Postado em 08/09/2011
por Francisco Luiz Noel
Eles formam uma dupla imbatível no imaginário devocional dos brasileiros, por ter a santidade associada à pureza infantil e ao prazer do paladar. Festejados em 27 de setembro, um dia depois da data que lhes é reservada pela folhinha do Vaticano, Cosme e Damião fazem parte de um panteão ocupado por poucos santos no Brasil – entre eles, os juninos Antônio, João e Pedro, o guerreiro Jorge, o piedoso Francisco de Assis e a padroeira Nossa Senhora Aparecida. Na origem da popularidade dos dois irmãos, oragos da mais antiga igreja de pé no país, erguida no século 16, está o cruzamento do catolicismo com as religiões afro-brasileiras, que os vincularam à divindade Ibeji, protetora dos gêmeos e reverenciada com guloseimas.
Embora o calendário popular consagre a Cosme e Damião o 27 de setembro, dia em que a criançada brasileira sai às ruas à caça de doces servidos pelos devotos, a ocasião oficial dos católicos para louvar a dupla é a véspera, desde a década de 1960. A antecipação foi operada pelo Concílio Vaticano II – encontro em que prelados do mundo inteiro, convocados em 1961 pelo papa João XXIII, adaptaram a liturgia católica à modernidade. A favor da mudança pesou a data de abertura da basílica dos dois santos em Roma – um 26 de setembro do século 6. No dia 27 desse mês, o Vaticano passou a lembrar exclusivamente a morte, ocorrida em 1660, de São Vicente de Paulo, sacerdote francês que ajudou a reformar a Igreja.
A força do apelo exercido por Cosme e Damião no Brasil fala, porém, mais alto que a ortodoxia litúrgica do Vaticano. “Como a tradição no país está ligada a 27 de setembro, continuamos a fazer nossas celebrações nesse dia, em respeito à sensibilidade popular, apesar do posicionamento contrário de segmentos da Igreja”, explica em Salvador o padre Josevaldo Carvalho Nascimento, pároco da igreja devotada aos santos irmãos, no bairro da Liberdade. A exemplo dos milhares de baianos que rendem devoção a eles, na igreja e em terreiros de religiões afro-brasileiras, multidões enchem templos no Rio de Janeiro, São Paulo e outros estados, tendo em comum o pagamento, com acepipes, de promessas feitas por favores divinos atribuídos à ajuda dos santos.
Milagres médicos
A lenda de Cosme e Damião atravessa grande parte da era cristã, tendo surgido no século 4. Segundo a tradição católica, eles nasceram na Arábia, numa família nobre, e estudaram na Síria, onde praticaram curas que atribuíam a Jesus Cristo, sem nada cobrar aos doentes. Por creditar seus feitos médicos à interferência do filho do Deus cristão, a dupla foi perseguida pelas autoridades do Império Romano, que dominava a região, e acabou decapitada, num dia 27 de setembro, em terras da atual Turquia. A exemplo de outras narrativas a respeito do martírio de heróis católicos, consta que, sem abrir mão da fé, os irmãos resistiram miraculosamente a tentativas de assassinato por afogamento, queima na fogueira e apedrejamento.
Com o fim do Império Romano no Ocidente e a expansão do catolicismo, os dois santos obtiveram reconhecimento papal: por volta de 530, o papa Félix IV fez erguer a basílica em louvor a eles, em Roma. O histórico de caridade e defesa intransigente da fé cristã praticadas por Cosme e Damião correu a Europa nos séculos seguintes. No Renascimento, os irmãos foram figurados em várias pinturas do italiano Fra Angelico (1387-1455), conservadas em museus da Itália. Em Florença, no Museu de São Marcos, um afresco do pintor mostra os dois, aureolados, em plena função médico-cirúrgica, implantando a perna de um homem negro num paciente branco.
