Postado em 09/03/2011
por João Tomas do Amaral
João Tomas do Amaral é mestre em matemática pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e doutorando na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo na área de ensino de ciências e matemática. É fundador da Sociedade Brasileira de Educação Matemática, tendo presidido a seção regional de São Paulo. Foi também vice-presidente do Comitê de Didática da Matemática do Cone Sul e coordenador de congressos de educação matemática e didática.
Foi conselheiro do Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia do Estado de São Paulo (Crea-SP), é professor da Faculdade de Tecnologia de São Paulo e da Universidade São Judas Tadeu. É autor de vários trabalhos publicados na área de matemática e do livro “Manual Compacto de Matemática”.
Na área musical, é articulista da revista “Toque Fácil”, autor de vários encartes de CDs dedicados ao choro e foi jurado em diversos festivais. Colecionador de discos vinculados ao movimento do choro, tem um acervo de aproximadamente 16 mil peças, entre discos de 78 rotações, LPs de 10 e 12 polegadas e CDs. É criador, produtor e apresentador do programa “Chorinho Brasil”, da Rádio Boa Nova.
Esta palestra de João Tomas do Amaral, com o tema “O Universo do Choro nos Multiversos da Cultura Brasileira”, foi proferida em reunião do Conselho de Economia, Sociologia e Política da Fecomercio, Sesc e Senac de São Paulo no dia 11 de novembro de 2010.
Vou contar um pouco da história do choro, de como surgiu minha predileção por esse gênero musical. Não tem a ver com minha formação universitária, é algo que se desenvolveu de forma autodidata. Por volta dos dez anos de idade, ia sempre à casa de alguns amigos cujos pais eram instrumentistas de música sertaneja. Nunca fui instrumentista, tentei ser aluno de bandolim do maestro Manuel Marques mas desisti, porque ele queria que eu fosse um exímio bandolinista e eu só queria me divertir.
Quando ia com minha mãe fazer compras na Ladeira Porto Geral comecei a ver algumas lojas de discos, onde tudo estava jogado, mas fui localizando alguns e comecei a comprar. O dinheiro que guardava do troco de pão era para pagar o recibo do time de futebol e os discos de choro. Mas não contava isso a ninguém, porque falar de choro em época de rock e iê-iê-iê era complicado. Fui aos poucos montando uma coleção de discos e mais tarde um aluno meu da universidade me chamou para trabalhar numa rádio, para apresentar o programa “Chorinho Brasil”. Há praticamente 20 anos vou todos os sábados, com raríssimas exceções, fazer o programa ao vivo.
Outro foco que quero destacar são os instrumentistas de choro, que vivem com dificuldade, por falta de oportunidades para se apresentar. Hoje o programa “Chorinho Brasil” é um dos poucos desse tipo no país, embora existam alguns projetos em certas emissoras. Mas são muito poucas as que têm um programa especificamente de choro.
Chamei meu tema de “O Universo do Choro nos Multiversos da Cultura Brasileira”. Por que universo? Universo é um conjunto de tudo o que existe. E o choro também tem seu universo. E por que multiverso? Esse é um conceito da física quântica, com raízes na cosmologia, que engloba um pouquinho da teoria da relatividade e abre a possibilidade de que existam muitos universos. Quando se fala em multiverso tecnicamente, ele abrange quatro níveis e um deles, falando de física matemática ou matemática física, é quando você faz um certo percurso e ele se abre, tem a oportunidade de ampliar essa discussão. Na verdade propus um panorama do que está acontecendo.
Sabemos que a Organização das Nações Unidas [ONU] também vem discutindo a diversidade cultural, temas enraizados nas questões de cada país, embora exista, com a globalização, a tentativa de liquidificar a cultura como um todo. Alguns países reclamam que estão se americanizando e há outros que dizem que estão se abrasileirando. Então existe uma troca.
