Postado em 08/09/2011
por Cecilia Prada
Os estudos arqueológicos no Brasil permaneceram meio desconsiderados até meados do século 20, registrando-se apenas, ainda durante o Império, excursões esporádicas de cientistas estrangeiros – como as realizadas na década de 1830 pelo paleontólogo e arqueólogo dinamarquês Peter Lund à Lagoa Santa de Minas Gerais, que acabaram assumindo importância maior ao localizar ossadas humanas datadas de até 11 mil anos. Durante o resto do século 19, objetos indígenas, ossadas e outros vestígios de presença humana foram sendo retirados e conservados de maneira informal por viajantes, escritores, historiadores e jornalistas, com pouca preocupação pela preservação dos locais dos achados.
Desde 1950, alguns importantes sítios arqueológicos da Amazônia, do Piauí, de Mato Grosso e de nossa faixa litorânea começaram a ser explorados por especialistas estrangeiros, interessados principalmente em estabelecer com mais precisão a época do aparecimento do Homo americanus. Somente em 1961, porém, é que todos os sítios do país foram colocados, por lei, sob a proteção do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). E se até o final da década de 1960 acreditava-se que o homem americano – que diziam ter vindo da Ásia pelo estreito de Bering, dali se espalhando por todo o continente – estaria aqui desde uns 12 mil ou 13 mil anos, coube à arqueóloga brasileira Niède Guidon provar, em 1971, com o achado de restos de alimentos e de carvão no sítio da Pedra Furada, na região de São Raimundo Nonato (PI), que na realidade a presença humana na América tem pelo menos 48 mil anos.
Os sítios conhecidos hoje são de natureza variada, desde os sambaquis pré-históricos (restos de conchas, de artefatos e mesmo de ossos humanos), até as estearias (conjuntos de esteios e estacas remanescentes das habitações indígenas lacustres), os mounds e hipogeus (diversos tipos de sepulturas) e, principalmente, misteriosas e encantadas cavernas, destinadas por excelência a despertar a imaginação e o interesse do público. No entanto, há um objeto de pesquisa arqueológica que, levantado já em meados do século 19 pelo barão de Capanema, tratado por Jaime Cortesão e Sérgio Buarque de Holanda, desperta atualmente muito interesse: trata-se de uma rota transcontinental pré-cabralina, muito usada por indígenas brasileiros e primitivos povos andinos. Designada em seu conjunto como “caminho” ou “sistema” do Peabiru, ela ligava o oceano Atlântico ao Pacífico de uma maneira surpreendente até para o homem moderno.
Sua presença no continente sendo incontestável, e sua importância histórica indiscutível – possibilitou a migração e o intercâmbio das várias culturas indígenas do continente, a descoberta de riquezas, a criação de missões religiosas, as trocas comerciais e o estabelecimento de povoados e cidades –, esse conjunto de trilhas ou “estradas” permanece, no entanto, até hoje como um grande mistério e objeto de acirrado debate entre especialistas, no que se refere às suas origens históricas e até ao significado de seu nome.
Embora alguns estudiosos digam que o termo Peabiru tem origem tupi-guarani (“pe”: caminho; “abiru”: gramado amassado ou, ainda, caminho da montanha do sol, para outros – como Sérgio Buarque de Holanda e Luiz Galdino), essa é uma designação que somente passou a ser utilizada no século 17, quando os paulistas descobriram que “biru” era o nome dado ao Peru pelos seus naturais. Ainda segundo esses historiadores, o primeiro a utilizar um simulacro dessa palavra não teria sido, como em geral é dito, o jesuíta Pedro Lozano, mas sim Díaz de Guzmán, autor de uma Historia da Argentina, que se referiu ao “peabuyu”.
