Postado em 27/01/2022
Quando aprendemos sobre a Semana de Arte Moderna na escola, geralmente revisitamos nomes como os de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, e ficamos sabendo que naqueles três dias – e não uma semana, como se intitulou – houve declamação de poesias, conferências e exposição de obras de arte [leia a matéria Ecos do Modernismo, publicada na Revista E nº 299, de setembro de 2021]. Mas pouco ainda se fala que os dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922 preencheram o Theatro Municipal de São Paulo com uma música clássica que iria influenciar diferentes linguagens artísticas em todo o país ao longo do século 20.
Naqueles dias, as obras interpretadas no Municipal eram em sua maioria compostas pelo maestro, violoncelista, pianista e compositor carioca Heitor Villa-Lobos (1887-1959). Aos 34 anos na data do evento, Villa-Lobos ainda era um ilustre desconhecido na capital paulista, à época com 600 mil habitantes. Mas foi a partir daquela Semana que o maestro fez contatos, recebeu convites e acabou ficando na cidade por quase um mês.
“Mais de 90% da música que tocou naqueles três dias eram composições dele. Villa-Lobos selecionou as peças, os intérpretes, ficava na coxia acompanhando tudo e dando dicas. E regeu pessoalmente as duas maiores obras: Quarteto Simbólico (Impressões da Vida Mundana) e Danças Características Africanas (octeto)”, explica a doutora em musicologia, jornalista e pesquisadora de música clássica Camila Fresca, que prepara uma biografia sobre o maestro, com previsão de lançamento para este ano pela editora Todavia. Na ocasião, Villa-Lobos usou casaca e chinelos, porém, segundo pesquisas históricas, essa não foi uma postura rebelde ou manifestação de ruptura com as tradições, e sim uma crise aguda de gota (excesso de ácido úrico nas articulações) que o acometia principalmente quando ele ficava nervoso.
Além das obras do maestro carioca, a Semana reuniu composições europeias que acompanharam as palestras e recitações. “O que se entendia na época por música bem feita, que todo mundo gostava, era aquela criada entre o final do século 19 e o começo do 20, por pianistas clássicos como Claude Debussy e Camille Saint-Saëns”, além de Émile-Robert Blanchet e Henri Stierlin-Vallon (presentes na programação da Semana), cita a musicóloga, professora titular da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) Flávia Camargo Toni.
A música modernista de Villa-Lobos e dos pianistas Ernani Braga, Guiomar Novaes (foto acima), Lucília Villa-Lobos (companheira de Heitor) e Frutuoso Vianna – que também participaram da Semana de Arte Moderna, interpretando obras do maestro – buscava romper com as tradições europeias e inovar na estrutura harmônica, na linguagem e na forma de compor. “Com o passar dos anos, Villa-Lobos acaba encontrando um estilo muito próprio, autoral, que já não se baliza pelos compositores clássicos europeus", destaca Flávia Toni.
Outros músicos brasileiros que não participaram da Semana, mas que sofreram influência das propostas modernistas, foram Camargo Guarnieri, Oscar Lorenzo Fernández, Luciano Gallet e Francisco Mignone [leia o Perfil Ode ao Maestro, publicado na Revista E no 303, de janeiro de 2022]. “Estes começam a fazer uma autocrítica da própria escrita, a pesquisar a fundo a música do país, as formas de expressão populares e a não se reportar mais ao passado”, explica Flávia.
É importante lembrar que no momento em que ocorreu a Semana ainda não havia rádio no Brasil – apesar de já existirem bondes elétricos, automóveis e até aviões por aqui. A primeira transmissão radiofônica aconteceu no centenário da Independência, em 7 de setembro de 1922, ou seja, quase sete meses após o evento no Municipal. Foi veiculado um discurso do então presidente, Epitácio Pessoa, e a instalação do rádio no país, de fato, só foi feita em 20 de abril de 1923. “E, assim, alguns compositores foram mudando sua maneira de escrever música, enquanto outros já se formavam dentro dessa nova estética”, aponta Camila Fresca.
De acordo com a doutora em musicologia, o modernismo impactou as artes em geral ao longo do século 20, como o Cinema Novo de Glauber Rocha (1939-1981), o teatro de Zé Celso Martinez Corrêa e a arquitetura das décadas de 1950 e 1960. Na música popular, ecoou na Bossa Nova e no Tropicalismo, com expoentes como Os Mutantes, Tom Zé e Caetano Veloso.
“Saber se hoje alguém ainda bebe (direto da fonte) do modernismo é uma discussão ampla e difícil de responder. Os próprios artistas é que devem se reconhecer como filiados ao, ou inspirados pelo, movimento”, pondera Camila. Segundo a pesquisadora, a história da música brasileira de concerto no século 20 inclui uma discussão permanente sobre o legado do modernismo, ora negando-o, ora incorporando-o. “Como exemplos temos os movimentos Música Viva, Música Nova e Armorial”, cita.