Quando falamos da natureza da cultura, verificamos que esse conceito também é muito amplo, há cultura de massa, popular, cultura disso, daquilo. É uma palavra de âmbito complexo, diversificada e tem de ser entendida no contexto em que se quer falar. Eliana Stort, no livro Cultura, Imaginação e Conhecimento, agrega a ideia de cultura à dos símbolos. Ela diz: “Os símbolos acrescentam ao mundo um sentido, uma ordem. Em função de seus desejos, o homem toma a natureza e a transforma, surgindo então a cultura. Através da cultura, os objetos e as ações estão impregnados de sentidos. É pela cultura que o homem cumpre seu destino, seu destino ético”. O professor Bento de Jesus Caraça, autor português, identifica cultura e liberdade, dizendo: “Sem cultura não pode haver liberdade e sem liberdade não pode haver cultura”.
Quanto ao choro, todos os textos publicados relacionam historicamente seu surgimento, na segunda metade do século 19, na cidade do Rio de Janeiro, a um processo de fusão da cultura europeia, das músicas e instrumentos que vieram da Europa, com o que havia na cidade. Eram músicas europeias tocadas de forma híbrida. Em viagem recente a Portugal, localizei um CD sobre choro, que abrange o período de 1906 a 1947, editado na França. São várias composições. É um CD dedicado ao Ano do Brasil na França, em 2005. Tem um encarte em francês e uma nota simples que diz que o choro nasceu no Rio de Janeiro em 1880.
É importante entender que o choro é um processo, não um toque de mágica. Os textos falam do Rio de Janeiro, entre 1870 e 1880. Mas tenho um dado novo: São Paulo tem um movimento de música semelhante a esse, com gêneros europeus híbridos, já desde o ano de 1860. É necessário fazer uma pesquisa no jornal “Correio Paulistano”, que em 1864 noticiou que se reimprimia, numa gráfica paulistana, uma polca lundu chamada Nhã Nhã, de J. B. Bernardino e Silva. Ele publicou várias composições, não só de choro como de polca lundu e outros gêneros musicais relacionados ao movimento do choro.
Isso não destrói o que foi publicado fora do Brasil. É preciso acrescentar informações que ratificam que o movimento do choro é um processo e que passa significativamente pela cidade de São Paulo. Não podemos esquecer que a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco foi um polo cultural musical extremamente importante e por ali passaram acadêmicos que deram uma contribuição de destaque ao movimento do choro. Isso recompõe um pouco da história.
Movimento musical
A palavra “choro” surgiu da forma de interpretação, chorada, dolente ou chorosa. Existem outras análises e concepções a respeito desse termo, mas essa é a mais difundida. “Choro” pode significar também o conjunto, como Choro do Callado, Choro do Conselho, Choro Carioca, Choro da Chiquinha etc. E designa ainda o local onde se tocava essa música.
Saímos de uma forma de tocar, passamos pela estruturação de um gênero musical, feita por Pixinguinha, e chegamos a um movimento musical, que deu origem a vários outros. O samba nasce com os grupamentos de choro, as marchas carnavalescas surgem com Chiquinha Gonzaga, que, se Joaquim Callado é o pai, é a mãe do choro, e que mãe. A bossa nova surge com o choro. Em Chega de Saudade Tom Jobim deixou claro que a melodia nasce com o choro.
No Dicionário Harvard de Música, editado pela Editorial Alianza, da Espanha, o verbete “choro” diz que se trata de um grupo de serenatas surgido no fim do século 19 na cidade do Rio de Janeiro. Era formado por violões, cavaquinhos, flautas e outros instrumentos de sopro e percussão, que se dedicavam à polca e outras danças de origem europeia.
No começo do século 20 o choro se associou a danças populares, como o maxixe e o samba. O maxixe surgiu em 1870 e foi levado para a França. O samba veio depois, tendo surgido com o choro. Temos aqui um desvio histórico de informação. O termo “choro” também se aplica a diversos tipos de música instrumental, marcados pelo virtuosismo e improviso. E é utilizado ainda na música erudita, entre outros por Heitor Villa-Lobos. Lembro, aliás, que na Alemanha existem universidades em que para entrar no curso de música a prova final é interpretar três choros.
No universo musical temos habanera, mazurca, xote, valsa, baião, frevo, marcha, polca, maxixe, tango brasileiro, choro. Depois vêm os gêneros híbridos, valsa-choro, samba-choro, choro sambado e choro frevado, de Pernambuco. Há um disco maravilhoso de Antônio da Silva Torres com o choro frevado. Temos ainda choro-baião, baião chorado, polca-choro, choro sertanejo.
