Postado em 08/09/2011
por André Campos
Entre fevereiro e julho de 2009, cerca de 90 contêineres, supostamente trazendo aparas de plástico provenientes de um exportador inglês, desembarcaram nos portos de Santos (SP) e Rio Grande (RS). As cargas, em teoria, deveriam abastecer a indústria brasileira de reciclagem. A fiscalização, porém, revelou outra realidade: tratava-se de uma verdadeira montanha de lixo – mais de mil toneladas, incluindo itens perigosos como pilhas, seringas, banheiros químicos e camisinhas usadas. Em meio a toda sorte de restos, havia inclusive um tonel com brinquedos. Nele constavam bilhetes pedindo a entrega dos mimos “para as crianças pobres do Brasil”.
No ano seguinte, em agosto de 2010, a história se repetiu: agentes alfandegários do Porto do Rio Grande interceptaram um contêiner oriundo da Alemanha, teoricamente com uma carga de restos de plásticos industriais. Na verdade, ele trazia ao país 22 toneladas de descartes domésticos, como fraldas usadas e ração para cachorros já em decomposição.
O tráfico de lixo é uma realidade crescente no cenário internacional (ver texto abaixo) e movimenta anualmente, segundo o governo americano, entre US$ 10 bilhões e US$ 12 bilhões, valor superior ao Produto Interno Bruto (PIB) de mais de 60 países. O governo dos Países Baixos estima que, a cada ano, cerca de 1,5 milhão de contêineres de resíduos sejam transportados ilegalmente no mundo – incluindo entre 1% e 2% de todos aqueles que saem dos portos internacionais da Europa. Se alinhados, eles cobririam uma distância enorme, equivalente à de Hamburgo, no norte da Alemanha, até a Cidade do Cabo, no extremo sul da África.
E o Brasil, com uma das maiores linhas costeiras do planeta, certamente tem motivos para se preocupar. Na avaliação de servidores do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), por trás dos episódios recentes parece haver a intenção de testar a segurança dos portos nacionais. “Os europeus mandam muito lixo para a África e estavam tentando abrir esse mercado aqui no Brasil”, diz Fernando Marques, diretor de Qualidade Ambiental do instituto.
Aperto na fiscalização
Ainda em 2009, no furor da descoberta dos resíduos ingleses, o governo federal anunciou o estudo de medidas para inibir ingressos futuros de lixo estrangeiro. Como resultado, identificaram-se alguns códigos de classificação de cargas mais suscetíveis a encobrir seu trânsito – notadamente os de materiais para reciclagem, de uso internacional. Tais parâmetros foram integrados à central nacional de inteligência que cruza dados de origem, tipo de produto e outras características dos contêineres que chegam ao Brasil para selecionar aqueles que passarão por conferência – via de regra, a fiscalização aduaneira é feita por amostragem.
Marco Antônio Medeiros, inspetor-chefe da Alfândega no Porto do Rio Grande, conta que o flagrante de resíduos provenientes da Alemanha, em 2010, foi resultado direto desses avanços. “Quando aqui chega alguma mercadoria com código suspeito, todos os contêineres são inspecionados”, diz ele. Em junho de 2011, a aduana conseguiu inclusive identificar outra situação preocupante, quando uma carga com lodo de esgoto, vinda da Bélgica e originalmente destinada à Argentina, aportou ilegalmente em Santos.
De acordo com as autoridades ouvidas por Problemas Brasileiros, não há registros de outros episódios de chegada de lixo ilegal ao país. No entanto, é importante lembrar que aqui entram armas, entorpecentes e outros produtos contrabandeados – no último relatório mundial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre drogas, o Brasil figura como a terceira principal rota da cocaína que chega à Europa, fato que ajuda a dimensionar a vulnerabilidade das fronteiras nacionais. Nesse contexto, a notória escassez de fiscais aduaneiros é uma realidade preocupante. “As demandas no Porto do Rio Grande têm crescido de forma fantástica, e não conseguimos nos adequar tão rapidamente como a iniciativa privada, que contrata com mais agilidade”, exemplifica Medeiros.
