Postado em 08/09/2011
por Paulo Nathanael Pereira de Souza
Paulo Nathanael Pereira de Souza é bacharel em ciências econômicas, com mestrado pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e doutorado em educação pela Universidade Mackenzie.
Com diversos cursos de especialização e aperfeiçoamento em educação, história e economia, é docente de história geral e do Brasil, tendo participado da direção de inúmeros colégios estaduais.
Na vida pública começou como vereador em São Carlos (SP) e chegou a coordenador-geral da Secretaria Estadual da Educação, da qual foi também secretário interino. Foi ainda membro do Conselho Estadual de Educação de São Paulo e membro e presidente do Conselho Federal de Educação, hoje Conselho Nacional de Educação.
Na área privada, é membro titular da Academia de História, da Academia Cristã de Letras, da Academia Paulista de Educação, da Academia Paulista de Letras, da Academia Brasileira de Educação e da Academia Brasileira de Filosofia. Participa dos conselhos do Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE), da Fiesp, da Fecomercio, do Sindicato da Habitação do Estado de São Paulo (Secovi), da Associação Comercial de São Paulo e da Fundação Faculdade de Medicina.
É cidadão honorário de cerca de 20 municípios brasileiros, entre eles São Paulo e Goiânia. Tem 22 livros publicados por editoras diversas, sempre sobre educação e cultura. Participou de inúmeras conferências internacionais, reuniões da Organização Internacional do Trabalho (OIT) na América Latina e no Caribe e foi representante do Brasil na Conferência Mundial dos Ministros de Educação realizada no Panamá, em 1982.
Esta palestra de Nathanael de Souza, sobre as raízes da crise da educação brasileira, foi proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Fecomercio, Sesc e Senac de São Paulo no dia 12 de maio de 2011.
O tema da educação brasileira é tão vasto e variado que uma conferência é muito pouco para que se possa chegar a uma ideia mais concreta do que está acontecendo. Por isso vou me limitar ao ensino básico, sem tratar do superior. Não que o ensino superior não integre essa crise e não esteja muito mal, mas é que a maioria dos problemas que ele apresenta são herança do ensino básico, transferência de insuficiência. Se um dia for possível consertar a educação brasileira no ensino fundamental e médio, o superior terá metade de seus problemas resolvidos. Isso tudo, por sua grandiosidade, teria de ser objeto de uma conferência específica.
Também não vou falar da educação continuada, que é o xodó da atualidade, essa educação informal ligada aos processos de digitalização da modernidade, que merece também uma conferência. E não podemos misturar tudo isso, porque se o fizermos não chegaremos a nada. Vamos nos ater, portanto, ao ensino fundamental e médio.
Começo pelas lições do passado, relacionadas com as crises do presente. Ao contrário do que se viu na colonização inglesa na América do Norte, onde desde logo se desenvolveu um processo civilizatório produzido por refugiados, sobreviventes das perseguições religiosas – o que significa que eram réus por questões de consciência e, portanto, réus diferenciados, razão pela qual deram prioridade à formação espiritual e intelectual das novas gerações –, aqui no Brasil a ocupação se deu dentro das estritas regras do pacto colonial do mercantilismo, segundo o qual a colônia não seria objeto da formação de uma nova nacionalidade, mas um centro de predação econômica em favor do comércio da metrópole. Em razão disso, a sociedade que resultou do povoamento das capitanias teve estimulada sua capacidade de trabalho e de exploração econômica, enquanto se ignorou totalmente o potencial de desenvolvimento cultural das pessoas.
Durante mais de 200 anos, não fora a preocupação dos jesuítas e, em escala menor, de outras ordens religiosas – que desenvolveram entre os índios, negros e mestiços a catequese ultramontana com vistas a preservar as almas do aliciamento protestante feito por piratas, corsários e invasores franceses, holandeses e ingleses –, nada teria havido aqui em matéria de educação. É bem verdade que não se tratava de uma educação letrada, mas de um proselitismo católico apostólico romano dentro da conjuntura das guerras religiosas europeias dos séculos 16 e 17. A sociedade colonial cresceu, diversificou-se e interiorizou-se, mas andou sempre muito longe da escola, até porque, com o regime de trabalho então vigente, de cada quatro pessoas três eram escravas e não fazia muito sentido formar intelectualmente alguém que não fosse livre, até porque filosoficamente liberdade e educação sempre andaram de mãos dadas pelo mundo.
É bem verdade que os jesuítas, com o passar dos anos e tendo se formado os primeiros núcleos populacionais, como Recife, Salvador, Olinda, ligada a Recife, Rio de Janeiro, São Vicente e São Paulo, evoluíram da rarefeita catequese inicial para uns poucos colégios, onde praticaram o trivium e o quadrivium da pedagogia medieval com alguma intensidade, dada a necessidade de atender os filhos da incipiente fidalguia, que não raro se dirigiam à Europa para doutorar-se em direito ou teologia e voltar à colônia depois de formados, a fim de exercitar os poderes políticos reservados à elite a que pertenciam. Como dizia Capistrano de Abreu, sem jesuítas não teria havido um mínimo de processo civilizatório no Brasil colonial.
Tudo piorou com a expulsão desses padres, determinada pelo marquês de Pombal em meados do século 18. É bem verdade que para substituí-los o rei criou classes leigas, denominadas aulas régias, que não prosperaram por razões que se tornaram inerentes à pouca importância que sempre se deu por aqui à educação popular: falta de recursos financeiros, subsídio literário insuficiente e, secundariamente, falta de professores, dada a miséria que recebiam por aula.
De ponta-cabeça
Note-se que a educação brasileira tem algumas raízes que permanecem vivas hoje, como a falta de dinheiro e de professores. Em 1808, com a chegada da família real à colônia e o bloqueio marítimo da Europa decretado por Napoleão Bonaparte, os filhos da elite cabocla não podiam mais cursar o ensino superior em Coimbra, Salamanca, Paris ou Nápoles. Representantes da elite pediram ao príncipe regente a criação de escolas que os atendessem por aqui mesmo. Mas em vez de começar pelas escolas básicas, dom João criou as superiores, como a de medicina, que foi a primeira, talvez porque os médicos abundassem na corte trasladada pela necessidade de cuidar dos males da rainha louca, dona Maria I. Será que foi só isso que inspirou a criação de uma faculdade de medicina? Não foi só isso, mas foi principalmente isso, já que o Brasil não dispunha de outras áreas científicas para assumir a responsabilidade pelo ensino superior.