Zequinha de Abreu denominava seus chorinhos de “chorinhos sapecas”, aqueles mais buliçosos. Luiz Gonzaga batizou o gênero de “chamego”, que é um choro nordestino. As pessoas falam dele como rei do baião, mas esquecem que, antes de começar sua carreira no baião, Luiz Gonzaga tocava e gravava choro e tem várias composições desse tipo. Estamos inclusive desenvolvendo um projeto para mostrar a vertente de Luiz Gonzaga chorão. Dois choros dele são o Araponga e Dona Vera Tricotando.
Nos primórdios do choro tínhamos Joaquim Antônio da Silva Callado, flautista. A grande música que se coloca como referência do surgimento do choro é Flor Amorosa, de sua autoria, que depois recebeu letra de Catulo da Paixão Cearense. Há Patápio Silva, também flautista, que morreu muito cedo, assassinado em uma discussão. Depois temos Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga e Anacleto de Medeiros. Um clássico é Doce de Coco, de Jacob do Bandolim, interpretado por Dominguinhos. Essa música, aliás, foi gravada também por Yo-Yo Ma, um violoncelista japonês.
Tenho um acervo hoje de aproximadamente 16 mil discos. Entre eles uma interpretação original, do começo do século, de Patápio Silva, Primeiro Amor. E Ernesto Nazareth tocando piano, em Apanhei-te, Cavaquinho. A história dessa música tem duas versões. A primeira dá conta de que Nazareth foi desafiado por um companheiro, que lhe dizia que o piano não era tão ágil quanto o cavaquinho. Nazareth então mostrou que era. E a segunda diz que ele quis apenas homenagear um amigo cavaquinista. Não importa a versão, a música é maravilhosa.
Há ainda Chiquinha Gonzaga interpretando Gaúcho, que tem como subtítulo Corta-Jaca. Suas músicas eram colocadas nas peças de teatro, nas operetas do Rio de Janeiro. Ela musicou peças aqui e em Portugal.
Anacleto de Medeiros, outro personagem importante, foi fundador, no finzinho do século 19, da Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, que abrigou uma série de chorões. Muito rigoroso, ele experimentava todos os instrumentos musicais. Esses são alguns dos referenciais dos primórdios do choro, antes que Pixinguinha o estruturasse, começando a trabalhar a questão dos arranjos. A importância de Pixinguinha é tão significativa que Artur da Távola propôs uma lei para criar o Dia Nacional do Choro na data de seu nascimento, 23 de abril. O choro tem seu dia, mas muita coisa ainda precisa ser feita por ele, ou seja, por seus instrumentistas.
Conjuntos regionais
Radamés Gnattali, gaúcho de Porto Alegre, inicia mais tarde um período de renovação do choro. Ele tinha o sonho de estudar música na Europa, mas a bolsa de estudos lhe foi negada, assim como para Ernesto Nazareth. Dessa forma ficamos com dois dos mais importantes compositores e instrumentistas de nossa música. Os especialistas costumam dizer que a música brasileira se divide em dois períodos: antes e depois de Ernesto Nazareth. Radamés, quando chegou ao Rio de Janeiro, foi ouvi-lo na sala de teatro do Cine Odeon.
Radamés compôs uma suíte chamada Retratos, com quatro movimentos, dedicados a Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros e Pixinguinha. Ele tinha a ideia clara de que esses eram os quatro grandes pilares da música brasileira, vinculados ao movimento do choro.
É interessante o papel desempenhado, na história do choro, pelos conjuntos regionais. Jacob do Bandolim não gostava da palavra “regional”, preferia chamar apenas de “conjunto”. Vou citar quatro dos maiores, historicamente falando. O Regional do Canhoto, que tinha Orlando Silveira no acordeom, levado por Luiz Gonzaga, a flauta de Altamiro Carrilho, Meira, Dino e o próprio Canhoto.
