Postado em 09/03/2011
por Silvia Kochen
Já imaginou atravessar uma rua de olhos fechados? Você corre o risco de tropeçar na guia e cair, de ser atropelado por um carro ou ainda de se machucar de alguma outra forma. Talvez alguém apareça para ajudá-lo na travessia ou, simplesmente, você desista de chegar ao outro lado. Essa é a situação vivida pelos cerca de 2 milhões de deficientes visuais no Brasil. Para essas pessoas, desistir de atravessar uma rua significa deixar de realizar as atividades mínimas do dia a dia de qualquer cidadão – como sair para trabalhar, passear, ir à padaria etc. Enfim, equivale a deixar de viver como uma pessoa normal.
Uma das formas de contornar essas limitações é o uso de um cão-guia, um cachorro treinado especialmente para conduzir o deficiente visual em suas atividades diárias. Esse animal fica 24 horas ao lado do dono em qualquer lugar ou situação: loja, supermercado, cinema, teatro, metrô, ônibus, café, restaurante etc.
Na calçada, o cão-guia cuida para que a pessoa de baixa visão não bata a cabeça em algo que a bengala de cego não alcance – como um orelhão ou o galho de uma árvore – e também faz com que desvie de buracos ou qualquer obstáculo que possa atrapalhar sua caminhada. E no metrô ele conduz a pessoa até o corrimão da escada que leva à plataforma para que ela possa descer em segurança.
O mais importante, porém, é que o cão-guia, ao permitir que o dono possa trabalhar e se locomover sem depender de outras pessoas, significa um instrumento fantástico de inclusão social. Ele acompanha o deficiente em todos os momentos, protegendo-o das dificuldades. E, ainda por cima, é capaz de tirá-lo do isolamento, já que a simpatia e a dedicação do animal sempre acabam sendo um motivo para puxar conversa e melhorar o humor.
Infelizmente, porém, há um problema muito sério em relação aos cães-guia no Brasil. Existem em atividade menos de uma centena deles, número bem menor que a quantidade necessária, estimada em 20 mil, segundo a advogada Thays Martinez, que é cega. Ela é fundadora e ex-presidente do Instituto de Responsabilidade e Inclusão Social (Iris), uma organização não governamental sediada em São Paulo. O principal projeto do Iris é o treinamento e a doação de cães-guia, mas o instituto também atua propondo leis e políticas públicas para a inclusão de pessoas com deficiência e a conscientização da sociedade sobre suas necessidades especiais.
Thays ficou famosa no Brasil todo em 2000, quando brigou para que seu primeiro cão-guia, Boris, fosse aceito em qualquer lugar público. O metrô de São Paulo exigiu que ela pedisse uma autorização especial para circular com o animal em suas dependências. Thays recorreu à Justiça, alegando que a exigência era descabida, pois Boris fora treinado para guiá-la em qualquer local público – como teatro, ônibus, restaurante, metrô, cinema, shopping etc. – e era considerado um equipamento necessário a sua plena mobilidade, da mesma forma que uma cadeira de rodas é indispensável a um paraplégico. Sua luta resultou na lei nº 11.126/2005, que garante o livre acesso de cães-guia, devidamente treinados e identificados, em locais públicos.
A batalha de Thays e seus amigos, porém, não terminou. A maioria dos cegos não tem como conseguir um cão-guia devido às dificuldades financeiras das instituições empenhadas em formá-los. Segundo a norma internacional, esses cães devem ser doados, sem ônus, ao deficiente visual. Para as entidades doadoras, o custo de um desses animais, que tem uma vida útil de seis a oito anos, é estimado em torno de R$ 25 mil.
Seleção rigorosa
A primeira despesa é a compra de filhotes. Como o temperamento é um elemento fundamental, o ideal é selecionar cães de boa linhagem, que possam ter herdado uma personalidade dócil e inteligente. Hoje, no Brasil, as raças mais comuns na função de cão-guia são os labradores e os golden retrievers, que têm características ideais para esse tipo de trabalho.