Mapeado ele está, em seus vestígios, é claro, e definida sua extensão, que poderia chegar a 3 mil quilômetros. No Brasil o caminho começava em São Vicente, no litoral paulista, cruzava o estado do Paraná, penetrava no Chaco paraguaio, atravessava a Bolívia, ultrapassava os Andes e alcançava o Peru e a costa do Pacífico. Esse era o tronco principal, mas havia outros ramais secundários, entre os quais um que partia do litoral de Santa Catarina, na região do rio Itapocu. Segundo pesquisas realizadas durante 14 anos pela historiadora Rosana Bond – sócia do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP) – e reunidas no livro História do Caminho de Peabiru, um desses ramais cruzava o rio Paranapanema na divisa de São Paulo e Paraná e seguia para o sul, passando pelas atuais cidades paranaenses de Campo Mourão e Peabiru.
Todas essas trilhas interligadas apresentavam a mesma forma – como pode ser constatado ainda nos vestígios encontrados: oito palmos de largura, na medida antiga, equivalentes a cerca de 1,40 metro (há quem diga que era de 1,60 metro), e aproximadamente 40 centímetros de profundidade. Para evitar a erosão por chuvas e ventos, as trilhas eram forradas com vários tipos de grama e também, em certos trechos, pavimentadas com pedras.
Controvérsia
Se o consenso já parece estabelecido quanto à existência do “caminho”, o mistério persiste no que se refere àqueles que o teriam criado, divididos os estudiosos em duas linhas de pensamento. Na primeira estão os que veem nele mais uma das obras dos incas, que percorreram o continente e que talvez tenham mesmo visado, com essa construção, o alargamento de seu grande império. De acordo com essa vertente – na qual seguem empenhados, entre outros, dois historiadores paulistas de relevo, Hernâni Donato e Luiz Galdino (também membros do IHGSP) –, estudos atualizados levam até mesmo a supor que o Peabiru poderia ser pré-incaico, com segredos ainda não desvendados que poderiam estar sepultados em épocas muito remotas. Rosana Bond, por exemplo, é de opinião que a via poderia contar até mil anos.
Outra corrente, mais recente, agrupa principalmente estudiosos do Paraná e de Santa Catarina – como José Alberto Barbosa, de Jaraguá do Sul (SC) –, que creditam a grandiosa realização a nossos próprios indígenas, principalmente aos tupis-guaranis, embora haja quem divirja, atribuindo-a aos jês e até aos tapuias, tribos mais atrasadas que os tupis. Na década de 1970, uma equipe coordenada pelo professor Igor Chmyz, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), identificou cerca de 30 quilômetros remanescentes da trilha na área rural de Campina da Lagoa (PR) .
Começam a aparecer também, aqui e ali, algumas iniciativas com o propósito de transformar a trilha misteriosa em uma espécie de Caminho de Santiago de Compostela tupiniquim – que naturalmente terá direito a milagres e espasmos da grande indústria do turismo cultural.
Pairando como nuvem mítica sobre os caminhos pré-cabralinos, existe, porém, uma lenda das mais interessantes: o sistema teria sido construído, segundo a tradição indígena, por uma figura de super-homem/semideus chamado Sumé – nome que seria, dizem, uma corruptela de São Tomé –, um dos apóstolos de Cristo. Sumé é descrito como um homem branco de porte gigantesco e barbudo que teria percorrido o território da América do Sul ensinando aos índios técnicas agrícolas, como o cultivo da mandioca e da banana-são-tomé, e hábitos civilizados. Repudiando a poligamia e a antropofagia, consta que o santo teria provocado a ira dos nativos, sendo obrigado a fugir, para sempre, de suas aldeias.
Os jesuítas, que muito usaram as trilhas do Peabiru e por elas chegaram até o território das Missões – onde estabeleceram no século 17 sua “república dos guaranis” –, aproveitaram os contornos do mito indígena para reforçar a crença na possibilidade de uma mágica tentativa de cristianização da América pelo apóstolo Tomé, que em seu tempo de vida foi tido como o introdutor do cristianismo em lugares muito remotos, como a Índia e a China. Como afirma por exemplo Washington Luís, citado por Hernâni Donato em seu livro de 1997, básico para estudo do tema, Sumé e Peabiru – Mistérios Maiores do Século da Descoberta: “Encontrando caminho existente antes da vinda dos conquistadores europeus, os jesuítas o atribuíram a intervenção sobrenatural e concluíram que fora feito por milagre, com a só passagem do apóstolo São Tomé por aquelas partes”.