Outro regional que rivalizava era o conjunto de Pernambuco do Pandeiro. Vejam que curiosamente o chefe do conjunto é um pandeirista. Nesse conjunto, que tinha Escurinho da Flauta, tocou acordeom Sivuca. Enquanto isso, Jacob do Bandolim, que era acompanhado de Cesar Faria, pai de Paulinho da Viola, além de Dino, Meira e Jorginho, criou seu próprio conjunto, chamado Época de Ouro. Segundo consta, esse nome foi dado em São Paulo numa roda de choro na casa de Antonio D’Auria, que o sugeriu. O Época de Ouro interpretava choros de Villa-Lobos. Esse compositor, aliás, fugia de casa para compartilhar com os chorões esse aprendizado musical.
Em São Paulo havia um conjunto, Izaías e seus Chorões, de Izaías Bueno de Almeida, que veio na sequência do Conjunto Atlântico, um grupo altamente representativo da capital paulista. Seu mentor era Antonio D’Auria, que tinha uma roda de choro na Avenida Rudge, e trazia Pixinguinha e Jacob do Bandolim, entre outros. Curiosamente, havia três bandolinistas, Amador Pinho, Walter Veloso e Izaías, naquela época muito jovem.
O ano de 1949 foi muito importante para a música instrumental brasileira. Nesse ano ocorreu uma coisa extremamente curiosa, que talvez passe despercebida. Jacob do Bandolim tinha gravado quatro discos na Continental, recebeu o convite da RCA Victor e se transferiu, deixando vago o cargo de instrumentista solista na gravadora. Como a Continental ficava no mesmo prédio da Rádio Clube do Brasil, no Rio de Janeiro, Braguinha, um dos diretores, passando pelo corredor ouviu um cavaquinista tocando. Era Waldir Azevedo, que foi imediatamente convidado para a vaga. A Odeon, por sua vez, contratou Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto, filho de imigrantes portugueses nascido aqui em São Paulo, para integrar o seu cast de instrumentistas.
Então houve esse movimento em 1949 com esses três grandes instrumentistas. É importante lembrar que Jacob tirou o bandolim da posição de acompanhamento e o trouxe para o solo, coisa que Waldir Azevedo também fez com o cavaquinho. Garoto, por sua vez, era um multi-instrumentista, tocava tudo, banjo, cavaquinho, violão, violão tenor, bandolim, guitarra havaiana.
O choro abrange um multiverso maluco, que vai de um instrumentista tocando sozinho a duos, trios, orquestras, conjuntos regionais etc. A orquestra de Waldo de Los Ríos gravou o Choro Número 1, de Villa-Lobos, com um violonista solando. Percy Faith gravou Delicado, de Waldir Azevedo, Ray Conniff, Tico-Tico no Fubá e vai por aí afora. Entre as orquestras brasileiras, uma inquestionável é a recordista de bailes no país, a Orquestra Tabajara.
Há choros interessantes, como Parque São Jorge, de Sílvio Mazzuca, ou o belíssimo Murmurando, de Fon-Fon. Jacob dizia que se tivesse de gravar o Murmurando, “gravaria sem parar”.
Outro multi-instrumentista era Zé Menezes de França, da cidade de Jardim, no Ceará, um garoto abençoado aos oito anos pelo Padre Cícero, que disse a ele: “Você vai tocar muito”. Zé Menezes foi maestro da orquestra da Rede Globo, tendo composto várias aberturas, inclusive para o “Fantástico” e “Os Trapalhões”.
Jacob do Bandolim tem uma música interessante, segundo ele, de cunho espiritualista. “Um sábado pela manhã, fui levar meu Fusca para lavar e lubrificar. Deixei o carro lá e fui à casa do João Dormund. Encontrei-o no quintal, pedi um pedaço de papel e uma caneta e, sem o bandolim nas mãos, tracei as pautas, coloquei as notas e entreguei a ele para que a rapaziada tocasse no domingo. Não pude comparecer. Na segunda-feira, João me perguntou se eu tinha ideia do que tinha feito. Disse que não.” João, que era um espírita convicto, deu o título de Vibrações a essa composição.