Desde 1992, o trânsito internacional de resíduos domésticos ou considerados perigosos é regulado pela Convenção de Basileia, que reúne 176 países – entre eles o Brasil – e proíbe tais exportações sem o consentimento do Estado receptor. Além disso, em caso de tráfico ilegal, há a determinação de que o país de origem assegure o retorno da carga – o que de fato ocorreu nos episódios recentes envolvendo Inglaterra, Alemanha e Bélgica.
A convenção abrange inclusive resíduos de uso industrial, como, por exemplo, subprodutos metalúrgicos que contenham metais pesados cancerígenos. Até o início da década passada, importações de produtos em que houvesse substâncias como chumbo e cádmio – usadas na fabricação de fertilizantes – eram comuns no Brasil (ver a reportagem “Perigo Invisível”, PB nº 371). No entanto, segundo Luiz Antonio Palacio Filho, procurador da República em Santos, isso foi praticamente extinto a partir de 2004, quando a Receita Federal estendeu a todos os portos medidas para coibir a entrada desses itens.
Quase uma década depois, causa surpresa o fato de ainda permanecerem no Porto de Santos mais de 20 contêineres com cargas de metais pesados, apreendidos até 2003. A devolução do material, vindo de países como Espanha e Estados Unidos, foi requerida por meio do secretariado da Convenção de Basileia, mas ainda não há decisão a respeito. Cético quanto ao resultado da arbitragem internacional, Palacio Filho ajuizou este ano uma ação para que um dos importadores arcasse com a destinação final de parte do material – provavelmente em um aterro sanitário do país. “Lamentavelmente o Brasil vai acabar tendo de assumir esse passivo”, explica ele.
Em terras brasileiras e em outras regiões do mundo, assumir o passivo alheio não é uma preocupação relacionada apenas aos resíduos. Também a importação de bens de segunda mão é muitas vezes vista com maus olhos, já que por trás da legítima prática comercial da venda desses produtos estaria, na verdade, uma conveniente forma de os países ricos se livrarem de produtos já no fim da vida útil – e, não raro, com complexa e onerosa destinação final.
No Brasil, a importação de pneus remoldados e recauchutados é o maior exemplo dessa polêmica. Sua proibição, imposta por resoluções federais e ratificada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2009, chegou a ser questionada pela União Europeia, sem sucesso, nos tribunais da Organização Mundial do Comércio (OMC). Corroborando a defesa brasileira no caso, dados divulgados pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) mostram inclusive que, em meados da década passada, de cada dez pneus que chegavam ao país, três eram completamente inutilizáveis.
À margem da lei, contudo, os pneus de segunda mão não deixaram de entrar no Brasil. Em março de 2010, durante a “Operação Carcaça”, a Polícia Federal apreendeu mais de 7 mil pneus usados em Foz do Iguaçu (PR), contrabandeados do Paraguai.
Lição de casa
Somente em 2010, o Brasil importou, segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), ao menos 300 mil toneladas de bens classificados como resíduos ou material para reciclagem. É um montante superior ao total dos resíduos sólidos coletados por dia no país – 195 mil toneladas, de acordo com o Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil 2010, publicado pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). Entre os itens trazidos do exterior há desde aparas de plástico e papelão a restos metalúrgicos e de madeira, passando por subprodutos da indústria alimentícia usados na nutrição de animais.
Mesmo em casos que não podem ser configurados como tráfico de lixo, importações de má qualidade também trazem passivos ambientais. No Rio Grande do Sul, por exemplo, a Alfândega já devolveu ao local de origem plásticos para reciclagem que chegaram ao país sujos, em meio a fezes de animais. O Ibama, por sua vez, mantém registro de aparas de papel que desembarcaram imprestáveis após apodrecerem na viagem.
