Postado em 05/01/2012
por Felipe Obrer
A colonização foi um processo complexo. No sul do Brasil aconteceu em etapas, em camadas cronológicas cheias de interseções e interpenetrações, por centenas de anos, com fluxos de imigração bastante tardios em relação a outras partes do país, com a vinda sobretudo de pessoas de origem germânica e italiana, entre outros povos europeus, da metade ao final do século 19 até pouco mais da metade do século 20.
Desde muito antes, contudo, os portugueses, colonizadores “oficiais” do país, já tinham poder sobre boa parte da atual região sul, apesar das brechas entre o que o Tratado de Tordesilhas e seus sucedâneos definiam e o que ocorria no lusco-fusco da ausência lusitana.
A região que hoje corresponde ao estado de Santa Catarina, especialmente o litoral, recebia visitas de espanhóis, holandeses, ingleses e exploradores de origens múltiplas. Foi para estabelecer o domínio português na vila de Nossa Senhora do Desterro – antigo nome de Florianópolis – que a coroa enviou, no fim da primeira metade do século 18, o brigadeiro e engenheiro militar José da Silva Paes. Sua incumbência era repovoar a cidade e criar um sistema defensivo que impedisse o acesso marítimo de visitantes indesejados, que tinham a ilha de Santa Catarina como escala, rumo ao estreito de Magalhães ou em busca de bens naturais por todas as Américas. Eles passavam às vezes, por exemplo, pelo Rio de Janeiro, em seguida por Santa Catarina, logo mais por Rio Grande e por fim por Montevidéu, no atual Uruguai. Portugal mesmo se aprofundou tanto nessas expedições que formou a Colônia do Sacramento naquele país.
Cabe a ressalva de que, excetuados os espanhóis, a maior parte dos estrangeiros recebia acolhida mais ou menos hospitaleira nas terras continentais e nas ilhas catarinenses, com direito, ao entrar na Barra Norte, a salvas de tiros de canhão como sinal de boas-vindas. Desde o início da ocupação, aliás, os marujos ficavam em Santa Catarina por dias, semanas ou meses dedicados ao reabastecimento de víveres, conserto das embarcações e tratamento dos doentes. Já o contato dos forasteiros com indígenas e negros que habitavam a região era mal visto pelos militares portugueses, que segundo alguns relatos tratavam de impedi-lo.
O contingente necessário à manutenção do povoado foi arregimentado nas ilhas dos Açores e Madeira, pertencentes a Portugal, em troca de promessas que incluíam descrições da terra prometida. Estima-se que vieram ao todo por volta de 6 mil pessoas do arquipélago açoriano para a nova terra, onde aprimorariam a arte da pesca com os índios e a feitura das canoas de guapuruvu, uma árvore de muitos nomes, como bacurubu, ficheira e pau-de-vintém, entre outros. Os açorianos também aprenderam a adaptar o engenho que usavam para o trigo à produção de farinha de mandioca, cultura agrícola assimilada dos nativos. Talvez por isso a farinha feita na região que hoje corresponde à Grande Florianópolis seja menos grossa que a produzida em outras partes do Brasil.
Infelizmente, faltou quem contasse de forma escrita a história do ponto de vista dos índios, assim como dos africanos trazidos à força. Grassam relatos registrados de navegadores de origem inglesa, portuguesa, espanhola, francesa, suíça e até russa.
Invasão espanhola
José da Silva Paes foi, portanto, o eminente emissário do império português nomeado governador da província com a missão de explorar a mata, regulamentar costumes, padronizar procedimentos e vencer batalhas. Ele chegou em 1738 e, segundo Gilberto Gerlach, no livro Desterro, fez com que os autodeclarados soldados da coroa portuguesa que já estavam na região, até então vivendo de maneira bastante anárquica, se amoldassem a novas normas, como a proibição do comércio livre com navegadores e a imposição de impostos.