Gravações independentes
Vejamos um panorama rápido do choro no Brasil. Hoje praticamente só um estado do nordeste não tem movimento instituído, com instrumentistas, conjunto ou clube de choro. Nunca tivemos um período com tanta quantidade e também qualidade, não só de instrumentistas como de composições, rodas de choro, gravações em CD. E o movimento do choro vive um momento excepcional graças à possibilidade de gravar de forma independente. Muitas vezes as edições são pessoais, financiadas pelo próprio autor ou conjunto.
O Sesc merece menção honrosa, pelo trabalho importante que desenvolve quanto a apresentações de choro. Um exemplo é o “Chorando Alto”, um programa com três versões, em três anos, com instrumentistas brasileiros e de fora. E também o “Tempero do Choro”, mostrando as linguagens que existem pelo Brasil, como toca um instrumentista do norte, do nordeste, provando que a essência do choro está preservada, embora exista algum sotaque.
Quanto à presença do choro no exterior, no site do programa de rádio registramos a atividade em 41 países. No Brasil, dos mais de 5 mil municípios, temos cadastrados aproximadamente 200. Isso porque estamos falando de choro, uma cultura que não tem divulgação, não é o rock. Todos esses países têm algum movimento de choro, inclusive com grupos musicais. Em Israel há um conjunto chamado Chorolê, na França temos o Uraí, em Portugal a Roda do Choro de Lisboa e o Raspa de Tacho. Há os integrantes do Madredeus tocando choro, gravaram um disco em que Manuela Azevedo interpreta Carinhoso no melhor português castiço. Enfim, temos discos de choro esparramados pelo mundo afora. Um deles é de Yo-Yo Ma, japonês. Outros exemplos: o guitarrista português António Chainho tem uma música, Conversa das Comadres, em que sua guitarra portuguesa dialoga com o bandolim de Armandinho Macêdo. Há um multi-instrumentista de cordas de Cabo Verde, Bau, e também o grupo venezuelano Gurrufío, tocando música de choro. David Chesky compôs choro nos Estados Unidos e o cubano Paquito D’Rivera esteve no “Chorando Alto”, onde tocou Tico-Tico no Fubá.
Uma curiosidade: o Tico-Tico no Fubá tem cinco letras, quatro brasileiras e uma estrangeira. Os autores no Brasil são Eurico Barreiros, Aloísio Oliveira, Alvarenga e Ranchinho e Miguel Lima. E uma é atribuída a Ervin Drake, que é americano, gravada por Carmen Miranda.
Roda de choro
A roda de choro é uma escola livre de música. O instrumentista, não importa sua formação, tem de passar por uma roda para fazer sua iniciação e seu aprimoramento no movimento do choro. Ela é, portanto, extremamente importante. Muitas vezes alguns instrumentistas não gostam de participar, porque existe o improviso, aquele desafio. Às vezes criam-se antagonismos desnecessários, mas existem rodas de choro mais tranquilas, onde todo mundo pode exercitar sua participação. E por que roda de choro? Porque se toca choro revezando os instrumentistas, é uma roda mesmo onde cada um faz sua interpretação.
Atualmente o movimento do choro está nos teatros, nas universidades. O choro saiu do meio popular e foi para a academia, de certa forma está também elitizado, e ainda precisa ampliar sua contribuição na área social, inclusive na parte de formação. Mas há bons exemplos. Temos um grupo de meninas, o Choro das 3, que desde pequenas vinham de Porto Feliz a São Paulo tomar parte em rodas de choro. Danilo Brito, que venceu o prêmio TIM de música instrumental, tinha 12 anos de idade quando participou do “Chorinho Brasil”, sentado no chão do estúdio. Hoje viaja frequentemente aos Estados Unidos, fazendo intercâmbio de bandolim com Mike Marshall. Mas precisamos trabalhar a questão da formação dos instrumentistas, garantindo-lhes a possibilidade de ascensão social e alimentando uma forma de trazer cultura para o grande público.
Precisamos melhorar as políticas públicas de incentivo. São Paulo tem um clube de choro apenas no papel, que não funciona por falta de apoio. O movimento do choro de Brasília tem um clube superativo, porque recebe incentivo da região. Temos um projeto de choro paulista, já aprovado, mas falta o financiamento. O apoio certamente possibilitará melhores condições econômicas para os instrumentistas de choro, oferecendo ao público o acesso a nossa primeira expressão instrumental.
