amiga até hoje, que era do Balé de Câmara, e depois do Grupo Uirapuru, para vir dançar com eles. Trabalhamos juntas por muitos anos e aprendi muito com o grupo. Pude me aperfeiçoar na metodologia inglesa da Royal Academy of Dancing de Londres e retornei ao interior, onde trabalhei muito com o ensino da dança ao levar essa metodologia para lá. Trabalhei por muitos anos, criei um grupo e viajávamos. Comecei a me especializar ainda mais em coreografar. Até que num determinado momento, levei um trabalho para o Festival de Dança de Joinville. Lá eles me falaram que minha coreografia tinha uma característica de dança-teatro e eu respondi: “Mas o que é isso?”. Fui pesquisar sobre dança-teatro, sobre Pina Bausch (leia Perfil publicado na Revista E nº 269, de março de 2019), sobre toda a história nacional e internacional desta linguagem e comecei a me interessar muito por esse estilo dentro da dança. Já na cidade de São Paulo, participei de várias companhias de dança e, com Mário Nascimento, que me introduziu na dança contemporânea. Também fui pesquisar sobre dança moderna, porque eu não compreendia muito o que era. Fiquei nos Estados Unidos por alguns meses para entender e tive bons professores em São Paulo. Esse trabalho me deu uma base para o trabalho corporal que eu estava começando a descobrir.
À PRIMEIRA VISTA
Lembro até hoje o dia em que assisti à Companhia de Danças de Diadema. Foi num festival em Santos onde eu também apresentei alguns trabalhos coreográficos com grupos para os quais eu desenvolvia coreografias. Lá eu encontrei Ivonice Satie, que era uma das juradas e também dava cursos. Teve um momento em que ela me falou: “Aparece em Diadema para conhecer a Companhia”. Assisti ao espetáculo da companhia e fiquei encantada com a maneira como levava a dança: uma maneira despojada, em que bailarinos e bailarinas não tinham um estereótipo, eles se aproximavam da humanidade, e a dança fluía naturalmente. Fiquei encantada com aquele estilo. Aí, fiz uma audição como bailarina para a Companhia de Danças de Diadema e passei. Cheguei a Diadema sem conhecer a cidade e fiquei boquiaberta com o interesse da população pelas artes, pela dança. A companhia, naquela época, estava entrando em seu terceiro ano de vida – hoje ela tem 26 anos.
ARTISTAS E ORIENTADORES
Quando entrei na Companhia, vi que minha paixão pela dança e pelas Ciências Sociais se encontravam porque nela há um projeto social e artístico em que todos os bailarinos, inclusive eu, damos aulas para a moçada: desde crianças até pessoas de 80 anos. Ou seja, além do trabalho artístico pelo qual já estava apaixonada e envolvida, esse projeto me encantou ainda mais. Quando Ivonice Satie (1950-2008) – que foi uma grande bailarina, também integrou o Balé da Cidade e foi assistente do Ballet de Genève: uma mulher à frente do seu tempo – criou essa companhia, ela já havia pensado nesse perfil duplo. Bailarinos e bailarinas também seriam professores ou, como nós falamos, artistas-orientadores nas oficinas que acontecem juntamente com a prefeitura e Secretaria de Cultura de Diadema. Então, ali consegui encontrar um sentido muito maior e uma realização. Trabalhamos por muito tempo juntas, fui assistente de direção de Ivonice até que entre 2002 e 2003 ela aceitou o convite para coordenar a Companhia de Dança do Amazonas. Quando foi para lá, ela me convidou para dar continuidade à companhia e ao projeto social. Depois disso, já se vão mais de 20 anos. Passamos por muitas turbulências políticas, financeiras e estamos passando por outra, com a pandemia, mas esse sentido de continuidade ecoa.
CENA EM DIADEMA
Hoje vemos muito mais representatividade [na cena da dança em Diadema]. Então, no começo, Ivonice levou um elenco formado por profissionais da cidade de São Paulo. Com o tempo isso foi se modificando. Hoje o projeto que temos como artistas-educadores não é profissionalizante, mas de acesso à dança. Um projeto que não quero que as pessoas associem à assistência social, mas à possibilidade de acesso a essa linguagem artística que espero que ainda possa ser profissionalizante em nossa companhia, porque há muitas preciosidades em Diadema que poderiam seguir essa carreira. O que acontece é que algumas das pessoas que fazem parte das oficinas também se interessam em dar continuidade ao profissionalismo. Como a gente abre audição todos os anos, hoje em dia aparecem mais candidatos da própria cidade. O Ton Carbones, que é meu assistente de produção, produtor e bailarino, veio das oficinas. Ele começou aos 17 anos, se apaixonou pela dança e continua lá. Outros se tornaram professores ou foram estudar ou trabalhar fora do país. Acredito que a cidade poderia investir num trabalho de formação maior e mais forte, algo que sempre falo com meus parceiros da Secretaria de Cultura de Diadema. O trabalho da dança tem que acontecer todo dia no sentido da formação, e as oficinas acontecem uma, duas vezes por semana. Tem iluminadores, videomakers e fotógrafos da cidade que estão sempre com a gente nos espetáculos, mas também precisamos de mais profissionais da área. Acho que esse projeto da companhia forma principalmente seres humanos com noções de coletividade, de cidadania, de troca, de bem-estar. Estamos com nossos alunos todas as semanas e, no final de semana, esses alunos vão nos assistir no palco e falam: “Olha ali: meu professor, minha professora”. Então, também desmistifica um pouco a figura do bailarino e nos aproxima das pessoas.