Silva Paes, porém, já não era mais o comandante do sistema defensivo havia duas ou três décadas quando aconteceu uma invasão espanhola, ainda naquele século 18, que não enfrentou resistência nem tiros de canhão. Bastou que se visse, das fortalezas, a superioridade numérica das naus para que a rendição e a fuga portuguesas fossem automáticas. Falamos aqui da tomada espanhola da região e das fortificações ocorrida em 1777, quando o comandante espanhol Pedro Cevallos, que governava Buenos Aires, apossou-se de terras catarinenses como quem sorve um cálice de vinho argentino hoje num restaurante em Canasvieiras, praia na qual aportou. Sua esquadra contava com mais de uma centena de embarcações e o número de homens, dizem textos históricos, era superior a 10 mil. Já os representantes militares de Portugal estima-se que eram menos de mil e as embarcações com que contavam eram inferiores a duas dezenas.
Foi nessas condições que a bandeira branca surgiu antes de qualquer confronto. Como as três fortificações que protegiam a Barra Norte da ilha de Santa Catarina – São José da Ponta Grossa, na própria ilha, Santa Cruz, na ilha de Anhatomirim, e Santo Antônio, na de Ratones Grande – funcionavam em um sistema de triangulação de fogos, quando uma era desarticulada, perdiam-se todas. Os espanhóis se retiraram no ano seguinte sem confronto bélico, graças a um acordo nas altas esferas reais.
Ao sul, numa ilha pequena chamada Araçatuba, a Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição bastava para a defesa do canal, mais estreito, entre a face sudoeste da ilha de Santa Catarina e o continente. Essas quatro edificações militares são as principais desse período colonial. Todas elas foram erguidas entre a chegada de Silva Paes, em 1738, e meados da década seguinte, sob a supervisão do comandante, que partiria para construir fortificações em outros lugares após uma permanência de cerca de dez anos na ilha. Além dessas, é claro, há na região várias construções desse tipo posteriores à partida de Silva Paes.
Se a supervisão das obras era atribuição do comandante, como bem sabemos o trabalho de erguê-las cabia à plebe. Para a tarefa contribuíram a contragosto indígenas aprisionados, negros trazidos da África e degredados vários, além de açorianos e madeirenses em fuga das dificuldades que enfrentavam em suas origens insulares.
Vocação belicista
Já no século 20, à época da Segunda Guerra, depois de um período de inatividade as fortificações serviram como bases militares, contando até com instalação de baterias antiaéreas e postos de comunicação para interceptar movimentações no mar territorial brasileiro. Antes, por volta de 1894, durante o governo de Floriano Peixoto e a Revolução Federalista, a ilha de Anhatomirim, com sua fortaleza, serviu como plataforma do martírio dos insurgentes promovido por Moreira César, que seria mais tarde morto em Canudos. Tempos depois um deputado homenagearia o presidente marechal com a mudança do nome da cidade de Desterro para Florianópolis.
A Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição está em ruínas, não tendo até hoje sido recomposta e aberta ao público, ainda que possa ser visitada informalmente. Nos anos 2000 houve aprovação de recursos do Ministério do Turismo para o restauro, mas a empresa vencedora da licitação decretou falência e o dinheiro foi devolvido à União.
Já as outras três, da Barra Norte, passaram pelo processo de restauro entre a metade da década de 1980 e o início dos anos 1990, com financiamento vultoso da Fundação Banco do Brasil, da ordem de US$ 1 milhão, em convênio a fundo perdido. A manutenção dessas fortalezas é de responsabilidade da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a Marinha participa com a cessão territorial e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) colaborou em questões técnicas. As instalações estão abertas à visitação e, enquanto o dinheiro proveniente da fundação durou, houve equipes de guias-bolsistas da própria UFSC, que pernoitavam na ilha de Anhatomirim ou cumpriam turno de trabalho em São José ou Santo Antônio. Ao terminar o convênio, na metade dos anos 1990, a instituição de ensino superior, por limitações legais, deixou de destinar orçamento para manter guias próprios.