Como dizia Gilberto Freyre, a miscigenação de raças, em vez de ser um obstáculo, trouxe essa originalidade que temos na forma do convívio e no modo de olhar e sentir nossa cultura musical.
Debate
HUGO NAPOLEÃO – Quem não se lembra de Altamiro Carrilho e sua bandinha? O chorinho tem um quê de tristeza, mas tem muito de alegria, de entusiasmo, diferentemente do fado. A dominação árabe de 800 anos na península Ibérica trouxe para as músicas espanhola e portuguesa suas conotações, aquela um pouco mais alegre. O fado é lindo, mas modorrento, triste.
ZEVI GHIVELDER – Gosto muito da música de Alexandre Levy, que morreu muito cedo, aos 28 anos. Ela se insere nesse universo do choro? Você falou dos diversos idiomas em que Tico-Tico no Fubá é cantado, e devo dizer que existe uma versão dessa música em iídiche, gravada pelo comediante americano Mickey Katz, pai do ator Joel Grey, aquele que faz o mestre de cerimônias em Cabaret.
TOMAS – Alexandre Levy está nesse universo, com certeza. Ele é desses compositores que estavam muito arraigados à cultura europeia. Mas ele não é um autor dos mais conhecidos.
JOSUÉ MUSSALÉM – Conheci pessoalmente Luiz Gonzaga, um sujeito engraçadíssimo. Ele contava que passou 20 anos sem ir para casa de seu pai, Januário, muito rigoroso, que morava no sertão de Pernambuco, em Exu, famosa pela briga entre as famílias Alencar e Sampaio, que somou mais de 80 mortes. Quando Luiz Gonzaga um dia voltou para casa, depois de tantos anos sem ver o pai, chegou à uma hora da manhã, bateu na porta e ninguém atendeu. Lembrou-se então de uma senha da família, de fundo religioso, e disse assim: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”. E o pai dele lá dentro respondeu: “Para sempre seja louvado”, abriu a porta e emendou: “Isso é hora de chegar em casa, cabra safado?”
Uma curiosidade. Sou estudioso da 2ª Guerra Mundial e consta que quando a Força Aérea Brasileira [FAB] mandou aviadores fazerem o treinamento em Aguadulce, no Panamá, na formatura do primeiro grupo de caça foi organizado um desfile militar. Os americanos desfilaram cantando o hino da força aérea de seu país e os brasileiros – a FAB era muito nova e não tinha hino – cantaram: “Ó jardineira, por que estás tão triste?” E os americanos aplaudiram, considerando aquele hino muito marcial e bonito.
SAMUEL PFROMM NETTO – Venho trabalhando há algum tempo no preparo de um livro que se chama Tempo de Valsa, em que apresento a trajetória da valsa e de seus criadores desde as origens populares na Europa central até a atualidade. Há valsinhas de Chico Buarque, de Vinicius e de outros compositores de nossos tempos, assim como existem outras que se perderam nas brumas do passado. A valsa surgiu no Brasil nas primeiras décadas do século 19 e existe um inexplicável silêncio sobre nosso primeiro compositor desse gênero musical. É triste constatar que nosso país desmemoriado se esquece de que dom Pedro I foi, além de tantas outras coisas, nosso primeiro autor de valsas. Descobri inúmeros compositores e intérpretes e centenas e centenas de belíssimas valsas brasileiras, datadas do tempo do Império, dos primórdios da República e da primeira metade do século passado. Infelizmente, de muitas delas, que encantaram nossos antepassados e tiveram êxito até em outros países, nada mais resta, a não ser vagas informações em periódicos antigos e em velhos livros de modinhas e canções.
Acontece que alguns dos estudiosos têm, com razão, lembrado que o choro, para mim muito mais uma forma de tocar do que um gênero musical específico, mesclou três influências decisivas: as valsas e outras danças europeias de salão, notadamente a polca em sua estrutura melódica harmônica, o ritmo da música africana e a melancolia no tratamento da interpretação, com raízes em nossa humilde música indígena. As três raças tristes se fundiram no corpo do choro. Essas palavras são de Mauricio Carrilho, que não deixa de sublinhar a ligação umbilical entre choro e samba.