A devoção aos irmãos desembarcou no Brasil com os portugueses, nos primórdios do Brasil Colônia. Aos dois santos canonizados foi dedicada a construção de um dos mais antigos templos cristãos em solo brasileiro, por volta de 1535, em terras do atual município de Igarassu, na Região Metropolitana do Recife. Segundo a tradição, a igreja, que festeja sua fundação em 27 de setembro, foi erguida por gratidão dos colonizadores à dupla santificada, à qual atribuíram ajuda na vitória sobre os índios caetés. A edificação original, de taipa, ruiu no fim do século 16 e foi substituída por outra de pedra e cal, que seria protegida por tombamento federal em 1951 e restaurada anos depois.
Fé popular
Quando amanhece em 27 de setembro, ruas de norte a sul do país são percorridas por meninos e meninas em algazarra e correria atrás de doces e pequenos brinquedos oferecidos pelos devotos de Cosme e Damião, em saquinhos de papel com estampas da dupla. Para alegria da criançada, os pacotinhos com cuja oferta os fiéis contam agradar aos santos costumam ter de tudo um pouco – balas, cocadas, pés de moleque, marias-moles, doces de leite, carrinhos, bonecas, bolas de encher e apitos. São pagamentos de promessas que, pela regra da fé popular, costumam se estender por sete anos seguidos e incluem muita reza e muita vela acesa diante de imagens dos santos.
A comilança e o corre-corre infantil nas ruas a cada setembro exigem cautela redobrada com a ingestão de guloseimas e o risco de acidentes no trânsito. Em 2010, no município paulista de Bauru, quase 50 crianças terminaram o dia de Cosme e Damião no Pronto-Socorro Central, com vômito, dor de barriga e diarreia, depois de terem comido fatias de um bolo doado por uma devota a uma creche e a uma escola da prefeitura. A intoxicação alimentar acometeu também professores e funcionários e se tornou alvo de investigação no 1º Distrito Policial. No mesmo dia, no Rio de Janeiro, um menino de 10 anos foi atropelado no bairro de Jacarepaguá, ao atravessar a rua, desatento ao tráfego, na ânsia de recolher balas e doces.
O pároco Josevaldo faz questão de explicar o papel que Cosme e Damião e as muitas outras figuras santificadas desempenham na crença dos católicos. “Os santos venerados pela Igreja não intercedem perante Deus, mas, sim, perante Jesus, que mesmo sendo Deus é distinto de Deus Pai e é o único intercessor junto a ele. Os santos nos ajudam diante de Jesus, pois fizeram de sua vida um evangelho vivo e se tornaram modelo para os cristãos”, ensina. O padre perdeu a conta das vezes em que ouviu, de fiéis da paróquia, relatos agradecidos por curas e outras graças atribuídas aos santos irmãos, considerados protetores das crianças – em particular, das gêmeas –, dos médicos, farmacêuticos, barbeiros e cabeleireiros.
Diante da fé nos poderes mediadores de Cosme e Damião, padre Josevaldo joga luz sobre as causas da popularidade dos irmãos santificados: “Tendo sofrido martírios sem renegar Jesus, eles nos incentivam a lutar contra as forças estranhas à religião e à dignidade dos filhos de Deus. São populares porque se identificam com nosso jeito de ser e, segundo a fé, atendem a muitos pedidos, sobretudo aos relacionados com saúde física e espiritual”. Extensiva às religiões afro-brasileiras, na associação com Ibeji, a fama popular dos dois irmãos já rendeu até uma obra referencial, Cosme e Damião: O Culto aos Santos Gêmeos no Brasil e na África (Editora Corrupio, 2005), do antropólogo Vivaldo Costa Lima, que dava aulas na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Devoção à baiana
A força do sincretismo torna tênue, em cidades como Salvador, a fronteira entre as homenagens católicas e afro-brasileiras a Cosme e Damião. No dia 27 de setembro, ponto alto de um tradicional novenário dedicado a eles pela paróquia local, são celebradas oito missas, numa maratona litúrgica que começa às 6 horas e termina com procissão noturna de milhares de pessoas. Da manhã à noite, mais de 8 mil pessoas passam pela igreja, que mobiliza grupos de atendimento aos fiéis e até equipe para emergências médicas. Em paga de promessas por conquistas obtidas na vida familiar ou profissional, creditadas aos santos, os devotos levam flores, acendem velas e fazem donativos generosos.