E assim começou no Brasil o sistema educacional de ponta-cabeça, ou seja, do telhado para o alicerce, o que tornou todo o ensino formal nisso que desde então tem sido: cursos não integrados, todos elitistas, livrescos, eruditos e voltados para as necessidades das minorias econômicas e sociais. Eram cursos menos funcionais e mais de consagração do status da elite. Como a educação não se constituiu no passado brasileiro em uma prioridade na preparação do povo para a construção e o fortalecimento do destino nacional, não se estranhe que modernamente tenhamos de pagar um alto tributo por essa displicência. Essa é a primeira e a mais funda raiz da crise que aí está.
O que dizer do estado da arte atual da educação brasileira? Além da falta, no passado, de valorização da educação como instrumento fundamental do desenvolvimento nacional, o que se vê no presente é o esforço do governo e da sociedade para tentar resgatar o tempo perdido, com a realização não só da universalização do ensino básico, como também com a conquista dos padrões de qualidade para esse mesmo ensino, cujos resultados têm deixado a desejar a ponto de se haver tornado essa prioridade muito mais presente nos discursos do que nos fatos.
Quanto à extensão das oportunidades de matrícula às massas populares nos ensinos fundamental e médio, há que reconhecer certo sucesso das políticas atuais, sobretudo no que diz respeito ao ensino fundamental, em que a oferta de vagas está quase chegando a 100% da demanda. O mesmo sucesso não se pode creditar ao ensino médio, pois nele se localiza o calcanhar de Aquiles da educação básica neste país, não só no aspecto quantitativo de matrículas – apenas um terço dos que se formam no fundamental chega ao grau seguinte –, mas também no qualitativo, pois os poucos matriculados nesse grau de ensino se evadem por desinteresse em relação ao que lhes é ensinado. O jovem de 15 a 17 anos já tem senso crítico e de certa forma sabe o que quer. Na escola, em vez de receber algo para o amanhã, visto que a educação da nova geração é um compromisso com o futuro e não com o passado, encontra discursos de uma caducidade científica irrecuperável e abandona os estudos. Por outro lado, como se trata de uma massa de alunos desprovidos de riquezas pessoais e materiais, o que eles esperam é uma instrumentação para ganhar a vida. Uma vez que só apresenta uma formação de eruditismo mais ou menos abstrato, a escola não pode agradar-lhes e daí eles fogem.
Uma das principais razões do insucesso e da falta de qualidade desses graus de escolaridade reside no fato de ainda não se ter conseguido obter um mínimo de pertinência em sua ministração. Peço atenção para essa palavra, pertinência. É um conceito criado pela Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura] para medir o grau de aproveitamento da aprendizagem entre os alunos do ensino formal, aproveitamento esse que se traduz pela íntima coerência entre o que e o como se ensina, dentro do requerido pelas aspirações das novas gerações e os reclamos da sociedade em determinadas etapas de suas contínuas transformações. O ensino que não se relacionar com esses dois grandes objetivos, as necessidades do educando como ser humano e as necessidades da sociedade como tal, não tem pertinência. Nesta nossa era do conhecimento, em que as inovações científicas e tecnológicas presidem as metamorfoses culturais, políticas e econômicas, a escola não pode deixar de valorizar um saber geral mínimo a ser portado pelos alunos, nem pode ignorar as linguagens didáticas fundamentadas nos avanços da tecnologia da comunicação, a qual deverá referenciar todo o protagonismo de cidadania das gerações futuras.
Apesar disso, o que faz hoje a escola brasileira fundamental e média? A não ser nas raras e conhecidas exceções onde se consegue praticar um bom ensino, o que se vê é a continuidade de ação de modelos obsoletos, não só de organização escolar, mas também de linguajar pedagógico, o que provoca desinteresse dos alunos, desperdício dos recursos e frustração profissional dos professores.
Números inaceitáveis
Estou sendo severo demais? Então convido a uma reflexão sobre alguns dados, fruto de avaliações nacionais e internacionais para medir o estado da arte do ensino básico brasileiro. O Saeb [Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica] analisou a capacidade de aprender do estudante brasileiro. Na disciplina de português, para passar no teste seria necessário atingir 200 pontos no quarto ano do ensino fundamental. Os alunos alcançaram 169, aquém do pretendido, e, no oitavo ano, onde deveria haver um nível mínimo de 300 pontos, conseguiram 232. No terceiro ano do ensino médio, também em português, onde deveria haver uma pontuação mínima de 350 pontos, o que se atingiu foram 266. Em matemática, com nível também de 200 pontos para os alunos do quarto ano do fundamental, o que se conseguiu no máximo foram 177. No oitavo seria necessário também atingir 300 pontos, mas o que se obteve foram 245. E, no terceiro ano do ensino médio, quando o aluno já está à beira da faculdade ou do emprego, aquilo que deveria ser de 350 pontos se converteu em apenas 278. Então, pelo Saeb, as coisas estão inaceitáveis.
O Ministério da Educação (MEC) colocou um prazo até 2022 para elevar um pouco esses escores, mas é um absurdo que o país tenha de esperar até 2022 para melhorar a educação. É absurdo por duas razões. Quais são as aspirações nacionais maiores, pétreas, do Brasil de hoje? Uma é a democracia como regime organizatório e de funcionamento social, politicamente falando. E outra é o desenvolvimento socioeconômico. Para que se conquistem ambos, o pré-requisito é uma educação de qualidade para toda a população. Foi o que aconteceu com os países do Primeiro Mundo tradicionais nos séculos passados e com países ex-coloniais e retardatários da Ásia. Estão nesse caso o Japão no século 19 e a Coreia do Sul recentemente. Em 1950, o Brasil estava na frente da Coreia do Sul em todos os índices, hoje está quilômetros atrás em todos eles. Qual é o mistério? Educação do povo. Após a guerra e depois de ter sido escravizada pelo Japão, a Coreia do Sul encontrou pessoas capazes de formular seu projeto de futuro, iniciou esse projeto com a eliminação do analfabetismo, com a educação de qualidade no ensino fundamental e médio e com a seletividade de cursos no ensino superior. O país optou por um regime econômico de produção pesada e de tecnologia, e para isso elegeu a engenharia como seu curso preferencial. Hoje a Coreia do Sul forma 200 mil engenheiros por ano, o Brasil forma 21 mil. Temos aí as consequências da educação nesses projetos nacionais.
