Postado em 09/02/2012
Formado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas, em 1968, o filósofo e professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) Celso Favaretto é um dos principais estudiosos do tropicalismo.
O interesse pelo tema o levou a pesquisar o assunto durante seu mestrado de filosofia na USP, entre 1974 e 1978, cuja dissertação deu origem ao seu primeiro livro, intitulado Tropicália: Alegoria, Alegria ?(4ª ed. Ateliê Editorial, 2007), publicado em 1979 e considerado um dos trabalhos mais completos sobre o tropicalismo. Já seu segundo livro, A Invenção de Hélio Oiticica (Edusp, 1992), é fruto de sua tese de doutorado, também defendida na USP.
Em encontro realizado pelo Conselho Editorial da Revista E, o convidado desta edição explicou o contexto de criação do movimento tropicalista e analisou aspectos artístico-culturais que eram discutidos no período da ditadura militar no Brasil. “A derrota de 1964 foi política, mas também foi a derrota dos cálculos artístico-culturais que visavam fazer da arte uma coisa muito empenhada, e quase só empenhada”, diz Favaretto. A seguir trechos da conversa.
Período fecundo
Estou situado nesse trabalho que é fundamentalmente reflexivo, voltado para produção artístico-cultural brasileira desde meados dos anos de 1960. Foram os anos em que eu frequentei a faculdade. Fiz dois cursos de graduação: matemática, que ficou inacabado, e simultaneamente filosofia, que é a minha graduação.
Como vocês sabem, foi um período extremamente fecundo, em termos de proposições transformadoras que visavam transformar o país, tanto em termos políticos como em termos artístico-culturais. Pouco tempo depois do golpe militar de 1964, a produção artístico-cultural tentava reagir à censura e à repressão do regime, mas além disso tentava rearticular o que vinha sendo articulado desde os anos de 1950, que foram anos fundamentais para se pensar a modernidade.
Basta lembrar que no início da década de 1950 tivemos a primeira Bienal Internacional de Arte de São Paulo [que trouxe ao Brasil, em 1951, obras do italiano Giorgio Morandi e do suiço Alberto Giacometti, entre outros].
Com Rio 40 Graus [1955], de Nelson Pereira dos Santos, já houve o prenúncio de um outro cinema, que depois foi chamado de cinema novo.
Além disso, a chegada da abstração, e particularmente da abstração geométrica no Brasil, também já propunha uma ideia de modernidade. Entre 1961 e abril de 1964, houve um momento muito especial devido ao cenário político e às, digamos, articulações políticas. Principalmente a partir da posse de João Goulart, em 1961, houve uma figuração muito explícita de dirigir a produção artístico-cultural para finalidades muito voltadas para a mobilização política.
Rupturas
Depois do golpe de 1964, há uma reorganização da cultura e das pesquisas artísticas que busca uma rearticulação de uma produção que já vinha sendo implementada de forma transformadora, em termos de ruptura, em termos de inovação. A veia experimental não desapareceu, mas não foi privilegiada.
Com exceção, talvez, daquilo que continuava acontecendo no domínio das pesquisas dos concretistas e do início daquilo que levou ao cinema novo. Ora, a derrota de 1964 foi política, mas também foi a derrota dos cálculos artístico-culturais que visavam fazer da arte uma coisa muito empenhada, e quase só empenhada.
Chamava-se isso de arte engajada e empenhada na revolução brasileira. O golpe de 1964 exigiu dos artistas uma recodificação e uma reavaliação, tanto das estratégias de participação como da relação entre participação social e política e experimentação artística.
O que acontece até o ano de 1968 é decisivo para definitivamente colocar o país no rumo do que seria realizar a modernidade. E, mais do que isso, de levar a modernidade ao seu fim. Ou seja, a um ponto tal de expressão que a partir daí alguma outra coisa tinha de ocorrer, talvez não mais chamada de modernidade. Ou pelo menos não mais aquela modernidade inaugurada no século 19, já muito bem teorizada inicialmente nos textos do Baudelaire.
Tropicalismo
Meu interesse sobre esse período, entre a década de 1960 e 1970, levou-me a fazer meu primeiro livro, Tropicália: Alegoria, Alegria, sobre a música tropicalista. Esse movimento teve desde o início uma dupla significação.
Primeiro, uma preocupação propriamente dita com a música. Quando o tropicalismo surgiu, realmente rearticulava aquilo que o Caetano Veloso chamou de uma linha de tradição.
Quer dizer, rearticulava uma tradição de música popular brasileira, que tinha sido repensada pela bossa-nova e depois decaído em certa bossa-nova que conjugava certo lirismo com uma tentativa de significação social. Além disso, a tropicália percebe tanto o trajeto da música brasileira como essa relação entre música e contexto sociopolítico.
Alguma coisa tinha de ser feita, porque essa junção tal qual aparecia após 1964 – principalmente em se tratando dos festivais – deixava a desejar. Independentemente da alta produção musical que se fazia, de excelentes músicos que surgiam, era preciso dar um passo à frente para resolver o seguinte problema: como postular uma posição artístico-cultural que fizesse frente ao desafio brasileiro de se posicionar perante o governo militar –basicamente em relação à censura e à repressão – e simultaneamente mantivesse a pesquisa de vanguarda sem fazer concessões.
O cognominado grupo baiano, que tinha à frente o pensamento de Caetano e de Gil, analisou a situação e julgou que tínhamos sinais e indicações claras de que isso não estava sendo bem realizado no cinema, no teatro e na música. Principalmente na música, por causa do seu aspecto comercial dominante.
Então, enfrentando esse problema, o tropicalismo propôs uma intervenção na música brasileira que tentaria dar conta não apenas da dialetização na relação entre política e cultura, mas ao mesmo tempo propunha o avanço da experimentação como locus privilegiado, onde deveria aparecer o político, e não o contrário. Ou seja, o lado político não deveria se sobrepor à experimentação para satisfazer as proposições políticas.
Isso foi uma coisa fundamental, e sempre é fundamental em arte, em qualquer época. Isso me interessou profundamente, por isso fiz o livro sobre o tropicalismo. Foi o primeiro livro feito sobre o assunto e permanece aí até hoje como referência, nesse sentido de tentar pensar o tropicalismo como uma inovação na música brasileira, com uma coragem de romper com certos preconceitos que envolviam a música. Esse movimento mostrou que a música brasileira poderia ser muita coisa, não apenas o que era postulado como música brasileira, vindas das nossas tradições, inclusive do samba.
Eles propuseram que ao mesmo tempo fosse possível integrar os procedimentos técnico-musicais mais avançados – inclusive do rock, da música aleatória, da música dodecafônica etc. – sem ir contra às chamadas culturas populares. Esse avanço não era, entretanto, uma mistura indeterminada. Estava marcado por uma posição estética e uma posição política. Quer dizer, aquilo que resultaria dessa experimentação também seria a proposição de um modo diferenciado de intervenção política através das artes. Alguma coisa que não foi bem compreendida na ocasião, mas que anos depois foi.
O professor e doutor em Filosofia Celso Favaretto esteve presente na Reunião do Conselho Editorial da Revista E em 8 de dezembro de 2011
“(...) o tropicalismo propôs uma intervenção na música brasileira que tentaria dar conta não apenas da dialetização na relação entre política e cultura, mas ao mesmo tempo propunha o avanço da experimentação como locus privilegiado, onde deveria aparecer o político, e não o contrário”