Postado em 08/09/2011
por Marcelo Santos
Os gêmeos Wallace e Weslley Faleiros, de 1 ano de idade; os irmãos João e Nicolas dos Santos, de 3 e 2 anos respectivamente, são apenas números de uma longa lista de espera na prefeitura de São Paulo. À frente deles há outros 127.651. Essa é a quantidade de cadastros registrados de mães e pais que procuram vagas em creches públicas na cidade, na esperança de ser atendidos. Os dados são da própria secretaria municipal da capital mais rica e desenvolvida do país.
Tatiana Faleiros, de 22 anos, e sua prima Raquel dos Santos, de 25, mães do pequenino quarteto, estão desanimadas. Ambas já perderam boas oportunidades no mercado de trabalho. Empregos em recepções, mercados, indústrias e residências. Chances que tinham de ajudar os respectivos maridos na dura tarefa de pagar as contas, ainda mais quando se mora num espaço desprovido de equipamentos públicos de qualidade, como a Favela Brás de Abreu, no distrito de Cidade Ademar, na zona sul paulistana.
A região abriga 52 mil crianças de até 6 anos de idade e figura como o quinto pior distrito municipal, quando se olha para os indicadores de acesso aos Centros de Educação Infantil (CEIs) ou Escolas Municipais de Educação Infantil (Emeis). Por lá, de cada grupo de cem, apenas 45 crianças conseguem atendimento nas creches. “Aqui na região esse é um problema muito sério. Muitas mães precisam ajudar nas despesas de casa, mas não têm onde deixar os filhos. É um grande constrangimento para as famílias. Há casos de mulheres que deixam de trabalhar ou que, quando podem, levam as crianças para o emprego. Existem ainda aquelas que deixam os filhos com vizinhos ou, pior, sozinhos em casa”, diz Airton Góes, jornalista e coordenador do Fórum Social de Cidade Ademar e Pedreira, uma iniciativa comunitária destinada a debater as principais carências da região.
Num salão emprestado por uma igreja, Airton reuniu dezenas de pais e mães no último mês de maio. Tatiana e Raquel estavam presentes. O jornalista falou sobre as dificuldades de implantação de novas creches e contou que a espera por uma vaga demora, em média, dois anos. “É por isso que temos de pressionar o poder público por respostas”, disse, estimulando o ativismo.
Em meados de março, o ministro da Educação, Fernando Haddad, e o secretário municipal de Educação, Alexandre Schneider, estiveram naquela área pouco lembrada da cidade ouvindo os pedidos, às vezes inflamados, de pais por vagas para seus filhos. A demanda não atendida por educação infantil vem gerando grande dor de cabeça ao poder executivo municipal. O prefeito Gilberto Kassab é alvo de um processo judicial baseado na Lei de Improbidade Administrativa, movido pelo Ministério Público Estadual (MPE), que o responsabiliza por não atender à procura por vagas em creches na capital. A ação, assinada pelas promotoras de Justiça Dora Martin Strilicherk, Luciana Bergamo Tchorbadjian e Carmen Lúcia de Mello Cornaccioni, da Promotoria de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos da Infância e da Juventude, questiona a falta de execução do Plano Plurianual de 2006/2009, que previa a construção de 126 Emeis e 142 CEIs. No entanto, durante esse período, foram erguidas apenas, respectivamente, 38 e 53 unidades – menos da metade do compromisso, de acordo com o texto da inédita ação.
A Secretaria Municipal de Educação alega que a prefeitura tem se esforçado para atender todas as regiões, em especial as de maior demanda. O problema é que muitas delas ficam em áreas de mananciais, onde é difícil encontrar terrenos, explicou o órgão através de nota da assessoria de imprensa. Além disso, segundo o texto, a demora se deve a vários fatores: “Depois de localizada a área, é necessário fazer um estudo do local, proceder à desapropriação, elaborar o projeto, o edital, a licitação, respeitar prazos de contestação do processo licitatório, providenciar a assinatura do contrato e só então iniciar a obra”.
Os motivos não são aceitos pelo MPE, que considera a explicação “risível”. Segundo as promotoras de Justiça, não cabe alegar falta de terrenos quando o município não foi capaz de frear a ocupação irregular em áreas de proteção ambiental, dotadas inclusive de serviços públicos, como o fornecimento de água, luz e telefone. Considerando a enormidade da demanda por educação infantil não atendida, que se concentra justamente nos bairros mais periféricos da cidade de São Paulo e de forma mais acentuada nas zonas sul e leste, o MPE questiona também a morosidade na construção de novos equipamentos, que levam cerca de 1 ano e 7 meses para ser erguidos, ao custo médio de R$ 1,6 milhão.