Hoje há funcionários apenas para jardinagem, cobrança da entrada e serviços gerais. Os guias que acompanham o trajeto pelas construções e explicam a história por vezes acumulam as funções de cinegrafistas e marinheiros das empresas de passeios. Oficialmente, em tese, passaram por curso de formação na universidade, mas, como não há nenhuma fiscalização quanto a esse trabalho, muitas vezes se sobrepõe ao interesse histórico a preocupação comercial das empresas que oferecem serviços de filmagem a bordo, para venda posterior dos vídeos. É comum que guias contem mais anedotas ficcionais do que narrativas propriamente históricas e, segundo os responsáveis pela gestão das fortalezas, o número de reclamações relacionadas ao desempenho dos guias é bastante alto.
Para chegar às fortalezas de Santa Cruz e de Santo Antônio, usualmente é necessário embarcar em uma escuna, ou no que é erroneamente designado como tal, já que originalmente essas embarcações têm propulsão eólica e, nos barcos de passeio utilizados, motorizados, só restaram do modelo original os mastros. A bordo, em dias de lotação máxima, entre 80 e mais de 200 pessoas se entregam a uma diversão algo forçada, embaladas por caipirinhas e músicas da moda. Existem passeios escolares também, em que a história é um pouco mais bem contada e os excessos etílicos deixados de lado.
Por volta de uma hora e pouco depois do início do passeio, dependendo das correntes e da trajetória, golfinhos Sotalia fluviatilis podem ser vistos na baía à qual dão nome, na altura do município de Governador Celso Ramos, na faixa continental que fica em frente à face noroeste da ilha de Santa Catarina.
Uma parte dos tripulantes, de convés e máquinas, são oriundos da pesca industrial, e encontraram na navegação turística um trabalho mais ameno que o enfrentado durante períodos longos em alto-mar. Eles limpam o chão e os banheiros, enchem a caixa de água, organizam coletes salva-vidas, atendem no bar, aprumam motores, conversam com as pessoas, orientam o capitão nos atracamentos e têm o direito de almoçar numa mesa reservada dos restaurantes parceiros das empresas de passeios.
Estrangeiros e brasileiros
Na ilha de Santa Catarina existiram no período colonial cerca de 30 fortificações, entre fortes e fortins. Atualmente, as três construções restauradas atraem entre 100 mil e 110 mil visitantes por ano. Embora a responsabilidade pela manutenção caiba à UFSC, os passeios são organizados por empresas privadas. Os visitantes são turistas estrangeiros e brasileiros, moradores de Florianópolis, grupos de estudantes e de pessoas da terceira idade.
O ponto de partida é variado. Boa parte das empresas que oferecem visitas à ilha de Anhatomirim e à Fortaleza de Santa Cruz, instalada nela, tem como base operacional a praia de Canasvieiras, no norte da ilha, notória por se transformar desde os anos 1990 durante a alta temporada de verão em território hispanofalante, com predominância argentina. Outras escunas saem do centro, quase sob a Ponte Hercílio Luz, navegam pela baía Norte e têm no itinerário a ilha de Ratones Grande, com visita também à Fortaleza de Santo Antônio. Por terra é possível chegar à terceira fortificação restaurada: São José da Ponta Grossa, no norte da própria ilha de Santa Catarina.
Há cerca de três anos, o professor Joi Cletison responde pela coordenação do Projeto Fortalezas da Ilha de Santa Catarina. Não é remunerado pela função, que acumula à de diretor do Núcleo de Estudos Açorianos (NEA). Vinte pessoas trabalham no projeto, somando-se todos os funcionários envolvidos em manutenção, transporte e atendimento ao público, nas três fortificações. Cinco delas são vinculadas à UFSC diretamente e 15 são terceirizadas.