Neste mês, o Selo Sesc lançará um box físico, acompanhado por livreto, com quatro discos para marcar o centenário da Semana de 1922, dois meses depois de tê-lo divulgado na plataforma Sesc Digital. Com o nome Toda Semana: Música e Literatura na Semana de Arte Moderna, o box emula o que ocorreu naqueles três dias em termos poéticos, sonoros e musicais, na possível ordem de acontecimento dos fatos, segundo pesquisas e registros históricos.
O primeiro álbum começa com um trecho da conferência de abertura de Graça Aranha, intitulada A emoção estética na arte moderna, e o quarto CD termina com a interpretação de Quarteto Simbólico (Impressões da Vida Mundana), de Villa-Lobos, seguida de uma série de poemas declamados por Mário de Andrade, Guilherme de Almeida e Sérgio Milliet, entre outros escritores. “As músicas de Villa-Lobos aparecem na mesma sequência em que foram apresentadas ao público sentado nas cadeiras do Theatro Municipal. Queríamos mostrar o que aconteceu de fato na sala de concerto, quando a música foi tocada ao vivo”, detalha a professora da USP Flávia Toni, que idealizou e organizou o projeto ao lado de Camila Fresca e Claudia Toni.
Aluna de Flávia no mestrado e doutorado, Camila conta que cerca de 40 músicos participaram das regravações – ocorridas entre 2019 e 2020, em três estúdios de São Paulo –, sendo 16 deles integrantes do coro e os demais, instrumentistas. Os trios de Villa-Lobos já estavam contemplados em CDs do Selo Sesc e duas dessas peças, que fizeram parte da Semana, foram incorporadas no box Toda Semana.
Os poemas que compõem essa coletânea foram declamados pelos cantores Homero Velho e Mônica Salmaso e pela professora Ligia Fonseca Ferreira. Já as conferências e os textos em prosa foram gravados pelo ator Antonio Salvador.
“Esse é um projeto que começou a ser concebido em 2018. Fizemos pesquisas em livros, na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, em acervos de jornais para confirmar informações, e tivemos a colaboração fundamental do Museu Villa-Lobos, no Rio de Janeiro”, lista Camila. Para a doutora em musicologia, reunir todo esse material pela primeira vez tem uma importância imensa, pois permite que agora se discuta a Semana com bases mais sólidas.
“O último dia do evento não teve palestra e declamação, mas um grande concerto do Villa-Lobos. Ele foi o artista mais exposto da Semana, com 20 peças de sua autoria interpretadas nos três dias. O que mais me deu alegria agora [com o lançamento de Toda Semana] foi a possibilidade de mostrar a beleza da obra desse maestro, que tinha presença, sabia compor e mostrar a sua música, e teria sido grande, com uma carreira espetacular, de qualquer maneira”, avalia Camila.
Na visão da musicóloga e professora Flávia Toni, a Semana de Arte Moderna foi um acontecimento que marcou profundamente a cultura brasileira, não apenas a paulistana. Ela abriu um diálogo entre os artistas e as artes, com parcerias entre a música, a poesia, as artes plásticas e outras linguagens. “Houve uma explosão de criações, de demanda por concertos, de exposições, além de uma aproximação entre os artistas e o público”, analisa Flávia.
Para a estudiosa, esse box lançado pelo Selo Sesc ainda é uma excelente oportunidade para os professores utilizarem em sala de aula e trabalharem a Semana sob a ótica das artes plásticas, da literatura e também da música. “O livreto tem um texto extenso [188 páginas, incluindo uma tradução para o inglês] explicando muitos detalhes. Quem sabe, a partir de agora, mais alunos e alunas sairão da escola com uma visão diferente sobre esse grande acontecimento”, torce Flávia Toni.
Vencedor da categoria CD/DVD/Livro da décima edição do Prêmio CONCERTO de Música Clássica e Ópera 2021, o álbum Trios de Villa-Lobos, com Claudio Cruz (violino), Antonio Meneses (violoncelo), Ricardo Castro (piano) e Gabriel Marin (viola) reverencia esse gigante da música brasileira. Lançado no início de 2021, o disco revisita obras de Heitor Villa-Lobos para trios de cordas e ainda traz outra faceta do compositor: a de jovem prodígio, com três peças compostas na década de 1910 para violoncelo, violino e piano. Dentre essas, duas peças foram apresentadas na Semana de Arte Moderna de 1922. O premiado álbum também inclui um trio escrito em 1945 para viola, violoncelo e violino, época em que o compositor e maestro já era um autor requisitado mundialmente.