Problema nacional
A questão está bem distante, porém, de ser um problema exclusivo da metrópole paulista ou da região sudeste, onde está quase metade das crianças matriculadas em creches do país (47% do total). Em seguida vêm as regiões nordeste, com 24%, sul, com 18%, centro-oeste, com 7%, e norte, com 4%. Os números são da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente, representante no Brasil da ONG internacional Save the Children, divulgados no segundo semestre de 2010, com base nos registros de 2009 do Censo Escolar do Ministério da Educação e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Se atendesse ao compromisso feito através do Plano Nacional de Educação (PNE), elaborado pelo MEC em 2001, o Brasil teria neste ano 50% de suas crianças de até 3 anos de idade matriculadas em creches. Na realidade, porém, o país tem uma população de cerca de 12 milhões de brasileiros nessa faixa etária, dos quais quase metade, 5,5 milhões, necessita de atendimento gratuito, mas apenas 1,1 milhão têm acesso a esse direito. Um desempenho digno de reprovação.
“Na faixa etária de zero a 3 anos, 80% dos que precisam dos equipamentos públicos não são atendidos. Necessitamos de 46.548 creches para suprir a falta de vagas”, contabiliza Denise Maria Cesario, socióloga e gerente executiva da Fundação Abrinq. Segundo ela, está em vigor um processo de exclusão, uma vez que as crianças oriundas de famílias de baixa renda não têm acesso à educação, o que trava o desenvolvimento econômico e social do país. “É preciso sensibilizar a sociedade a respeito dessa situação e cobrar das autoridades maior investimento no ensino básico”, alerta.
Na esteira desse déficit, escolas particulares ganham cada vez mais espaço. De acordo com o último Censo Escolar, de 2010, o sistema privado de ensino respondeu por 34, 4% do total de matrículas de crianças de zero a 3 anos. Para quem não pode pagar muito e não encontra vaga em estabelecimentos públicos, a saída é o fenômeno social conhecido como “mães crecheiras”: mulheres – geralmente vizinhas – que abrem a própria casa para receber crianças enquanto os pais estão no trabalho. O fato é tão corriqueiro em comunidades carentes das regiões metropolitanas que até já inspirou parlamentares a regularizar o ofício. Na maioria esmagadora dos países, entre os quais o Brasil se inclui, a mãe, quando empregada, tem de retornar ao trabalho quatro meses depois do nascimento do filho. Nos lares de famílias de baixa renda, a situação é mais preocupante.
Foi com base nessa realidade que o deputado federal Luiz Carlos Pitiman, do PMDB do Distrito Federal, protocolou o projeto de lei nº 75/2011, que prevê um auxílio financeiro, custeado pelo erário, às mães que aceitem cuidar de crianças de até 3 anos. De acordo com o texto, a “mãe crecheira” deve ter concluído o ensino fundamental para exercer a função, além de passar por uma capacitação profissional, oferecida pelo município, de no mínimo 20 horas. Segundo justificou o parlamentar, essa seria uma forma de minimizar o grave problema da falta de vagas em creches, enquanto não se tem uma resposta que atenda melhor à população.
Consequências pedagógicas
Coordenadora do curso de pedagogia e do Núcleo de Trabalhos Comunitários da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Maria Stela Graciani entende que o atendimento em uma creche ou pré-escola vai muito além do aspecto social ou “cuidador” e tem reflexos na formação da criança. Segundo ela, o trabalho da “mãe crecheira” ou “cuidadora comunitária” – normalmente uma mulher que exerce liderança no bairro – tem um componente social muito importante, profundamente humano, e funciona como uma alternativa para a mãe que precisa trabalhar, mas, do ponto de vista do desenvolvimento infantil, é uma verdadeira tragédia. “A criança fica num ambiente restrito, carente de equipamentos, com espaços acanhados e alimentação inadequada, até porque a ajuda de custo é, em geral, precária. Esse atendimento não apresenta a qualidade de uma educação infantil com especificidades nem prepara a criança para o processo de alfabetização.”
Na opinião da professora, é importante lembrar que na primeira fase da vida vão se consolidando a identidade, a personalidade e o caráter. “Através de várias ações pedagógicas são estimuladas habilidades como andar, olhar, tocar e pegar. É nesse período também que a criança aprende a se alimentar e se movimentar, descobre o delineamento de cores, formas e estruturas. Esses instrumentais servem para que ela desenvolva competências que a ajudem a crescer e amadurecer. Dificilmente se pode recuperar isso.” É como se fosse uma equação simples. “Existe a visão individualizada e a coletivizada. Você aprende mais com o coletivo que com o individual”, resume ela.
Numa comparação entre crianças que tiveram acesso à creche e à pré-escola com outras que foram privadas desse direito, Maria Stela Graciani, que também atua como representante do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), aponta uma clara diferença. “Aquela que não teve a possibilidade de usufruir desse aparato quando pequena fica totalmente alienada, perplexa diante das atividades que não lhe foram suficientemente mostradas, experienciadas e vividas.” Segundo a professora, isso tem graves reflexos no desenvolvimento, podendo resultar em dificuldades de aprendizagem, durante os futuros ciclos escolares. “As pessoas depois argumentam que a culpa é da qualidade da escola, do professor ou do equipamento pedagógico, mas existem outros fatores que deveriam ser colocados nessa balança. Quando um aluno é reprovado na escola, ele já foi antes reprovado na vida. Não é só na matemática, na língua portuguesa ou na geografia.”