Na falência
O Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica] faz avaliação semelhante. Em 2010, no ensino fundamental, o mínimo era nota 6 e os alunos alcançaram 4,2. No segundo ciclo, do quinto ao oitavo ano, foi 3,7. E, no ensino médio, 3,5, sempre com um mínimo de 6. Se fosse uma empresa competindo no mercado, todo o sistema educacional do Brasil estaria na falência.
A Unesco faz uma avaliação de dois em dois anos de 128 países, incluindo o Brasil. Em 2010 foi sobre os índices da educação em relação ao IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] das nações. Desses 128, 15 estão mais bem situados, todos eles acima de 0,9, muito próximos de 1. O pior entre eles é a Finlândia, com 0,987, e o melhor a Noruega, com 0,995. Entre os 15 países piores, com nota entre 0,5 e 0,7, temos Níger, Mali, Etiópia, Guiné, Togo e Benin. O Brasil, infelizmente, não está entre os melhores. embora não esteja entre os piores. Está muito mal, na 88ª posição, com 0,883 pontos, abaixo de Cuba, Uruguai, Argentina, Chile, México, Venezuela, Panamá, Peru, Paraguai, Colômbia, Bolívia, Equador e até Honduras.
Há um outro levantamento, baseado nos resultados de aprendizagem em sala de aula. É feito pelo Pisa [Programa Internacional de Avaliação de Alunos], promovido pela OCDE [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico], que reúne 65 países. Essa avaliação, feita também a cada dois anos, realiza uma averiguação sobre os avanços de leitura, matemática e ciências nas escolas básicas desses países, inclusive o Brasil. Na última delas, em 2010, aquele que mais se destacou em qualidade foi a China, seguida da Coreia do Sul e da Finlândia. Abaixo da média estão Letônia, Eslovênia, Israel, Luxemburgo, Chile, Bulgária etc. e o Brasil. Em leitura estamos em 53º lugar, com índice 412, enquanto os melhores estão acima de 500. Em matemática o Brasil está em 57º lugar e em ciências em 53º. É o fracasso do sistema escolar brasileiro. E não é um ponto de vista, são números, é preciso respeitá-los.
Falta de pertinência
Como explicar resultados tão vergonhosos, sabendo-se que tanto o desenvolvimento quanto a democracia se apoiam fundamentalmente na boa educação do povo? Não é da elite, é do povo. A razão disso está na falta de pertinência. A principal explicação da crise moderna, além daquela da herança histórica, está exatamente na falta de pertinência, isto é, na descorrelação existente dentro do sistema entre os processos pedagógicos e as aspirações das novas gerações, somadas às tendências contemporâneas, ao avanço científico e tecnológico. Os modelos praticados continuam caducos e repetem cansativamente a filosofia iluminista para a educação, segundo a qual para culturalizar a população mais carente, material e intelectualmente, bastaria estender às massas, que ultimamente invadiram as escolas, as mesmas lições teóricas do eruditismo que só beneficia as elites.
As pessoas de hoje, que nascem e crescem familiarizadas com os processos digitais da comunicação, aquelas que a sociologia da educação chama de geração Y, não aceitam mais os cursos discursivos e livrescos do passado. Ao deparar-se com a escola museológica, abandonam os cursos e se tornam aquilo que nos países de língua espanhola se chama de geração Nini: “Ni estudia, ni trabaja”. A formação apenas teórica e decorativa nos conceitos de uma ciência já obsoleta, voltada desde ontem para as elites e para o fortalecimento do status das cúpulas socioeconômicas, está fora de cogitação.
Exige-se hoje que a escola não só transmita uma cultura básica geral como também seja prática e customizada em relação ao futuro acadêmico e/ou profissional das novas gerações. Do contrário, os diplomas poderão ser inúteis. Gasta-se muito dinheiro e o resultado é péssimo. É preciso situar os alunos na riqueza contemporânea do saber, usando a linguagem por eles requerida e com vistas a seu progresso pessoal e ao da nação. Caso contrário, a escola perderá sua importância como player principal do processo educativo eficaz, cedendo-a a agências outras de educação informal, que ultimamente pululam nos meios de comunicação.
Estive recentemente em Portugal, fazendo uma conferência em Coimbra, a convite da OCDE, sobre o futuro da universidade. Deixei lá a opinião, muito debatida, de que a universidade tende cada vez mais a recolher-se a suas origens, disposta apenas a desenvolver a pesquisa cultural. A profissionalização deve sair da universidade para encontrar outros players que façam melhor esse papel, porque com a multiplicação do conhecimento, que hoje dobra a cada mês ou dois meses – antigamente era a cada cem anos –, não há universidade que se atualize o suficiente para produzir os melhores profissionais. De maneira que vamos acabar tendo uma divisão forçada e forçosa entre o papel da escola, que tem de ser reestudado desde o básico até o superior, e o de outros agentes que estão aparecendo e se multiplicando na sociedade do desenvolvimento.
Como reverter essa situação de crise, no caso brasileiro? De vez em quando se fala numa grande reforma na educação. As grandes reformas têm se mostrado inúteis, pois seu texto reflete mais a consolidação do poder dos burocratas do sistema do que soluções pedagógicas endereçadas à qualificação do ensino. Eu mesmo já participei de várias reformas, a da primeira Lei de Diretrizes e Bases [LDB], a de 1968, do ensino superior, a de 1971, do ensino de primeiro e segundo graus, e a reforma da última LDB, que ainda está em vigor, de 1996. Posso testemunhar e atestar com tranquilidade que nenhuma delas chegou às salas de aula. Nunca se convocou o professor para opinar nas reformas e quem não é chamado para participar da construção de um projeto não vai depois ter interesse nenhum em seu destino.
Cada reforma no Brasil parece guardar um pouco da lição de Tomasi di Lampedusa, no romance O Leopardo, a saber: devem-se fazer, sim, reformas, para que tudo permaneça como está. Para cortar os males atuais da educação brasileira será preciso, entre outras medidas, que são muitas, formar melhor os professores, dando-lhes capacidade suficiente para que mostrem aos alunos o lado prático e aplicativo de cada proposição teórica dos programas de ensino, além de dar-lhes a expertise para o uso didático das tecnologias da informação, em vez de fazê-los meros repetidores de lições cediças e superadas sobre o saber antigo.