Aperte o play e ouça Trios de Villa-Lobos (Selo Sesc, 2021) nas principais plataformas de streaming de música ou gratuitamente pelo Sesc Digital: sesc.digital.
A música nos possibilita viajar no tempo e no espaço. Basta fechar os olhos e permitir que vozes, percussão e instrumentos de corda e de sopro nos guiem até os dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922 dentro da grande sala do Theatro Municipal de São Paulo. Esse é o convite feito por dois concertos a serem realizados no Teatro Antunes Filho, no Sesc Vila Mariana, dias 9 e 16 de fevereiro, às 21h, que integram as ações de lançamento de Toda Semana: Música e Literatura na Semana de Arte Moderna, lançado pelo Selo Sesc. Esse conjunto de livreto e quatro CDs foi idealizado por Claudia Toni, Flávia Camargo Toni e Camila Fresca, com direção musical de Cláudio Cruz, e reúne, pela primeira vez na história, a íntegra das músicas tocadas durante a Semana de Arte Moderna, além de uma seleção de poemas e conferências.
Portanto, além de embarcarmos no tempo pela música durante esses dois concertos, também sentiremos a verve da Semana com interpretações de textos que outrora foram realizadas por Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Mário de Andrade e outros modernistas. No dia 9 de fevereiro, o programa traz trechos da palestra A emoção estética na arte moderna, de Graça Aranha, e a leitura de poemas de Guilherme de Almeida – As galeras – e de Luiz Aranha – Drogaria de éter e sombra –, todos interpretados pelo ator Antonio Salvador. Na parte musical, Cristian Budu assume o piano solo na interpretação de peças de Francis Poulenc, Erik Satie e Heitor Villa-Lobos, dividindo o palco com o violoncelista Robson Fonseca nos dois últimos movimentos (2 e 3) da Sonata para violoncelo e piano. Para fechar a apresentação, o Quarteto Carlos Gomes – formado por Cláudio Cruz (violino), Adonhiran Reis (violino), Gabriel Marin (viola) e Alceu Reis (violoncelo) – interpreta o Quarteto de Cordas nº 3, de Villa-Lobos.
Já no dia 16 de fevereiro, o programa segue com obras de Villa-Lobos, cujas composições representaram praticamente a totalidade das músicas apresentadas na Semana de Arte Moderna. No repertório, Quarteto Simbólico (Impressões da Vida Mundana) é interpretado por Liuba Klevtsova (harpa), Leandro Roverso (celesta), Claudia Nascimento (flauta), Douglas Braga (saxofone) e por um coro formado por vozes femininas. Já Danças Características Africanas (octeto) é revisitado por Cláudio Cruz, Amanda Martins e Soraya Landim (violinos), Raiff Dantas Barreto (violoncelo), Ana Valéria Poles (contrabaixo), Claudia Nascimento (flauta), Luca Raele (clarinete) e Leandro Roverso (piano), sob a batuta de Cláudio Cruz.
Ainda do compositor carioca, as canções para piano e voz sobre poemas de Ronald de Carvalho e Costa Rego Jr. recebem a interpretação de Homero Velho (barítono), Monica Salmaso (canto) e Ricardo Ballestero (piano). Finalizam a programação do dia 16/2 as leituras de trechos da palestra Arte Moderna, de Menotti Del Picchia, e dos poemas Domingo, de Mário de Andrade; Oeil de boeuf (na versão em português), de Sérgio Milliet, e Os Sapos, de Manuel Bandeira. Todas elas feitas pelo ator Antonio Salvador.
“Ao realizar o box Toda Semana, concebido e organizado por Flávia Camargo Toni, Camila Fresca e Claudia Toni, o Sesc coloca em funcionamento e circulação uma nova ‘caixa de ressonância’ das ideias, experimentações e invenções aglutinadas e disseminadas pela Semana. Mais do que isso, condensa nas mídias que integram o presente box o espírito de novidade e transformação dos modernistas brasileiros de primeira onda, ao menos dos sudestinos, em suas expressões verbais, sonoras e musicais, audíveis depois de um século”, afirma Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo.
Toda Semana: Música e Literatura na Semana de Arte Moderna (Selo Sesc) está disponível gratuitamente para ser lido e ouvido na plataforma do Sesc Digital: sesc.digital/colecao/todasemana. E, a partir de 9 de fevereiro, o público também poderá ter contato com o material nas principais plataformas de streaming de música, além da obra em formato físico: um livreto contendo quatro CDs, disponível para venda na Loja Sesc, nas unidades da capital paulista, litoral e interior e também na loja virtual. Saiba mais: www.sescsp.org.br/selosesc.
(Por Luna D'Alama e Maria Júlia LLedó)