Elefante branco
Construir os equipamentos talvez seja o menor dos problemas. Dinheiro para isso, segundo o governo federal, não falta. Em 2007 foi criado o Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil (ProInfância), que integra a segunda etapa do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC2). Desde então já foram celebrados 2.348 convênios com prefeituras, com liberação de verbas para as obras.
Mesmo assim, apenas 320 creches foram concluídas. O Ministério da Educação avisou que pretende construir este ano 1,5 mil novas escolas para crianças de até 3 anos de idade e outras 6 mil até 2014. Caberia ao poder municipal a manutenção dos estabelecimentos e a contratação de funcionários, conforme já prevê a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). “O programa é muito bom, mas a manutenção posterior é de responsabilidade dos municípios. Essa parte do investimento é muito alta, com equipamentos específicos e a contratação de profissionais, entre outros gastos, principalmente em se tratando de crianças pequenas. Ocorre que muitas dessas prefeituras não têm sequer renda própria e dependem de ajuda federal. Manter creches acaba sendo difícil. Temos informação de que muitas não aderem ao ProInfância por conta desses custos posteriores”, observa Maria Thereza Oliva Marcílio, coordenadora da Rede Nacional Primeira Infância, uma entidade formada por um conjunto de organizações da sociedade civil, governo e setor privado. “Grandes passos foram dados, mas é preciso repensar o problema fundamental de financiamento da educação, principalmente no que se refere às creches”, acrescenta.
Segundo ela, a questão não envolve apenas uma prestação de serviços pelo poder público. “O problema das creches não constituiu ainda uma demanda popular que traga resultados. O Brasil precisa assumir isso como uma exigência legítima, urgente e necessária”, observa.
De fato, a exemplo do modo como são vistas em geral as “mães crecheiras” e babás, é senso comum que cuidar de crianças pequenas constitui um ofício que não requer maiores qualificações profissionais e, por isso, é mal remunerado. “Essa ideia ainda faz parte do imaginário da população e tem de mudar. E não é o poder público que fará isso. A transformação virá quando a sociedade perceber a importância da educação na primeira infância e entender a criança como sujeito de direitos”, diz a coordenadora. “Se nem mesmo conseguimos cumprir metas em relação ao ensino fundamental, obviamente, apesar de não servir como justificativa, a creche fica em segundo plano.”
Maria Thereza acredita que parte do descaso em relação ao problema se deve ao fato de a demanda reprimida encontrar-se justamente entre a população com menor poder aquisitivo e, por consequência, de pressão. “No Brasil, infelizmente, por questões históricas, econômicas e sociais, se criou a ideia de que quem pode paga, quem não pode usa o sistema público. Em consequência, este último é visto como algo de qualidade inferior. Isso tem impacto e faz com que se deixe de cobrar, como seria necessário. Esse é o nosso apartheid.”
A auxiliar de enfermagem Eliene de Souza Rosa, de 32 anos, é uma das que não podem pagar. Para cobrir apenas as despesas básicas de sua família, precisa fazer um contorcionismo matemático com seu salário de pouco mais de R$ 1.000 ao mês. Moradora de uma comunidade carente no bairro de Itaquera, na zona leste paulistana, ela precisa passar por uma estreita e sinuosa viela, driblando jovens que usam entorpecentes de dia e de noite, para enfim chegar até sua casa, onde vive com o marido e as três filhas: Brenda, de 12 anos, Alexia, de 10, e a caçula Mariana, de 2. Mesmo assim, está feliz. “Consegui a vaga para ela depois de um ano de espera. Minhas filhas mais velhas estão esperando ser chamadas até hoje, mais de dez anos depois de eu me inscrever.”
Até um ano atrás, Eliene era obrigada a deixar as três meninas sozinhas em casa ou aos cuidados de alguma generosa vizinha para poder trabalhar. Cansou de procurar secretarias de creches, conselhos tutelares e delegacias de ensino. “Já chorei muito e cheguei a desanimar.” Hoje, sua vida não ficou muito mais fácil. Para chegar à escola da pequena Mariana o percurso é de mais de 3 quilômetros, mas, segundo a secretaria municipal – talvez baseada em informações do Google –, ele é bem menor. Por essa razão, Mariana não tem direito ao transporte escolar gratuito (TEG), serviço garantido por lei em São Paulo para crianças que residam a uma distância superior a 2 quilômetros da escola. A mãe é obrigada a arcar com a despesa do transporte particular, ao custo de R$ 85 por mês. “Como eu pagava quase R$ 300 por uma creche particular aqui perto, ainda vale a pena.” O local chamado de “creche” na verdade é uma das muitas escolas clandestinas que pipocam pelos bolsões de pobreza nas regiões metropolitanas do país. Elas podem se revelar uma perigosa opção, mas, muitas vezes, são a única disponível para que mulheres carentes possam exercer dois direitos fundamentais tão caros ao gênero. O de ser mãe e o de trabalhar.