QUE A ARTE SEJA PARA NOS DEVOLVER A VONTADE DE VIVER
NASCE UMA COREOGRAFIA
Depois que a Ivonice saiu da Companhia de Danças de Diadema, foi um desafio pra mim. Eu passaria a trabalhar na direção dos meus pares, como coreógrafa e bailarina. Depois desse momento, dessa transição para a direção, com um pouco mais de segurança, criei alguns trabalhos que também foram premiados. Com o passar do tempo, percebi que em minhas criações, meu estilo de movimento não seria apenas um. Seria aquilo que a obra pede. Eu sempre vou pesquisar uma movimentação que seja a mais coerente com aquela obra e, a partir daí, vou trabalhando com a participação dos bailarinos também. A pesquisa em dança é o que mais me atrai. No meu caso – porque existem várias maneiras de fazer uma nova coreografia –, procuro escutar o que aquela obra pede: como será a movimentação da obra (na qual me baseio) para criar uma coreografia? Vou tentando escutar o que aquela obra pede. No Crendices… Quem Disse? (2007), por exemplo, veio algo das danças dos orixás. Já em Paranoia, inspirado na obra homônima de Roberto Piva, quando li as poesias, fui criando uma imagem de movimento e de roteirização e estudei, por exemplo, o karatê por conta da força e da energia na escrita do Piva. Então, muitas coisas na movimentação de Paranoia vieram do karatê. Outro caso é o espetáculo Eu por Detrás de MIM, premiado pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e que agora vamos lançar em versão virtual. Ele se baseou na obra O Espelho, de Guimarães Rosa, por isso a movimentação parte de uma pessoa em frente ao espelho. Trabalhei exaustivamente com os bailarinos e daí o movimento se expandiu. Também faço um roteiro dramatúrgico que não aparece literalmente e que pode mudar a qualquer momento. Mas tento trabalhar dentro dessa dramaturgia.
DANÇA E LITERATURA
Acho que Crendices... Quem Disse?, Paranoia e Eu por Detrás de MIM, apesar de serem inspirados em obras literárias, tiveram caminhos de criação diferentes. Claro que, como coreógrafa, tenho meu “jeitão”, algo que as pessoas descrevem como cinema, outra arte pela qual sou apaixonada. Tem um olhar cinematográfico, não técnico, porque só agora estou me atrevendo a fazer videodança. Mas, por exemplo, em Crendices, a questão da movimentação foi, como eu disse, baseada nas danças dos orixás. Já em Paranoia, nós ficamos falando alto as poesias do Piva durante os improvisos – e eu trabalho muito com improviso. Em Eu por Detrás de MIM, o texto de Guimarães Rosa estava por trás do trabalho, como uma situação psicológica: como é o meu “eu”?; como me encontro com esse “eu”; quando me encontro com ele – que é a grande questão desse livro – o que esperar desse “eu”. Então, a transposição da literatura para a dança se dá por várias formas. É curioso porque tem hora que vem pra mim uma obra literária que é inspiradora, outra hora vem uma figura, uma obra plástica. Outro trabalho, CSinestesia (2021), que foi filmado fora do teatro e apresentado no Circuito Sesc de Artes deste ano [pelo canal do YouTube do Sesc São Paulo]. Me inspirei na animação polonesa chamada Tango (1981), na qual as pessoas vivem num looping dentro de um cômodo da casa: ela me deu a ideia de movimentação e situação e isso antes da pandemia. Ou seja, foi um pouco premonitória essa história onde várias pessoas que não se relacionam estão presas dentro de um mesmo cômodo porque começamos essa criação em 2018. Então, são várias inspirações para a dança.
OUTROS TEMAS
Acho que aquilo que a virtualidade nos trouxe, como a aproximação, temos que extrair como algo de bom. Outras coisas têm que ficar no passado. Por exemplo, há momentos em que o assunto de uma obra precisa se diversificar. A arte não é só sofrimento, nem trata somente de questões pesadas e difíceis para o público digerir, mas precisamos olhar para outros assuntos. Que a arte seja para nos devolver a vontade de viver. Seja ela em vídeo ou em formato presencial. Não digo que devemos esquecer o que estamos passando nessa pandemia, bem como em relação a esse momento de polarização que estamos vendo e o descaso com os artistas e a produção artística do Brasil. Algo que inclusive se potencializou porque está dentro do nosso discurso (como artistas) uma crítica política, já que a classe artística é sempre esquecida. Aliás, esse discurso está mais forte agora e tem que existir para ver se acontece alguma mudança nesse pensar sobre a arte.
Assista ao vídeo desse Encontros com Ana Bottosso