Ao longo do ano, para promover a devoção à dupla de mártires católicos, a igreja de Salvador realiza missas todas as quartas-feiras, às 7 horas. “Oramos pelos doentes, principalmente por aqueles abandonados, sem assistência da família nem do sistema público de saúde”, conta o pároco Josevaldo. “Rezamos também pelas crianças, pelos médicos e farmacêuticos.” Em reforço à fé associada aos dois santos, o padre criou, em abril, um grupo de fiéis, todos homens, batizado de Guardiões de São Cosme e Damião, incumbidos de difundir práticas de vida cristã inspiradas na dupla, numa forma de engajamento alternativo ao do sincretismo religioso.
Exemplo de boas ações ensejadas por Cosme e Damião ocorre também no campo da saúde pública. Valendo-se da penetração popular desfrutada pelos dois e da prática médica associada a eles, o Ministério da Saúde e entidades voltadas à promoção dos transplantes transformaram 27 de setembro em Dia Nacional da Doação de Órgãos e Tecidos. A data vem sendo consolidada ano a ano com caminhadas de médicos e candidatos a doadores em várias cidades brasileiras, contribuindo para ampliar a oferta de órgãos no país. No ano passado, o Brasil realizou 21 mil transplantes e contabilizou a média de dez doadores por milhão de habitantes – um volume ainda abaixo da demanda, mas em proporção considerada alta no mundo.
Banquete
A associação de Cosme e Damião à infância é obra das religiões africanas, destaca o antropólogo Vilson Caetano de Sousa Junior, da Escola de Nutrição da UFBA. Participante de um tradicional terreiro de candomblé de Salvador, o Pilão de Prata, ele chama a atenção para uma representação recorrente no imaginário dos grupos étnicos de raiz iorubá, que tiveram presença marcante entre os escravos trazidos da África: o erê, estado infantil e inicial do transe nos rituais do candomblé. Figurados como erês e crianças, cativadas com guloseimas, os dois irmãos, que segundo a lenda católica não eram na verdade gêmeos, passaram a ser vistos como tal ao ser associados também à divindade Ibeji.
Com Ibeji, Cosme e Damião são cultuados pela fé afro-brasileira como filhos de Oxum, orixá feminina ligada ao domínio das águas doces e a atributos como o amor. “Oxum é o princípio de fecundidade. O culto aos gêmeos está ligado à ideia de continuidade”, assinala o antropólogo baiano. “Há momentos, porém, em que eles surgem filiados a outra orixá, Oya, numa associação a crianças que brincam com as mães. Na verdade, os dois podem aparecer ligados a qualquer princípio feminino, como a orixá Nanã, que, de acordo com certos mitos, também teve gêmeos.” Em resumo, completa Sousa Junior, o Ibeji é considerado uma bênção familiar na cultura iorubá.
Mais do que balas e doces, a oferenda obrigatória entre os praticantes das religiões afro-brasileiras na Bahia em 27 de setembro é o caruru, iguaria salgada à base de quiabo, camarão e azeite de dendê. Nessa celebração a Ibeji, a forma tradicional de apresentar o prato é começar a servi-lo numa grande gamela, sobre toalha estendida no chão, a sete crianças. Elas comem com as mãos, à farta, e se lambuzam à vontade, representando Cosme e Damião e mais cinco figuras mirins do sincretismo – Doum, Alabá, Crispim, Crispiniano e Talabi. Só depois do banquete infantil é que os adultos podem comer. Outras opções costumam entrar no cardápio dos devotos baianos, como vatapá, feijão-fradinho, acarajé, xinxim de galinha e roletes de cana.
“Servir no chão é hábito antigo, tradição milenar de nossos avós que remete ao verdadeiro sentido da refeição para esses povos: comer juntos, reforçar os laços de solidariedade. Somente nos dias atuais é que uma refeição servida no chão causa estranheza, embora essa reação não costume valer para a cultura oriental. No caso dos coquetéis, também suprimimos mesas e cadeiras e ninguém se pergunta sobre isso”, observa Vilson Caetano. A quantidade de meninos e meninas que abrem o rito da oferenda do caruru a Ibeji também é rica de significado, assinala o antropólogo: “São sete porque esse número está ligado à continuidade, à multiplicação, de acordo com as civilizações antigas”.