Essa obra de Donato – de reedição programada pelo autor – historia com detalhes todos os autores que, desde a época quinhentista, difundiram a teoria edênica – que via na América do Sul, e especificamente no Brasil, a localização do paraíso terrestre bíblico, “uma terra ou ilha feliz, sem doenças, sem velhice, sem morte, sem temor”. O próprio Cristóvão Colombo teria acreditado nesse mito. Diz Donato: “Ao enfrentar a foz do rio Orenoco, [Colombo] viu-o com tamanha e tão poderosa massa de água doce, não Orenoco e sim um dos quatro rios que, conforme o livro do Gênesis 2, 10-14, regavam o Jardim do Éden”.
A migração em massa que ocorria esporadicamente entre os próprios indígenas, em busca da y vy mara ey (terra sem mal, país da felicidade), seria, na opinião do autor, a contraparte ameríndia da mesma visão edênica. Para outros especialistas, no entanto – como Luiz Galdino e Alfred Métraux, por ele citado como “o maior especialista no assunto”, e também Maria Isaura Pereira de Queiroz –, tais “movimentos de caráter messiânico, como o [da procura] da Terra sem Males, somente ocorreram entre os indígenas a partir do choque cultural com o europeu”.
Tentando responder à pergunta básica, “quem, na realidade, teria sido Sumé?”, Donato passeia pelos quatro cantos da Terra – o mito já fora registrado por Alexander von Humboldt e por historiadores ibéricos em todas as tribos indígenas americanas, do Alasca à Terra do Fogo, e, o que é mais surpreendente, espalhado da Índia à Groenlândia, à Islândia, à Irlanda, acabando inclusive por criar a hipótese de que na realidade seriam muitos Sumés. Isto é, segundo o historiador hispânico frei Bartolomé de las Casas (1484-1566), “homens brancos e barbados, como nós outros, antes que nós outros”. O que leva a uma ousada mas nada improvável hipótese, como relata Donato: os muitos Sumés poderiam ter sido na verdade os vikings, que, a partir de 1121, estimulados pelo bispo normando Erik Gnupsson, teriam sido conduzidos como evangelizadores para terras hoje ditas americanas. Subsistem também outras e mais exóticas teorias: Sumé ou “os Sumés” poderiam ser hititas, sumérios, atlantes... até budistas.
Caminho das riquezas minerais
O escritor e historiador Luiz Galdino confessa-se apaixonado pelo mistério do Peabiru e defende convictamente sua origem incaica, ou até mesmo pré-incaica, eliminando o indígena brasileiro – seja qual for sua tribo – da condição de autor desses caminhos excepcionais. Desde 1968, quando ele morou algum tempo na divisa de Mato Grosso, justamente pesquisando arte rupestre pré-histórica no Brasil, indígenas e caboclos da região falaram-lhe da existência de um suposto caminho pré-colonial que iria ter à Bolívia. Suas publicações sobre o tema vêm de 1972 aos nossos dias e incluem um livro de 2002, Peabiru: os Incas no Brasil.
Segundo Galdino, ainda há bastante o que pesquisar, para conhecer o traçado real do Peabiru. “Hoje se fala muito em Campo Mourão, mas o trecho de maior interesse está na cidade também paranaense de Pitanga, onde se encontram restos importantes. Lá aconteceram os primeiros encontros para discussão do assunto, graças à iniciativa do pesquisador Clemente Gaioski e do pessoal das Faculdades do Centro do Paraná.”
Como Donato, Galdino lembra que desde o início da colonização os índios, quando interrogados sobre a origem do caminho, nunca afirmavam tê-lo construído. O estudioso desliga igualmente o propósito dessa via de qualquer aura mística ou intenção evangelizadora, fosse ela relacionada à figura de Sumé ou a homens brancos cristãos que por ali tivessem talvez transitado em épocas pré-cabralinas. Seus argumentos são consistentes, levando em conta o fato de que realmente os incas eram conquistadores e, sendo historicamente reconhecidos como grandes construtores de estradas, não haveria nada mais natural que a expansão de seus contatos com os povos indígenas situados na parte leste de seu império.