Os riscos inerentes à importação de recicláveis desnudam o atraso e as contradições na gestão nacional de resíduos sólidos. Em 2008, de acordo com os últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 18% dos municípios brasileiros contavam com coleta seletiva – e, na imensa maioria deles, o serviço atende apenas uma parcela reduzida da população. Enquanto uma enorme quantidade de embalagens, sucata e diversos outros itens reaproveitáveis apodrece em aterros e lixões, alguns segmentos recicladores valem-se das importações para viabilizar suas atividades.
A falta de matéria-prima ajuda a explicar a ociosidade da indústria brasileira recicladora de plásticos – superior a 30%, segundo o Plastivida Instituto Socioambiental dos Plásticos. Nesse contexto, o ramo de embalagens PET é um dos mais afetados. De acordo com um censo da Associação Brasileira da Indústria do PET (Abipet), 44% das empresas do setor declararam, em 2009, enfrentar dificuldades para adquirir o insumo.
Hermes Contesini, porta-voz da entidade, espera que a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), sancionada em agosto de 2010, impulsione a superação dos gargalos nacionais. As metas são de fato ambiciosas: até 2014, ficam proibidos os lixões, todos os rejeitos deverão ir para aterros sanitários apropriados e os itens recicláveis ou reutilizáveis, por sua vez, precisarão ser reaproveitados. “Agora, como isso vai reverberar nos municípios, que são os responsáveis pela coleta seletiva, já é mais difícil de prever”, pondera Contesini. A política admite o repasse de recursos da União para o manejo de resíduos somente às prefeituras formalmente comprometidas com a adequação à norma.
As novas regras para o setor também inovam ao introduzir, na lei federal, o conceito de logística reversa – após o uso pelo consumidor, determinados ramos de atividade serão responsáveis pela coleta e destinação adequada de seus produtos. Terão de implementar sistemas do gênero fabricantes e comerciantes de agrotóxicos, pilhas, pneus, óleos lubrificantes, alguns tipos de lâmpadas e eletroeletrônicos.
Para eles, os passivos associados às importações ilegais também são motivo de preocupação. Temerosos de arcar com o ônus dos itens contrabandeados, representantes da iniciativa privada querem que a implantação da logística reversa no Brasil, ainda em debate, deixe clara a responsabilidade do poder público no gerenciamento de tais resíduos.
Briga de vizinhos
Em terras brasileiras, rusgas provocadas pelo lixo dos outros não são um problema apenas transnacional. Nos quatro cantos do país, diversas cidades encaminham seus resíduos sólidos a aterros e lixões de outros municípios. Além de gerar descontentamento popular, a prática, cada vez mais frequente, reflete decisões improvisadas e o “apagão” de planejamento na área de limpeza pública que se verifica em algumas localidades.
Em 2010, segundo a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), ao menos 172 dos 645 municípios paulistas encaminhavam seus resíduos domiciliares para fora de suas fronteiras – aproximadamente o triplo do verificado em 2003. E apesar de o transporte ser um dos principais custos da coleta, há situações em que os caminhões percorrem mais de 100 quilômetros entre a origem e o destino da disposição final.
Entre os “exportadores” de lixo está a própria capital paulista. Com o fim da vida útil do Aterro Bandeirantes, na zona norte do município, em 2007, parte dos resíduos da cidade é hoje levada para Caieiras (SP), na região metropolitana. Lá os habitantes de bairros próximos ao aterro queixam-se do odor forte trazido pelos rejeitos – e da consequente desvalorização dos imóveis. “O cheiro dá até dor de cabeça, e chego a me trancar em casa para amenizá-lo um pouco”, conta Aparecida de Oliveira, moradora do bairro Jardim Marcelino.
O trânsito de resíduos entre municípios também traz dor de cabeça a prefeitos. Processado pelo Ministério Público por descumprir uma decisão judicial que determinava o fechamento do lixão a céu aberto em sua cidade, o gestor de Paiçandu (PR), Vladimir da Silva (PMDB), passou a enviar, em março de 2011, os resíduos sólidos locais para um aterro privado na vizinha Sarandi (PR). Tal prática gerou queixas públicas do prefeito sarandiense, Carlos de Paula (PDT), que afirmou não ter sido consultado sobre o acerto.