Por ser um cão que deve trabalhar com tanta responsabilidade, a análise precisa ser rigorosa. Apenas três em cada dez filhotes são aprovados na primeira seleção de temperamento. Ao completar três meses, os animais escolhidos são entregues a uma família voluntária, que fará o trabalho de socialização, ensinando o bicho a usar o banheiro e a não pedir comida quando as pessoas estão na mesa, entre outras regras. Quando completa um ano, é feita nova avaliação para determinar se o animal tem temperamento adequado. Em caso positivo, ele inicia treinamento intensivo na escola para cães-guia, que pode durar até um ano.
O passo seguinte é a adaptação ao dono, que leva mais algumas semanas. Nessa fase, há um cuidado especial para assegurar que o temperamento do dono e o do cão casem harmoniosamente. Ao longo do tempo, a relação entre os dois progride e a comunicação entre ambos praticamente ganha uma característica telepática. Também é feito um mapeamento das atividades diárias do deficiente visual para oferecer um roteiro de treinamento ao cão. Ele vai aprendendo onde é melhor atravessar a rua e onde estão os pontos-chave dos locais frequentados, como o balcão e o caixa da farmácia ou padaria.
Todas essas etapas supõem a existência de uma equipe especializada de veterinários e instrutores, além de rações de boa qualidade e espaço e equipamentos para o treinamento, o que explica o custo aparentemente elevado da formação. Os gastos continuam durante a vida útil do cão, pois ele passa por exames veterinários regulares e um programa anual de reciclagem junto com o dono, para corrigir eventuais vícios que possa ter adquirido no dia a dia, como, por exemplo, pegar algum resto de comida no chão.
“Todas as escolas de cães-guia no Brasil enfrentam problemas financeiros e, por isso, não formam muitos cães”, explica Thays. O Iris, por exemplo, tem uma lista de espera de 2 mil deficientes visuais, mas forma uma média de oito animais ao ano. Se tivesse recursos, formaria 25. O mesmo acontece com a Escola de Cães-Guia Helen Keller, de Santa Catarina, e com as ONGs Integra, de Brasília, e Cão-Guia Brasil, do Rio de Janeiro, entidades reconhecidas por sua seriedade.
Uma das propostas defendidas pelo Iris para resolver essa situação é a adoção de incentivos fiscais para doações feitas a entidades de formação de cães-guia. “Um americano que more nos EUA e de lá faça uma doação para o Iris obtém vantagens fiscais, mas o brasileiro que faça o mesmo aqui não tem nenhum incentivo desse tipo”, critica a advogada.
Se tivesse verba, o Iris também poderia até investir na formação de instrutores de cães-guia em outro país, uma vez que aqui não há instituições habilitadas para isso. Dessa forma, seria possível entregar mais cães aos deficientes visuais. O que ajuda é uma parceria que o Iris tem com uma escola americana, a Leader Dogs for the Blind, uma das maiores e mais antigas instituições que formam cães-guia nos Estados Unidos. Anualmente são selecionados oito beneficiários brasileiros que vão para aquele país, onde, após um programa de três semanas, recebem um cão-guia. Esse treinamento é feito por instrutores do próprio Iris, o que dispensa a necessidade de os deficientes falarem inglês.
Gravura romana
A história do cão-guia é muito mais antiga que as escolas que os formam. Desde a Antiguidade, cães acompanham cegos, e o primeiro registro de que se tem notícia é uma imagem estampada em um mural nas ruínas romanas de Herculano, datada do início de nossa era. Uma placa de madeira da Idade Média também mostra um cão a conduzir o dono cego.