Erudição e cultura
Participei de um congresso internacional de professores de matemática e às tantas perguntei ao público quem ensinava para seus alunos o teorema de Pitágoras. Todos levantaram o braço, todos ensinavam. Perguntei então: quem consegue transferir para o aluno a noção do que vale o teorema de Pitágoras para o seu dia a dia, o que eles fazem com o teorema de Pitágoras na cabeça? Ninguém levantou o braço. É exatamente isso o que acontece, pois a formação do professor está errada. É preciso antes de mais nada que ele tenha capacidade de transferência significativa do conceito, do absolutamente abstrato, que é a erudição, para o aplicativo, que é a cultura.
Mas isso não se faz e o professor continua a ser formado com a suposição de que deve continuar como o depositário do saber. Hoje não é mais, deixou de ser há muito. Aristóteles foi o único homem que conseguiu ter na cabeça toda a ciência possível em seu próprio tempo. Hoje não há mais possibilidade de haver outro Aristóteles, é impossível. Tanto que inventaram o computador, porque nem as bibliotecas conseguem mais ter espaço para armazenar o saber que cresce hora a hora, dia a dia.
O centro do processo de ensino é o aluno, o professor não vai mais ditar, mas ajudá-lo a encontrar sua própria lição. Sempre digo que o ensino fundamental e médio tem de ser não uma disciplina, mas uma prática de pesquisa do aluno, tem de ensiná-lo a usar a biblioteca, a internet, a tecnologia da informação para ele próprio poder formular o saber que lhe é interessante e necessário. O professor deixou de ser o centro para ser o parceiro do aluno. Não pode impor conceitos, que em grande parte até são defasados. O livro didático também é algo do passado, são lições superadas que os professores tentam passar para o aluno. Ele vai ficar com aquela lição embolorada a troco de quê?
Então é preciso preparar melhor os professores, dar-lhes instrumentos que hoje não têm. Transformá-los em assessores e condutores na busca do saber que convém aos alunos, na pesquisa individual e permanente na internet e nas bibliotecas. Antigamente falava-se em autodidatismo, que era uma alternativa à formação escolar adequada. Havia gente que com esforço pessoal aprendia a ler e a escrever sozinha. Hoje isso vai desaparecer, porque a escola está se universalizando, mas há outro autodidatismo que tem de ser levado em conta, é o autodidatismo culto, aquele que os alunos precisam apreender para adquirir sua própria informação na era do conhecimento. Para tanto é necessário que a escola ajude, que o professor assessore.
Isso tudo deve ser acompanhado do fortalecimento da carreira docente. Aí está o xis da questão. O governador de São Paulo anunciou recentemente aumento de 40% para os professores, em quatro anos. Não acredito que isso tenha alguma validade, não é só de aumentos esporádicos e mais ou menos fortuitos que o professor precisa. Ele necessita de uma reestruturação séria de carreira – carreira e salário, até porque o professor brasileiro é o mais mal pago entre os profissionais de formação universitária neste país. Para tanto, faz-se mister libertar as escolas também das amarras burocráticas que hoje as imobilizam na rotina, convertendo-se os órgãos superiores do sistema, a saber, o MEC e as secretarias de educação, de meros controladores de procedimentos cartoriais em consultores pedagógicos de cada unidade escolar na elaboração de seus planos de desenvolvimento institucional (PDIs), sempre em associação, notem bem, com entidades empresariais e grupos sociais atuantes.
Divórcio escola/empresa
Por força de uma loucura cultural que prevalece no Brasil, as escolas fogem das empresas, como se estas não fossem o destino de seus alunos. Existem certas presunções de que capitalismo é pecado, então isso preside muitas vezes as relações entre escola e empresa, há um divórcio total. É preciso que a escola aprenda a usar a empresa como um referencial para melhorar seus padrões e atualizar suas lições, sempre em associação com entidades empresariais e grupos sociais atuantes, da mais variada feição, até porque a razão última de educar as pessoas está em dar-lhes o uso consciente da liberdade.
Liberdade com responsabilidade, esse é o fator último da educação, é o que está em jogo. Se for verdade, é muito difícil usar para isso escolas sempre destituídas de liberdade em sua opção pedagógica. Imaginem um médico que receba seus pacientes e a cada diagnóstico e receita tenha de se socorrer do “Diário Oficial” para ver se aquilo está conforme ou tenha de telefonar para a Secretaria da Saúde para saber se está dentro das normas. O professor é obrigado a isso, nenhuma escola pode fazer nada se não tiver a aprovação dos órgãos burocráticos. É uma prisão tradicional.
O Conselho Nacional de Educação [CNE] está estudando a possibilidade de mudar o critério curricular, dando à própria escola o direito de organizar seu currículo. Mas no Brasil as coisas são muito improvisadas, as melhores bandeiras em qualquer setor acabam amarfanhadas, porque são mal implementadas. Não se prepara nada, é o país da improvisação. Então aquele conselho, soberano e importante, está agora acordando para isso.
Tem um lado positivo, vai sair da inércia, mas não se vê nenhum procedimento para garantir o sucesso da medida. Para que isso realmente aconteça, é preciso dar um prazo de cinco anos para ir implementando-a, preparando professores, adaptando escolas em sua parte física. Baixam um decreto, aprovam a lei e no dia seguinte ela entra em vigor. E daí? Não tem nada preparado e tudo se transforma num sonho inútil.
Para finalizar, é preciso também gastar mais em educação no Brasil. Os 4,5% do PIB [Produto Interno Bruto] significam muito pouco, além de serem pessimamente geridos. Quem assiste à televisão vê a todo momento a polícia federal prendendo gente que desviou dinheiro da merenda, do transporte, verbas disso e daquilo que seriam da educação. A ladroeira corre solta, há ralos de todo tamanho entre a liberação orçamentária dos recursos e sua entrada na escola. O dinheiro vai sumindo, de tal modo que, de cada real, calcula-se que só 30 centavos cheguem à escola.