Terceiro irmão
Outra singularidade da reverência sincrética a Cosme e Damião é a incorporação de um terceiro irmão, mais novo, Doum – nome que na cultura iorubá designa o filho nascido depois de gêmeos. Na Bahia e em estados como o Rio de Janeiro, essa terceira criança aparece figurada, às vezes, em ilustrações populares e imagens de gesso dos dois santos. A presença de Doum nessas representações às vezes gera constrangimento em igrejas devotadas a Cosme e Damião, durante cerimônias de bênção de estampas e imagens. Mesmo na Bahia, há padres que se recusam a benzer figurações que incluam Doum, recomendando aos fiéis que providenciem imagens apenas com os dois santos consagrados pela Igreja.
Essas e outras situações decorrentes do sincretismo levam o padre Josevaldo a pregar a desvinculação dos santos e orixás. “Respeitamos o processo histórico da colonização e procuramos identificar as delimitações de cada religião, conscientizando paulatinamente o povo para que seja diminuída e erradicada essa con-fusão, resultado de equívocos evangelizadores passados”, diz. “Esse pensamento não é só dos católicos e encontra eco entre fiéis do candomblé, que percebem que não há mais necessidade de cultuar seus orixás travestidos de santos. Não se trata de um trabalho simples, de curto prazo, pois interfere no imaginário religioso, mas temos procurado distinguir uma realidade da outra.”
Dias de festa
Distinções religiosas à parte, a fé nos poderes sobrenaturais de Cosme e Damião aquece de forma ecumênica o mercado de produtos postos a serviço da fé. Às vésperas de 27 de setembro, a exemplo do aumento das vendas de quiabo e camarão seco nas feiras baianas, o comércio de guloseimas vive dias de festa país afora. “Muita gente dá balas e doces para pagar promessas, mas outros dão porque gostam, por tradição. É um jeito de fazer o bem a preço baixo: 50 saquinhos para distribuir às crianças não custam mais de R$ 100”, diz o comerciante carioca Irineu Santos, de 45 anos, sócio de uma rede de lojas de doces no Rio de Janeiro e nas vizinhas cidades de Niterói, do outro lado da baía de Guanabara, e Nilópolis, na Baixada Fluminense.
Há 30 anos no ramo, Irineu contabiliza entre 30% e 40% a elevação da demanda por balas e doces por conta da tradição do dia de Cosme e Damião, com destaque para maria-mole, suspiro, cocada, doce de abóbora e pé de moleque. Outro produto que sai bem, no Rio de Janeiro, é a pipoca de arroz. Embora a maioria dos fiéis só se lembre da festa quando chega setembro, comerciantes como Irineu começam a traçar seus planos em maio. É nesse mês que as lojas passam a transmitir aos fornecedores, concentrados em São Paulo e no Paraná, estados que lideram a produção de doces, as previsões de compra para a época das comemorações dedicadas aos santos. Outra providência é a encomenda de saquinhos de papel com a estampa dos dois e de pequenos brindes, que os fiéis distribuem com os doces – línguas de sogra, cornetas, carrinhos e, para as meninas, bonequinhas e anéis baratos.
Em nome do negócio, Irineu Santos acompanha com atenção o comportamento e a preferência da clientela devota, formada majoritariamente por mulheres. Além dos doces tradicionais, são cada vez mais procurados chocolates de marca e barras de cereais. Apesar do crescimento do número de fiéis das religiões pentecostais, que não veneram santos, o comerciante não vê decréscimo na procura por doces, já que os evangélicos presenteiam a petizada com guloseimas no Dia da Criança, comemorado em 12 de outubro. No que parece ser um sinal dos tempos de crescimento da economia e da inclusão social no Brasil, o comerciante carioca faz outra observação: “Aproximadamente 70% dos clientes, na época de Cosme e Damião, são das classes C e D. Muitos compram para pagar promessas por ter melhorado de vida”.