Há um autor de vários livros sobre música popular no Brasil que odeia a valsa, a polca e assim por diante, porque, diz ele, isso é música de elite na Europa. Ele se esquece de que a valsa nasceu no seio do povão, dançada por populares, era a dança rústica e absolutamente não surgiu nos salões esplendorosos da elite. As marchas e os sambas também têm na verdade muito mais a ver com música importada, as danças e os cantos africanos estão no cerne de nossa música popular. É mais do que evidente que nosso samba tem os pés fincados em solo africano.
Não deixa de ser significativo o fato de que muitos dos principais criadores e intérpretes de choros no passado tenham sido igualmente nomes de primeira grandeza em valsa, polca, xote, quadrilha, mazurca, gêneros de música e dança originários da velha Europa, aqui aclimatados. É o caso de Chiquinha Gonzaga, Anacleto, Callado, Nazareth, Octavio Dutra, infelizmente tão esquecido, Alfredo Gama, Tonheca Dantas. Penso que valeria a pena uma aproximação do choro com essa vasta herança musical, porque, afinal de contas, somos filhos de uma tradição europeia.
MÁRIO CHAMIE – Vim fascinado para esta reunião, porque me fixei na palavra “multiversos”. Descobri depois, com sua explicação, que é um conceito ligado à física quântica. Como sou analfabeto em relação a ciências exatas, associei multiversos com a versão própria do discurso literário, que se chama intertexto. A música popular brasileira tem uma intertextualidade no sentido de que abastece a tradição literária e é abastecida por ela, mais do que se supõe. Por exemplo, grande parte da obra de Gregório de Matos são modinhas, Caldas Barbosa tem suas modinhas, assim como Catulo da Paixão Cearense e até Mário de Andrade, com o predomínio do heptassílabo, ou a redondilha maior ou a redondilha menor, que vem dar em João Cabral de Melo Neto, que faz o rio em Morte e Vida Severina exatamente nessa medida. Graças a essa intertextualidade vamos entender muito melhor a tradição oral provinda da palavra escrita, que é brasileira com raízes na poesia portuguesa, das cantigas de amigo principalmente, e dos contos populares, como Mário de Andrade exaustivamente estudou. Quando o chorinho, por exemplo, é vertido, sai-se do discurso sonoro para o discurso escrito ou verbalizado. Podem notar que se trabalha com redondilhas.
Penso que o chorinho, depois o samba de morro e a partir da década de 1960 o samba escolarizado, com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Edu Lobo, têm uma aproximação e uma reciprocidade, uma espécie de retroalimentação contínua de uma cultura literária estabelecida e de uma tradição oral criada em cima dessa cultura literária. Vem desde Anchieta inclusive, que fez heptassílabos para falar de Nossa Senhora, até os poetas modernistas. Manuel Bandeira – “Vou-me embora pra Pasárgada,/ Lá sou amigo do rei,/ Lá tenho a mulher que eu quero,/ Na cama que escolherei” – utiliza redondilhas. Gostaria de saber se o conferencista acha que isso é pertinente e se ele tem interesse nessa linha de pesquisa.
CLÁUDIO CONTADOR – Penso que o choro tem relação com o funcionalismo público, pois o Rio de Janeiro tinha uma tradição forte de choro e em Brasília existe hoje muito chorinho proveniente de grupos de funcionários públicos.
JACOB KLINTOWITZ – Dizem que aquilo que fazemos sem esforço e com prazer é nossa verdadeira natureza.
JÚLIO MEDAGLIA – Vou tocar em outro assunto em relação ao choro e à música brasileira que é bastante trágico e nada agradável. Enquanto o choro e a música brasileira em todas as suas formas de expressão surgiram e aconteciam espontaneamente, circulando por todo o país, de repente começou a se industrializar a música brasileira, através dos meios de comunicação. Durante algum tempo foi provado que o brasileiro tinha grande sensibilidade musical, porque a Rádio Nacional tinha uma audiência absurda, jamais atingida antes em nenhum meio de comunicação eletrônica do mundo. Depois veio um que a superou, a TV Record, que quando fez aquele famoso festival de 1977 alcançou um Ibope de 94% de audiência, índice que foi parar no Guinness como o maior da história da televisão mundial. Ou seja, o brasileiro não é um imbecil que detesta música de qualidade. Entretanto, toda essa qualidade que vimos aqui nos exemplos citados está completamente fora dos meios de comunicação e fora do repertório das novas gerações.