Há que aumentar esses percentuais e inverter também as prioridades do sistema, pois hoje se gasta mais com os alunos do ensino superior e menos com os dos cursos básicos. A Coreia do Sul emprega 19% do PIB em educação todo ano, é um país cercado de inimigos, ameaçado, mas tem seu maior orçamento na educação. Nós temos 4% ou 4,5%.
Na comparação entre o custeio dos diversos graus de ensino no Brasil com os dispêndios feitos pelos países da OCDE, fica claro que estamos longe do bom senso nessa matéria. No ensino fundamental gastamos por aluno/ano US$ 1.556. Os países do Primeiro Mundo gastam com esse mesmo aluno US$ 6.437, cinco vezes mais. No ensino médio brasileiro utilizamos US$ 1.568 por aluno/ano. No mesmo nível em qualquer país desenvolvido são US$ 8.006. Outro dia anunciou-se que o sistema penitenciário gasta por presidiário R$ 1.500 por mês, o que no ano vai dar uma quantia significativa, muito mais que o ensino recebe.
No ensino superior a comparação está mais ou menos equilibrada. Na OCDE empregam-se US$ 12 mil por aluno/ano e aqui são US$ 10 mil. Para nossos padrões é uma distorção, precisaríamos inverter: os US$ 10 mil deveriam ir para o ensino básico. Isso mostra que realmente o ensino, até em termos de sistema, continua muito elitista e essa é uma das raízes do fracasso da educação brasileira.
Debate
ROBERT APPY – Nos tempos passados, a escola normal não formava bem os professores no Brasil?
PAULO NATHANAEL – Formava muito bem e sou fruto dela, foi onde aprendi os conceitos fundamentais da educação como ciência e como arte.
APPY – Por que destruíram esse curso?
NATHANAEL – São os modismos. Criam-se os motivos, destrói-se o que vinha funcionando bem e não se constrói nada no lugar. Foi assim com os bondes de São Paulo, as estradas de ferro no Brasil.
APPY – Estou pensando nos 10% da população que vivem em favelas. Como as crianças podem estudar em casa?
NATHANAEL – Há uma contradição em termos. Seria melhor se houvesse uma educação voltada para essa situação, talvez desse bom resultado. Mas será que se quer mesmo educar o povo?
MOACYR VAZ GUIMARÃES – Sua palestra me levou a algumas conclusões que submeto a você, porque também está fortalecida em meu espírito a ideia de que para o governo brasileiro a educação nunca foi um programa sério. Ela é assunto para discursos eleitorais, sempre, e todos ficam numa posição genérica, ninguém tem um plano específico para resolver nossos problemas e assim vamos vivendo de crise em crise. O próprio Conselho Nacional de Educação está muito aquém do antigo Conselho Federal de Educação. Naquela altura havia firmeza, havia uma direção. Hoje há a cultura do improviso. Improvisam-se medidas sem cuidar de sua operacionalidade e sem lhes dar um julgamento sólido que as faça perdurar. Altera-se hoje para alterar a alteração amanhã, é uma nau sem rumo.
Uma vez defendi a ideia da prioridade para a educação nas atitudes do governo e recebi um achego muito amável do saudoso Pedro Kassab, que me disse que não se trata bem de prioridade, mas de precedência. O governo precisa entender que educação tem precedência, não ficar apenas no anúncio de medidas.
JANICE THEODORO – Permito-me fazer algumas considerações laterais, inclusive porque trabalho nas matrizes do Enem [Exame Nacional do Ensino Médio] e me defrontei com alguns dados da educação brasileira que têm muito a ver com o que o senhor disse. Estou de pleno acordo que a educação brasileira precisa melhorar. Tenho a sensação de que para avaliar corretamente a educação brasileira a primeira coisa a fazer é estabelecer uma relação entre crescimento populacional e educação. Quando olhamos as tabelas de gastos educacionais em diferentes países, é necessário levar em conta, por exemplo, o número de crianças que ingressam na escola. Nos últimos 60 ou 70 anos no Brasil foram 80 milhões de pessoas. Onde encontrar professores?
Sou otimista com relação à educação brasileira, porque já se tornou possível fazer um diagnóstico. A prova do Enem permitiu avaliar em território nacional e podemos ver que a criança do Maranhão está atrasada em relação à do Rio Grande do Sul. Ou seja, se quisermos, podemos fazer uma política pública adequada. O MEC possui dados que lhe permitem fazer investimentos apropriados onde a educação é muito ruim. Se vai fazer ou não, isso depende da política oficial, mas o diagnóstico existe. Dez ou 15 anos atrás, isso era praticamente impossível. Sou otimista também porque o número de filhos por casal está diminuindo, e vai ser possível educar os professores. Se tivermos pessoas que trabalhem direito, vamos investir no lugar certo. Quando se fala em educação na Coreia do Sul ou na China, é necessário fazer uma separação. Existe educação para a produção e educação para a liberdade. Na China não existe escolha de profissão. Existem cotas de engenheiros, médicos etc. em cada região.
NATHANAEL – O que a professora falou vem casar com tudo o que dissemos aqui, primeiro porque o Brasil tem mais crianças que os países do Primeiro Mundo, mas tem menos dinheiro investido em educação e menos instrumentais. Quanto ao otimismo, todos somos otimistas. O professor especificamente tem de ser um otimista. Se ele não acreditar no esforço de educação, que é um ato para o futuro, não estará desempenhando seu papel.
ISAAC JARDANOVSKI – Falando em otimismo, qual é a explicação para o sucesso da Fundação Dom Cabral, de Minas Gerais, que é considerada a quinta melhor escola de economia do mundo?
NATHANAEL – Quando fui presidente do CIEE [Centro de Integração Empresa-Escola] em São Paulo, contratei a Fundação Dom Cabral para fazer um diagnóstico estratégico para o desenvolvimento futuro da entidade. Tenho esse estudo pronto e, infelizmente, não houve tempo para aplicar as recomendações, estão lá para que as novas administrações o façam. É admirável o trabalho que desenvolvem e superaram universidades de grande fama.
Lamentavelmente, o Brasil vive de exemplos isolados. É claro que isso vai melhorando, os diagnósticos vão ajudando e dando subsídios, o que nem sempre é verdadeiro, porém. Agora, por exemplo, estão discutindo um plano nacional de educação no Congresso, um desastre total. Recentemente o MEC publicou em todos os jornais e revistas um plano de desenvolvimento da educação. Ora, o que não é feito com qualidade é mera intenção. Não há nada de sério naquilo.