A primeira tentativa sistemática de treinar cães para a função de guia, porém, ocorreu somente por volta de 1780, em uma instituição voltada a pessoas sem visão em Paris, o Les Quinze-Vingts. A maioria deles, entretanto, era treinada pelo próprio dono. Naquela época, o austríaco Josef Riesinger ensinou seu cão com tanto sucesso que muita gente chegou a duvidar que ele realmente teria problemas de visão. Décadas mais tarde, em 1819, Johann Wilhelm Klein, pioneiro na educação de cegos e fundador de um instituto dedicado a essa tarefa em Viena, publicou um livro em que mencionou o conceito de cão-guia, mas não chegou a colocar a ideia em prática.
A adoção do cão-guia por um número grande de cegos só começou na época da 1ª Guerra Mundial, quando milhares de soldados, vítimas de um gás que queimava a vista, voltaram da frente de batalha sem poder enxergar. Conta a história que um médico alemão, Gerhard Stalling, passeava com seu cão e um paciente cego pelos jardins do hospital, mas teve de se ausentar por alguns momentos. Quando voltou, viu que o animal estava cuidando do paciente e teve, então, a ideia de treinar um grande número de cães para essa finalidade.
Em agosto de 1916, Stalling abriu a primeira escola de cães-guia do mundo, em Oldenburg. A ideia produziu frutos rapidamente e a instituição abriu filiais em várias cidades alemãs, chegando a treinar por ano 600 cães, que eram fornecidos não só a antigos soldados, mas também a outros cegos, inclusive de fora do país. Infelizmente, a experiência durou pouco, pois a escola teve de fechar as portas em 1926.
O trabalho, porém, inspirou muita gente, e uma escola aberta em Potsdam, perto de Berlim, chegou a abrigar um canil com cerca de uma centena de animais e em seus primeiros 18 anos formou cerca de 2,5 mil cães-guia, com um índice de reprovação de apenas 6%. Esse trabalho atraiu a atenção da milionária americana Dorothy Harrison Eustis, que naquela época já treinava cães policiais na Suíça. De volta aos Estados Unidos, ela fundou em 1929 a The Seeing Eye, a primeira escola de cães-guia do país. A instituição continua em funcionamento até hoje e sua história foi tema de um documentário em 1951. Dorothy foi contatada por pessoas de outros países e, rapidamente, as escolas de cães-guia se alastraram pelo mundo, transformando a vida de milhares de pessoas com deficiência visual.
Mala sem alma
Uma dessas pessoas é o advogado Leonardo Costa Coscarelli, hoje com 31 anos, mas deficiente visual praticamente desde o nascimento, por causa de um problema de oxigenação na incubadora da maternidade. Ele conta com apenas um resíduo de visão, que lhe permite vislumbrar indícios de cor e forma. Como um de seus olhos é totalmente cego, não tem noção da distância dos objetos, o que prejudica sua autonomia até para caminhar na rua.
Em 1999, quando morava na Itália, Coscarelli resolveu se inscrever na fila de espera por um cão. Em 2000 recebeu Lella, uma cadela da raça labrador. A partir daí sua vida mudou. A alteração principal foi de caráter social. Com a cadela-guia, ele pôde finalmente conquistar as ruas e sair de casa sem depender de alguém. “Antes eu não andava muito sozinho, pois, com a bengala, as pessoas te pegam pelo braço como se fosse uma mala sem alma. Com o cão, isso não acontece mais.” Amparado por Lella, Coscarelli passou a sair com amigos e a ter atividades de uma pessoa normal. Chegou mesmo a levar a cadela-guia a um passeio de escuna em Paraty, onde pulou no mar com ela no colo. Ambos usavam coletes salva-vidas.
Porém, Lella morreu subitamente há três anos e Coscarelli recorreu à escola de cães na Itália para conseguir outro guia. “Tive de levar laudo veterinário para explicar que ela morreu de causas naturais, e não de maus-tratos, e me qualificar para obter outro cão.” Normalmente, o deficiente visual que perde o cão tem prioridade na fila, mas mesmo assim ele teve de esperar 11 meses até receber Brami, um labrador chocolate, com quem está há dois anos.