Em vez do costumeiro empurra-empurra, quando o assunto é lixo, a cooperação entre vizinhos pode viabilizar soluções, tendo em vista os altos custos que aterragem e coleta seletiva representam para os apertados orçamentos das prefeituras. Já presentes em algumas regiões do país, sistemas intermunicipais para bancar a gestão dos resíduos permitem, com o aumento da escala, instalar aterros maiores – adequados a tecnologias de menor custo –, reduzir os custos operacionais e otimizar os não raro parcos recursos humanos locais. “Muitos municípios de pequeno porte têm apenas um engenheiro, em meio período, para atender a todas as suas demandas”, pondera Rosí da Silveira, coordenadora do Núcleo de Gestão Pública da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc).
Ela lembra, no entanto, que consulta, participação e respeito à vontade popular são fundamentais em tais arranjos, inclusive quanto à destinação dos resíduos. Nesse contexto, um exemplo bem-sucedido, cita Rosí, é o Consórcio Intermunicipal do Médio Vale do Itajaí, que dispõe seus resíduos em Timbó (SC). “Além de manter o aterro cercado por vegetação nativa, criando um barramento natural, juntamente com sua instalação foram feitas melhorias de infraestrutura para a população do entorno”, explica ela.
Restos indesejáveis
Apesar de abrigar apenas 15% da população mundial, as nações desenvolvidas geram metade dos resíduos sólidos urbanos do planeta, além da maior parte do lixo industrial. São países onde vigoram as mais severas normas quanto à gestão daquilo que é descartado pela sociedade. Na Europa, por exemplo, há anos existem leis que obrigam fabricantes a recolher até mesmo veículos no fim da vida útil, bem como a aumentar o uso de matérias-primas recicladas em novos produtos.
Os altos custos associados às medidas ambientais, no entanto, aumentam a atração econômica exercida pela exportação de resíduos – uma prática que se vale de artimanhas diversas para obter um verniz de legalidade. É o que ocorre, por exemplo, com o chamado “lixo eletrônico” – computadores, telefones celulares etc. –, que chega a países como Gana, Nigéria, Índia e China travestido de equipamento de segunda mão, material para reciclagem ou mesmo de doação humanitária. Grande parte vai direto para lixões a céu aberto, onde, não raro, crianças recolhem sucata, sujeitas à contaminação por metais pesados. O “e-lixo” está inclusive ligado a novos tipos de crimes cibernéticos, como a recuperação de senhas bancárias, fotos comprometedoras ou outros dados sigilosos em discos rígidos descartados.
Além de ataques à privacidade, os rejeitos alheios podem gerar crises de saúde pública. Foi o que ocorreu em 2006, quando 500 toneladas de resíduos químicos, pertencentes à multinacional petrolífera holandesa Trafigura, chegaram ao porto de Abidjan, na Costa do Marfim. Subcontratados locais despejaram a carga em diversas áreas da cidade – terrenos baldios, beira de estradas etc. Segundo estimativas divulgadas pela ONU, 15 pessoas morreram, 69 foram hospitalizadas e mais de 100 mil, acometidas de náusea e vômito, procuraram atendimento após inalar gases tóxicos provenientes do material.
Na Itália, os lucros associados ao “sumiço” de restos indesejáveis atraíram até mesmo a Máfia para o negócio. Ela é investigada por desovar lixo nuclear do país na Somália e por afundar, no mar Mediterrâneo, um navio que continha rejeitos radiativos. Empresas de limpeza pública supostamente ligadas a mafiosos também são acusadas de despejar resíduos clandestinamente, por exemplo, em áreas rurais das regiões mais pobres do país. Suspeita-se que a prática tenha sido responsável pelos altos níveis de toxinas identificados em 2008 na mozarela de búfala da região de Nápoles, fato que gerou o embargo de outros países ao produto.