JOSÉ ROBERTO FARIA LIMA – Implantamos na capital paulista um projeto, com o então prefeito Jânio Quadros, chamado Terceiro Milênio. Conseguimos apoio do Citibank e instalamos alguns computadores na marquise do Ibirapuera. Percebemos então que o grande objetivo da escola é despertar a curiosidade e que é fácil fazer isso em um ambiente atraente. Foram treinadas mais de 10 mil crianças no uso do computador. Trouxemos o educador Karl Popper e ele ficou abismado ao ver aquela escola sem muros, aberta aos alunos. Fizemos convênios para trazer os professores para que pudessem participar.
O sistema educacional é um subsistema do econômico. Quando surgiu a era industrial, um dos fatores principais era a paciência, porque a fabricação era um processo monótono e muito repetitivo. Com a chegada do computador, tudo acontece 24 horas por dia, e tudo tem de ser refeito. O que falta é uma visão de nossos administradores para o alcance desse processo. Se bem que tive, por outro lado, uma disputa com Valdemar Setzer, que dizia que as crianças não podem entrar nesse nível de informatização, senão vão pensar que o cérebro ficou obsoleto. É exatamente isso o que queria que você analisasse.
NATHANAEL – Faria Lima abordou um problema que também exige outra conferência, o dos objetivos filosóficos da educação. A professora Janice referiu-se a uma educação para a produção, na China, e outra para a liberdade. Realmente a educação é para a liberdade, a produção é um viés e não pode substituir a formação geral. O erro da reforma de 1971, no Brasil, que criou o ensino de segundo grau tentando a profissionalização, nasceu do fato de que a filosofia da educação passou a se assentar em vieses e o essencial ficou esquecido, que no fundo é a formação do cidadão para a liberdade.
CLÁUDIO CONTADOR – Existe um mito, ou pelo menos existia, de que educação é algo que toma muito tempo para mudar, e em decorrência disso deixamos para mais tarde. Assisti a uma palestra de uma educadora chinesa que dizia que eles fizeram avanços enormes em 10 a 15 anos. Podem-se fazer grandes transformações em curto período desde que a educação esteja baseada, em primeiro lugar, em melhorar a qualificação dos professores. Ou seja, é possível que dentro de uns 15 anos tenhamos uma mudança neste país. Agora, uma provocação: já que educação e democracia estão juntas, a China não está criando um problema para si própria no futuro?
NATHANAEL – Eu não saberia dizer, mas tudo indica que um dia também a China vai se convencer de que não dá para continuar como está. O atual regime deve ter sido bom como propulsor de alguns avanços, mas daqui a pouco a população estará de tal forma modificada mentalmente que os burocratas do regime terão de se curvar, a China precisará entrar em outros processos, onde a liberdade terá importância. Isso é inevitável.
ZEVI GHIVELDER – Qual é a distinção que você faz entre lecionar e educar?
NATHANAEL – Educar envolve um sistema de valores humanos. Em sua essência, a educação é a culturalização do ser humano. Ele difere dos outros seres vivos exatamente porque nasce desprovido, desamparado. Se for deixado por conta própria, morre. Então é preciso ampará-lo, e nesse processo sobressai a necessidade de adequá-lo ao meio em que nasceu, ele tem de ser culturalizado. Todos somos produtos de uma cultura, sobrevivemos porque conseguimos nos ajustar a ela. E se vivemos numa democracia, a culturalização tem como um de seus pilares a liberdade. É nesse sentido que a educação tem de funcionar.
A educação envolve então todo esse processo de culturalização do ser humano pela vida toda. Tanto que hoje temos a educação continuada. Antigamente a escola tinha um papel de oficina mecânica, onde se carregavam os acumuladores. Todo estudante saía da universidade com um acumulador de conhecimentos que lhe permitiam exercer uma profissão, até com sucesso. O que ele não recebia da escola às vezes supria com criatividade. Hoje, se não tiver uma educação complementar, a chamada educação continuada, perde a corrida na competição profissional.
FÉLIX SAVÉRIO MAJORANA – Quando falamos em valorização de professores, normalmente nos referimos a salário, quando na verdade ela é diferente de pagamento. O salário se destina à sobrevivência, mas para o exercício da profissão o professor precisa ser feliz. Não vejo nenhuma ação voltada para torná-lo feliz, para que entre em sala de aula e transmita aos estudantes essa felicidade. Quando tive a oportunidade de ser secretário municipal da Educação, fiz um plano de valorização do corpo docente. Nesse plano não constava salário, porque isso era política de governo. O professor tinha de ser uma pessoa livre, e ele teria essa liberdade se a escola em que estava fosse seu local de trabalho para sempre. Ele moraria perto, conheceria os problemas da vizinhança, os pais dos alunos. Transformei o professor em irremovível, via concurso, e foi uma felicidade geral. Mas fiquei só um ano na Secretaria da Educação e o prefeito seguinte revogou o decreto. A conclusão é que podemos sonhar uma coisa muito boa, mas os que vêm depois possivelmente não têm o mesmo sonho.
NATHANAEL – Realmente o que o professor precisa é de valorização profissional. Isso implica também em salário, mas não é só isso. Como o professor ganha abaixo do que precisa para sua sobrevivência, predomina essa preocupação, que não deveria ser a principal. No seu caso, o senhor conseguiu aprovar um projeto de interesse geral da classe, que foi revogado. No Brasil é assim, o maior esporte do político é a revogação dos atos do antecessor.
JOÃO TOMAS DO AMARAL – Nos documentos oficiais há quatro grandes palavras que são muito misturadas. A educação se confunde com escolarização, com ensino e com aprendizagem. E falam ainda do ensino. O ensino é do professor, a aprendizagem é do aluno, a escolarização é o tempo que se passa na escola e a educação é o que sobra depois que tudo isso acaba.
Falou-se aqui dos livros didáticos, que na verdade vêm produzindo um conhecimento sedimentado e fragmentado ao longo de mais de um século, principalmente os de matemática. Ou seja, os livros que estamos usando hoje nessa matéria são os mesmos do começo do século 20, com um único adendo: os índices aumentaram. Eram pequenos, abarcando grandes temas. Hoje os índices são fragmentados, porque se criou a figura da interdisciplinaridade, transformando itens que poderiam ser tratados de maneira mais ampla em um campo de conhecimento específico.