A presença incaica, diz ainda Galdino, “pode ser atestada mesmo no nordeste brasileiro, através de registros onde se podem ver barcos de um e dois mastros, com velas coloridas, e cenas de combates entre índios com seus arcos e flechas e um povo que usa lança e funda”. Há em sua obra uma cuidadosa pormenorização de itinerários de expedições, uma demonstração de como realmente muitos dos caminhos encontrados até na região amazônica assemelhavam-se em tudo aos incaicos do Peru, e reprodução de lendas e tradições que confirmam seu ponto de vista.
Por fim, ele lança uma pergunta fundamental: “Por que religiosos cristãos construiriam estradas cuja única utilidade era conduzir a regiões ricas em metais preciosos?”
Importância histórica
Realmente, esse é um fato histórico abundantemente documentado: todo o período Brasil Colônia foi marcado pela profunda rivalidade entre portugueses e espanhóis, resultante ainda daquele Tratado de Tordesilhas de 1494, quando, no dizer jocoso de alguns contemporâneos, as duas potências marítimas, Portugal e Espanha, sob a supervisão pontifícia, dividiram entre si “o legado do testamento de Eva”, isto é, as terras recém-descobertas da América. Ambas as coroas se empenharam ao máximo em descobrir e conservar para si um ou mais caminhos secretos, entre mata e cordilheira, que iam por ali furando o continente virgem até chegar aos Andes, facilitando a busca de fabulosos tesouros de ouro e prata de que havia notícias.
Há abundante documentação de expedições, particulares ou oficiais, organizadas com essa finalidade. Como a do português Aleixo Garcia, que, em 1524, partiu de Santa Catarina com 2 mil índios carijós e usou o “sistema” para atravessar o sertão, seguindo até os Andes – chegou à província de Charcas (atual Sucre), na Bolívia, cerca de oito anos antes do desembarque de Francisco Pizarro e da conquista do Peru (1532).
Em 1542, o espanhol Alvar Núñez Cabeza de Vaca embrenhou-se por um desses caminhos da mata e acabou por descobrir as cataratas do Iguaçu. Durante todo o século 16 foram constantes os relatos de viagens pelo interior das matas, quer rumo aos Andes, quer em direção ao sul e ao Paraguai. Como as de Johan Ferdinando (1549), dos companheiros de Hans Staden (1551), dos jesuítas, em especial o padre Leonardo Nunes, de Brás Cubas e de Luís Martins (1552). Um viajante alemão, Ulrich Schmidel, por volta de 1553 explorou o Peabiru, percorrendo a Bolívia, o Paraguai e a região do atual estado do Paraná. De volta à Alemanha, descreveu suas aventuras em um livro de memórias, publicado em Frankfurt em 1567. Um de seus feitos foi ter ido de Assunção a São Vicente pelo caminho da mata.
Antes ainda, em 1530, Martim Afonso de Sousa havia partido de Portugal com uma missão tríplice: combater os traficantes franceses, incrementar o povoamento do Brasil e ir em busca dos tesouros andinos, justamente usando os nem tão misteriosos (na época) caminhos da mata. Ele tratou de fazer isso já em 1531, antes de fundar São Vicente, a primeira vila portuguesa da América, organizando uma expedição comandada por Pero Lobo – a qual, no entanto, foi chacinada pelos índios guaranis, na travessia do rio Iguaçu.
Em relação ao Peabiru, a melhor prova de sua existência e de seu propósito de servir como rota de busca dos tesouros andinos é encontrada em uma ordem expressa dada em 1553 pelo primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de Sousa. Em nome do rei de Portugal, foi desativado o núcleo de uma suposta povoação fundada por Martim Afonso em 1532 (a Vila de Piratininga) e ordenado o fechamento do “caminho do sertão”, ao qual ela dava acesso, sendo proibida, sob pena de morte, sua utilização – pelo temor de que os espanhóis dele se servissem, tivessem acesso aos metais preciosos e estendessem assim sua conquista por todo o território sul-americano.