Nem sempre foi assim. Há alguns anos, os funcionários eram contratados diretamente pela UFSC, mas ações judiciais movidas pelo Ministério Público de Santa Catarina impediram a continuidade do modelo. A folha de pagamentos consome a totalidade dos recursos arrecadados com ingressos. Hoje o preço é de R$ 8 para visitar uma fortaleza, R$ 10 pelo passe para duas. Estudantes pagam meia-entrada, escolas públicas têm isenção, idosos acima dos 65 anos também, assim como crianças com menos de 12 anos. As entradas vêm na forma de um cartão-postal, do qual é destacado e guardado pelo bilheteiro da universidade um talão numerado.
O professor Joi explica que na década de 1990 o número de pessoas que passavam pelas construções históricas era maior do que o aferido nos anos 2000. Essa queda pode ser atribuída à mudança no fluxo de turistas argentinos, que foi abundante no início da década de 1990, mas, devido às variações cambiais e às crises econômicas, se viu reduzido na atualidade. A predominância, hoje, é do turismo doméstico, com algum europeu incipiente.
Para contornar o problema da má formação dos guias, em dezembro de 2011 aconteceu um novo curso, promovido pela UFSC em parceria com a Associação das Escunas. Como a universidade não conta com orçamento para manter guias próprios, o arranjo é deixar esse serviço por conta das empresas, contribuindo apenas com a formação dos profissionais. O professor Joi conta que recentemente se buscou articular um projeto em que alunos secundaristas do município de Governador Celso Ramos receberiam bolsas para trabalhar como guias, mas não houve sucesso por falta de adesão da prefeitura local. Ao entrar nas fortalezas o visitante recebe um folheto explicativo que serve como referência para um passeio mais independente, caso não queira acompanhar o guia.
A visitação é possível por meio dos passeios convencionais, mas também se pode contratar um barco de pesca em Governador Celso Ramos e ir até as fortalezas com maior flexibilidade de tempo. Uma das características dos passeios comuns é a pressa com que se passa pelas fortalezas, numa visita que não costuma durar mais que uma hora. Entre embarque e desembarque, metade desse tempo já se consome.
Fins culturais
Ainda quanto ao sistema turístico atual, em que as informações são apresentadas aos visitantes por guias das empresas de filmagem, cabem mais algumas observações. A mais relevante é que os câmeras, muitas vezes, só têm como meio de sobrevivência a comissão que recebem pelas vendas de DVDs com gravações dos passeios. Isso explica, em parte, o afinco com que se dedicam a despertar a simpatia dos turistas com lendas pouco históricas. Alguns barcos têm encenações dramáticas de ataques piratas. Talvez, se houvesse remuneração direta pelo serviço de guia, as coisas se dessem de outra maneira. Por enquanto, segundo o professor Joi, a intenção é melhorar o serviço prestado nos moldes atuais e, se possível, conseguir que a prefeitura de Florianópolis faça a fiscalização de qualidade, já que a universidade não conta com pessoal para isso.
Recentemente foi regulamentado o uso das fortalezas para fins culturais, artísticos ou até mesmo privados, com taxas definidas para cerimônias de casamento, jantares ou filmagem de comerciais. Além disso, os espaços estão abertos para projetos como o Forte Catarina, coordenado pelo professor Rodrigo Garcez, do curso de artes cênicas da UFSC, que pretende fazer intervenções de arte contemporânea nos prédios históricos. Se o organizador do evento cultural não tiver finalidade comercial, não terá custo. No caso de um longa-metragem rodado recentemente em Anhatomirim, Rendas no Ar, da diretora Sandra Alves, o espaço foi cedido gratuitamente. Ainda assim, a prioridade do uso dos espaços é sempre a visitação, todos os dias da semana e ao longo do dia inteiro, até o cair da noite. Se um filme estiver sendo rodado e uma escuna repleta de turistas chegar, a gravação se interrompe e os visitantes passeiam. A música a bordo, porém, segundo a regulamentação atual, deve ser desligada durante o atracamento para preservar a tranquilidade do lugar.
Nas ilhas de Ratones Grande e Anhatomirim qualquer embarcação pode atracar, seja qual for a origem. Basta que em seguida desocupe o trapiche. Mais ou menos como acontecia séculos antes, com outras mercadorias, outros interesses e outras pessoas.