A mídia de hoje não tem mais poetas como Adolpho Bloch, que imaginava fazer uma televisão digna. Há 25 anos não há absolutamente nada de música na tevê no horário comercial. Não existe um programa, um convidado, nem sonoplastia mais sabem fazer. Estava vendo um capítulo da novela “Passione”, em que a personagem vivida por Fernanda Montenegro faz uma revelação depois de 50 anos, e fiquei esperando as maiores violinadas do mundo, mas não houve música, um ficou olhando para a cara do outro como idiota. Desaprenderam a lidar com a música. Sei que estou falando isso no lugar menos indicado, porque o Sesc é a única instituição deste país que segura a barra, para usar uma expressão popular, de uma música e de uma atividade cultural espontânea, inteligente, maravilhosa, pelas atividades que desenvolve. Quem deveria corrigir essa distorção, nossos secretários e ministros de cultura, infelizmente são uns piores que os outros. Digo isso com toda a liberdade, porque o melhor de todos está nesta mesa, Mário Chamie, responsável por uma secretaria que funcionava que era uma maravilha.
Então o que precisamos é que realmente venha a acontecer em nosso país o reencontro da capacidade empresarial com o talento. Não se está sabendo industrializar isso, apesar de existir sensibilidade, como vimos hoje.
Para encerrar, a propósito da valsa há pouco tempo recebi um convite de meus amigos na Filarmônica de Berlim para escrever umas músicas para um conjunto de sopros daquela orquestra, para serem executadas em Salzburgo no dia da inauguração da Fundação Karajan. Herbert von Karajan, que foi o maior maestro do século, tinha falecido e iam tocar em sua memória. Pediram-me algo com espírito brasileiro e respondi que mandaria a mais brasileira das músicas, uma valsa. Fiz então uma valsa paulistana, mandei e foi uma felicidade quando tocaram aquele melodismo completamente escancarado. Foi minha homenagem à valsa e tenho também alguns choros que estão gravados, o que de alguma forma mostra que a sensibilidade brasileira ultrapassa fronteiras. Só não consegue entrar em nossas emissoras de rádio e televisão.
TOMAS – Quanto ao esquecimento das valsas, costuma-se dizer que o brasileiro é um povo sem memória. Na verdade temos os dados, mas não trabalhamos com a informação e muito menos com o conhecimento. Vivemos a sociedade dos dados e um dado se transforma em informação quando alguém se interessa por ele. Quando alguém se aprofunda na informação, então ela vira conhecimento que pode se transformar em inteligência. Concordo com o que o professor Pfromm e o maestro Júlio Medaglia colocam, retratando o descaso. Por exemplo, tivemos recentemente a morte de um dos maiores colecionadores de música de violão do mundo, Ronoel Simões, que teve programas de rádio. O que vai se fazer com o acervo que deixou? Temos um débito muito grande com a cultura.
Quanto à pergunta de Mário Chamie, quero crer que é uma vertente muito importante. Como faço isso por diletantismo, espero que alguém faça aquele levantamento no “Correio Paulistano”. Vamos ter muitas surpresas ainda sobre a importância de São Paulo na cultura brasileira. A discografia brasileira está mal catalogada, o país peca porque muita pesquisa sobre nossa música é feita lá fora e muitas informações a respeito de nossa verdadeira cultura são sonegadas para o grande público.
Cláudio, quanto à questão do funcionalismo público, temos uma nova geografia também musical e é extremamente importante ver que as grandes iniciativas no movimento do choro acontecem quando o instrumentista está ligado a um emprego.
Jacob, penso que estão abertas grandes perspectivas nas grandes metas, colocadas pela ONU, de diversidade cultural. Mas é preciso cair na dimensão que o maestro Júlio citou, partir para a ação e não só ter planos. Por exemplo, temos um projeto sobre o choro paulista, mas falta dinheiro, não temos quem financie.