Aprender de novo
Andreia Aparecida da Silva Queiróz, de 31 anos, é uma cega que sonha ter um cão-guia. Em 2005, ela perdeu a visão por causa de descolamento de retina. Após uma via-crúcis por diversas clínicas e médicos na tentativa de voltar a enxergar, matriculou-se em uma escola de braille, alfabeto em relevo que é lido por deficientes visuais por meio do tato, e iniciou seu longo processo de reabilitação. “Tive de aprender a fazer tudo de novo, só que de outra forma”, diz Andreia, que era dona de casa e hoje trabalha como revisora de publicações em braille. Ao sair para a padaria, por exemplo, ela separa as notas de dinheiro conforme o valor. “Quem garante que me darão o troco certo se eu não souber que notas tenho?” Na cozinha, diz ela, usa o olfato para saber se a cebola ou o alho já dourou, por exemplo, e tem um monte de outros truques que lhe permitem cumprir as tarefas mais simples, como varrer a casa ou pregar um botão, coisas essenciais para quem tem marido e um filho de oito anos. “Apesar disso, as mudanças foram mais da porta para fora, pois minha vida familiar continua igual.”
Mesmo assim, Andreia foi obrigada a deixar de fazer algumas coisas, como atravessar a rua sozinha. Sem um cão-guia, o recurso para caminhar é a bengala de cego. Com ela se faz uma espécie de varredura no terreno à frente para saber se é possível avançar. Mas nem sempre se percebe um buraco ou alguma irregularidade no terreno, ou um orelhão, onde o deficiente visual pode bater a cabeça.
Cheia de esperança, Andreia chegou a participar do programa de televisão de Luciano Huck, em que lhe prometeram a doação de um cão-guia. A história começou dentro de um táxi, em que o apresentador fazia o papel de motorista e parou para ela na rua. Ele a levou a seu programa em setembro de 2009, quando uma instituição convidada, a Associação Cão-Guia de Cego, lhe doou um animal, que ainda estaria na fase de treinamento. Na semana seguinte, representantes da entidade foram a seu trabalho, para mapear o local e sua rotina diária de modo a concluir o treinamento do cão. Até hoje, porém, ela não o recebeu. A instituição mantém um site na internet, em que há instruções para doações, mas não atendeu aos telefonemas da reportagem.
Segundo Thays Martinez, a fundadora do Iris, infelizmente são poucas as instituições sérias que oferecem cães-guia no Brasil. Ela perdeu a visão aos quatro anos de idade. Aos sete, ouviu falar que existiam cães-guia e, desde então, quis ter um. O sonho realizou-se apenas em 2000, quando, aos 27 anos, ganhou Boris. A partir daí, sua rotina mudou radicalmente e ela pôde até morar sozinha, apenas com a companhia do animal. “Costumo dizer que minha vida se divide em duas fases principais: antes de Boris e depois dele.” Ela conta que o relacionamento com o cão é especial, pois em nenhum outro dois seres convivem durante anos o tempo todo. “Mesmo marido e mulher, ou pai e filho, não ficam juntos as 24 horas do dia”, observa.
Boris foi aposentado em 2008, pois tinha ficado velho e não conseguia mais trabalhar com toda a atenção que a tarefa exigia. Faleceu no ano seguinte e Thays está lançando um livro sobre seu grande amigo. Naturalmente, com uma versão em braille, destinada aos maiores beneficiários do cão-guia, os deficientes visuais. A ideia é fazer o lançamento em 27 de abril, justamente o Dia Internacional do Cão-Guia, comemorado na última quarta-feira desse mês.
Hoje Thays tem como fiel escudeiro o cão Diesel, um labrador marrom, que a acompanha ao trabalho, ao shopping e aonde quer que ela deseje ir. Os funcionários dos locais que frequenta já conhecem Diesel, que espera pacientemente enquanto sua dona é atendida. Parece um anjo da guarda, quieto mas sempre pronto a agir quando for chamado.