Quanto ao modelo educacional brasileiro, está sobrando diagnóstico, mas faltam ações. O CNE está sendo povoado por pedagogos que pouco conhecem a realidade brasileira. Temos lá vários educadores espanhóis que aplicaram reformas que ocorreram em seu país a partir da queda de Franco. Na Espanha foram feitas três reformas de 1986 para cá e o grande foco foram os temas transversais, que já deram errado lá por três vezes e estamos aplicando aqui como a grande coqueluche do ensino. Essa transferência de tecnologia educacional não está levando em conta tudo o que já deu errado.
Como professor de matemática, meu projeto de trabalho é olhar essa matéria como elemento de cultura geral, não de maneira tecnicista. Estamos dando pouca ênfase àquilo que chamamos de currículo oculto e muita importância ao currículo explícito, que é só tecnicismo, e acabamos não trabalhando as atitudes e os valores na educação.
MARISA AMATO – Se houvesse privatização do ensino superior e todo o investimento hoje feito nessa área fosse transferido para o ensino fundamental e médio, estaria resolvido nosso problema?
NATHANAEL – Não. Os sistemas de ensino têm de abrigar os dois tipos de estabelecimentos, públicos e privados. Acontece que os públicos no Brasil tiveram uma supervalorização conceitual de imagem, porque eram os únicos a funcionar e se caracterizavam realmente por grande qualidade. A explosão foi anárquica, pois abriu para a escola particular a participação nessa tarefa, mas não disciplinou isso de maneira adequada. Então virou apenas um negócio. Embora eu seja muito mais privatista que estatista, não acredito que a universalização da privatização possa resolver o problema. Talvez resolva o dos donos de escola.
MARISA – E se essa verba fosse para o ensino fundamental e médio?
NATHANAEL – Mas para isso não precisamos de privatização. Basta fazer uma adequação, que nunca se fez. Quem pode mais chora menos. O ensino superior pode mais, tem mais presença na mídia, então exige e consegue mais.
CONTADOR – A privatização poderia ajudar no tocante à melhoria da gestão. Gestão eficiente faz a grande diferença em qualquer nível de educação.
NATHANAEL – Gestão é uma questão de tempo também. Alguém aqui falou na demora das medidas. Em educação o mínimo que se tem tido na experiência vivida é de 10 a 20 anos para que haja maturação de novas medidas, é lento mesmo. Toda mudança cultural é lenta.
LUIZ GORNSTEIN – Na década de 1950, a classe média paulistana buscava o Colégio Caetano de Campos ou o Colégio Estadual de São Paulo e era difícil conseguir vaga. Hoje, frequenta o Colégio Bandeirantes. Será que a decadência veio porque a classe média saiu da escola pública? Outra pergunta: na China as crianças ficam na escola das 7 horas ao meio-dia, depois das 14 às 17 horas e em seguida das 19 às 20 horas e 30 minutos. Seria possível implantar isso aqui?
NATHANAEL – Tudo aí tem uma parcela de verdade. Se pudermos manter os alunos na escola por mais tempo, ótimo. A educação deveria beneficiar-se disso, mas não é factível. Isso é para países sem liberdade. Não é nosso caso. Quanto à classe média, não se trata só dela, a classe A antigamente também se formava na escola pública, que era uma escola de minorias. Com a enorme afluência social que vivemos, a escola pública não deu mais conta do recado e perdeu qualidade. Hoje o que funciona melhor é um ou outro estabelecimento particular. Isso não quer dizer que a privatização resolva o problema. Esse confronto está muito diluído.
EDUARDO SILVA – Na comunicação com os jovens até nossa linguagem mudou. Já não sei o português e não adianta estudar gramática outra vez se não consigo entender o que os jovens dizem. Se a linguagem deles está mudando, por causa da informática, por causa da música ou por causa dos shows, eu é que tenho de mudar um pouco. Português não é só a gramática.
Quanto ao ensino profissionalizante, estou na Fatec [Faculdade de Tecnologia] de São Paulo há 40 anos. Quando criamos aquela estrutura buscávamos nos aproximar do que acontecia na Alemanha, onde os profissionais saíam da escola direto para o trabalho. Atualmente, quem se forma em engenharia, por exemplo, quer ser o dono da empresa, não o técnico que vai resolver os problemas, que ficam para o mestre de obras, o pedreiro. Quem sai da Fatec é quem tem condições de resolver profissionalmente os problemas. Por que não fomos para a frente? Porque nossas universidades começaram a exigir que os professores tivessem cursos de mestrado e de doutorado, e grande parte dos professores deixaram de ser profissionais e o conteúdo das aulas ficou na teoria. Os empresários precisam ajudar a prestigiar escolas de tecnologia que fortalecem a importância do professor como um profissional do trabalho, não um profissional da aula. O profissional que está na universidade não conhece mais nossa realidade, ele não está mais no mundo real. Então precisamos admitir, a tecnologia é o mundo real.
REINALDO POLITO – Tenho publicado alguns artigos a respeito de educação. Como os textos são abertos, recebo os comentários dos leitores, e alguns textos chegam a ter mais de 50 mil acessos. Em um deles falei do método utilizado por meu ex-professor Ulisses Ribeiro, de Araraquara. Era um professor tão querido que quando faleceu a cidade parou, todos foram prestar-lhe a última homenagem. Ele tinha uma característica curiosa, andava com uns pedacinhos de giz no bolso e quando o aluno ficava meio desatento, jogava o giz na testa dele. Era uma brincadeira, todo mundo se divertia muito, nunca tomava como agressão. Contei essa história e alguns imbecis disseram que eu estava dando mau exemplo, porque aquilo era uma agressão. A vida ficou chata demais, o que poderia servir como motivação para o aluno hoje é encarado como um ato agressivo.
Quanto à tecnologia, tenho ouvido professores dizer que não sabem como fazer para impedir o uso do computador e do celular em sala de aula. Quando pergunto se já pensaram em incluir esses equipamentos na atividade escolar e fazer com que o aluno se sinta mais motivado a participar, levam um susto, porque na cabeça deles só existe a ideia de impedir que o aluno os utilize.
A garotada é muito antenada, consegue prestar atenção na aula, mexer no computador, ouvir música, tudo ao mesmo tempo. O professor hoje vive uma nova realidade e tem de conseguir se identificar com esses meninos, fazer com que tragam para a escola essa motivação. Quando o aluno sentir que esses aparelhos podem ser utilizados para o aperfeiçoamento, para o aprimoramento do ensino, vai saber aplicar o teorema de Pitágoras em seu dia a dia. O investimento em educação, portanto, começa pelo preparo do professor. Se ele estiver preparado para entender essa nova realidade, a educação poderá mudar.
Para encerrar, fico mais ou menos na contramão. Ouvi aqui uma crítica velada à forma de escrever dos jovens e também a sua forma de falar. Meu bisavô criticava muito meu avô pela maneira como ele falava. Meu avô criticou muito meu pai pela maneira como ele falava, meu pai me criticou muito pela maneira como eu falava e eu critico meus filhos. A pergunta é a seguinte: qual a linguagem que vai prevalecer, a de meu bisavô ou a de meu filho? Evidentemente, a nova linguagem é a que vai prevalecer, essa maneira de escrever tudo abreviado. Hoje o jovem, com essa linguagem abreviada, se comunica sem parar. Com o tempo ele vai fazer uma adaptação e vai aprender a escrever melhor, mas em processo de raciocínio hoje ele tem muito mais competência do que nós em nossas redações escolares.
ZEVI – Permita-me um aparte. Você acha que faz sentido, quando se liga o computador, a máquina dizer que está “inicializando” em vez de “iniciando”? Por que esse neologismo?
POLITO – Neologismos sempre existiram. Lembro que estava lendo um livro de direito e o autor da obra, um antigo juiz, colocou que “focar” era um neologismo. Hoje “focar” é uma palavra que se usa muito. “Inicializando” nos surpreende hoje, mas amanhã será uma palavra de uso normal. A língua é viva, ela se transforma com muita facilidade. Tentar impedir termos estrangeiros e dizer que os neologismos estão acabando com a língua é inútil. Isso nos assusta, mas temos de nos curvar, porque essa será a realidade.
VAZ GUIMARÃES – Roque Spencer Maciel de Barros, que era o editorialista do “Estadão”, escreveu uma série de artigos sobre o que chamava “a aberração sem palavras”, dizendo que nas redações dos vestibulares ocorria uma verdadeira barbaridade. O aluno às vezes tinha uma ideia boa e não conseguia verbalizá-la, porque não sabia escrever. Na linguagem do computador, duas letras valem uma palavra. Se caminharmos por aí, data venia, estaremos liquidando a capacidade de falar das pessoas, vão voltar a se expressar por símbolos e não por palavras.
POLITO – Meus quatro filhos aprenderam tudo com essa linguagem, que me assustava muito. Dois já publicaram livros de muito sucesso, com linguagem maravilhosa. Então o fato de terem desenvolvido o aprendizado a partir da linguagem truncada de computador não impediu que tivessem uma boa educação. Hoje estão escrevendo romances e livros de educação. É mais difícil, mas com o tempo aprendem a escrever corretamente e o pensamento formado na adolescência acaba prevalecendo. Além deles, faço referência a meus alunos, que chegam com uma linguagem truncada, mas com um pouco de ajuda acabam aproveitando-a para o desenvolvimento pessoal.
SAMUEL PFROMM NETTO – Estou apoquentado em relação ao que se proclama e se faz no Brasil em matéria desse genérico e confuso tema da educação. Em trabalho recente a respeito desse descalabro parodiei uma expressão cunhada por Sérgio Porto, o saudoso Lalau Ponte Preta, a sigla Febeapá, o Festival de Besteiras que Assola o País, à qual acrescentei mais uma sílaba: Febepeapá, isto é, Festival de Besteiras Pedagógicas que Assola o País.
Estou evitando deliberadamente a palavra “educação”, porque a meu ver é vaga demais, muito genérica, mais confunde do que ilumina. Referi-me ao melancólico Febepeapá porque, aturdido e indignado, vejo nas livrarias, nas bibliografias que estão nas mãos dos estudantes, nas bibliotecas das escolas superiores e nos catálogos de nossas editoras como vai mal nossa literatura soi-disant pedagógica, em flagrante contraste com o que de melhor se produz no exterior sobre ensinar e aprender. Há montanhas de livros, publicações e revistas especializadas que são, sem nenhum exagero, totalmente ignoradas no Brasil. O establishment pedagógico “mequiano” simplesmente não toma conhecimento disso. Estamos repetindo à saciedade ideias que são francamente idiotas, ou são coisas que pertencem a autores e pedagogos que nasceram no século 19. E o resultado final é trágico.
Há alguns anos fiz parte de um grupo de professores de Piracicaba que tentou convencer as autoridades de ensino da conveniência da criação de um centro dinâmico, em dia com o que se faz de melhor no mundo em matéria de ensino e aprendizagem, a ser instalado na tradicional Escola Normal de Piracicaba. Depois essa unidade foi convertida em Instituto de Educação e por fim transformada numa escola secundária comum. Pois bem, fizemos um extenso documento básico, alicerçado na melhor literatura internacional de pesquisa empírica e de prática pedagógica, que foi enviado ao então titular da Secretaria da Educação do estado de São Paulo, após várias tentativas de contato direto. Não houve resposta. O secretário não deu nenhuma atenção ao documento nem se dignou a acusar o recebimento daquela contribuição. O que menciono aqui é apenas uma das várias tentativas de mudar esse deplorável estado de coisas que vem perdurando há anos entre nós, enquanto continuamos presos aos malfadados parâmetros curriculares do MEC, que mais de uma vez chamei de “burrômetros” curriculares, de sabida influência espanhola, a que se referiu João Tomas.
Buckminster Fuller escreveu um livro notável, intitulado Manual de Instruções para a Nave Espacial Terra. Ele diz que todos nós somos tripulantes, não passageiros, e responsáveis por essa espaçonave. Está na hora de adotar um manual de operações para a tripulação da espaçonave educação, ensino e aprendizagem, antes que o mundo se desintegre.
NATHANAEL – Agradeço os reforços que a palestra recebeu dos que se pronunciaram. Espero que muitas vezes neste conselho ainda se fale em educação.