Postado em 09/05/2011
por Miguel Nítolo
É uma revoada sem precedentes. No ano passado, o turista brasileiro, cada vez mais internacional, deixou lá fora o equivalente a US$ 16,4 bilhões, uma impressionante marca que superou em US$ 5,5 bilhões o total registrado em 2009 e se converteu na maior saída de dólares a título de gastos no exterior anotada até aqui. Real forte, economia em expansão e aumento da renda são, segundo os especialistas, as razões que estariam por trás dessa desabalada adesão às viagens internacionais. Antes restrito às pessoas mais bem posicionadas financeiramente e que dominavam o inglês, o passeio ao exterior caiu nas graças de basicamente todas as classes sociais.
Na verdade, os conterrâneos de Santos Dumont perderam o medo do avião e hoje rasgam o céu não apenas rumo a terras estrangeiras, mas também dentro dos limites geográficos do país, do Oiapoque ao Chuí, literalmente. Entre 2009 e 2010, a movimentação aeroportuária experimentou um incremento da ordem de 20,82%, com o registro de 67,6 milhões de desembarques domésticos. Essa sedução pelo turismo, porém, não se processa apenas pelo ar. Cada vez mais motorizados – a indústria automotiva nacional nunca montou e vendeu tantos carros quanto agora –, os brasileiros entopem as saídas das grandes cidades rumo ao litoral e ao interior nos feriados prolongados, num ritual frenético que, segundo as autoridades, tende a ganhar cada vez mais adeptos.
Em fevereiro, o ministro do Turismo, Pedro Novais, informou que a Sondagem do Consumidor em Intenção de Viagem, realizada por sua pasta, detectou aumento sensível nos índices apurados. Foram entrevistadas 2 mil famílias e 35% delas revelaram o desejo de excursionar pelo Brasil ou para o exterior nos próximos seis meses, um percentual que superou em 12,5% o resultado do levantamento realizado sobre o mesmo período do ano anterior. Os destinos turísticos internos são muitos e ganham importância nos negócios das agências de viagens, mas há um segmento que, descoberto recentemente pelos viajantes, novos e veteranos, caminha a passos apressados para a consolidação: o turismo rural, uma modalidade que deverá mexer com as estatísticas do setor.
Experiências únicas
Um estudo conduzido pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) em parceria com a PRB Consultores Associados e o Instituto de Desenvolvimento do Turismo Rural (Idestur), cujos resultados deram vida ao “Panorama Empresarial do Turismo Rural 2010”, mostrou que o setor avança no Brasil à proporção de 30% ao ano, cinco vezes a taxa mundial. Já se sabe que o país ocupa o quarto lugar no ranking global dessa atividade econômica, ficando atrás apenas da Espanha, Portugal e Argentina, nações com um número bem menor de propriedades agrícolas.
A boa surpresa, segundo Valéria Barros, analista da Unidade de Atendimento Coletivo, Comércio e Serviços do Sebrae, em depoimento publicado no site da entidade, é o fato de a pesquisa ter mostrado que o envolvimento de instituições públicas e privadas e de comunidades locais, além da disposição da classe empresarial de consolidar empreendimentos sustentáveis, permite antever o surgimento, daqui a dez anos ou menos, de uma nova realidade. “É uma tendência mundial”, ela disse. “O turista não quer mais ser apenas um mero espectador de sua viagem, mas um protagonista de experiências únicas.”
Sáskia Freire Lima de Castro, coordenadora-geral de Segmentação do Ministério do Turismo, declara que o viajante está à procura de lugares onde o cenário apresente características naturais e culturais próprias e os residentes tenham um estilo de vida diferente do seu. “O espaço rural – comumente associado pela população urbana à qualidade de vida – se mostra para o turista como uma oportunidade de contato com paisagens, experiências e modos de viver distintos dos encontrados nos centros urbanos.” Sáskia salienta que, de acordo com as pesquisas, o campo é o destino preferido de quase 14% dos viajantes abordados, perdendo apenas para as praias (64,9%). Se, entretanto, for considerada a soma ponderada, isto é, aquela que abarca não apenas a primeira, mas as três primeiras opções respondidas, então o total dos entrevistados que confidenciaram nutrir preferência pelo campo salta para 19,2%.
“O meio rural é riquíssimo em belezas naturais, sistemas produtivos, culturas e gastronomia, e as pessoas estão sendo atraídas para esse mundo em virtude, principalmente, do tipo de vida que levam nas cidades, cada vez mais estressante e competitivo”, pontifica Sônia Mattos, superintendente executiva do Instituto Preservale. Segundo ela, as associações afinadas com o turismo na roça vêm buscando promover a qualificação dos serviços e graças a isso a hospedagem na zona rural, além de ganhar corpo, melhorou nos aspectos da qualidade e da diversidade da oferta. “O público consumidor, agradecido, tem colaborado com a expansão da demanda”, ela diz.
O Preservale, por exemplo, atuante em vários municípios do estado do Rio de Janeiro, como Barra Mansa, Barra do Piraí, Paty do Alferes, Rio das Flores, Valença e Vassouras, é uma dessas entidades empenhadas em fortalecer o setor. Sônia, que também é proprietária da Fazenda Vista Alegre, em Valença, explica que o instituto se dedica à preservação e ao aproveitamento sustentável dos patrimônios cultural, histórico e ambiental da região do vale do Paraíba, berço do cultivo do café no Brasil. “Nossa ferramenta é o turismo rural no espaço rural”, ela explica.
Pedras Brancas
Embora certo empirismo ainda ronde o setor, já existe uma forte estrutura de sustentação que estimula novos investimentos, dita regras e orienta seus passos. Para tomar pé da verdadeira história dessa atividade é preciso olhar para trás, por cima das últimas décadas. “O turismo rural em território brasileiro começou como projeto-piloto no final de 1985, tendo como embrião um almoço e, como palco, a Fazenda Pedras Brancas, em Lages, tudo feito em parceria com a operadora de turismo CVC”, lembra o consultor Adonis Zimmermann, à época titular da Secretaria de Turismo daquele município catarinense.
Ele conta que a municipalidade estava interessada em criar uma atração local para o fluxo representado pelo turismo rodoviário que utilizava Lages apenas como ponto de apoio na rota da CVC no âmbito do pacote Serras Gaúchas. “Fizemos uma pesquisa de demanda com os turistas que passavam pelo município e, posteriormente, elaboramos um produto cujos insumos e fatores, em sua maioria, estavam concentrados dentro do espaço rural. Devo ressaltar que, até então, não se tinha nenhum conhecimento teórico ou prático dessa modalidade de negócio”, salienta Zimmermann. A Fazenda Pedras Brancas, hoje um destino bastante conhecido do turismo rural na região sul, foi fundada em 1894. Encravada numa área de formações rochosas de rara beleza, essa propriedade agrícola mantém as atividades rurais paralelamente ao vaivém de turistas aficionados pelas coisas do campo.
O consultor explica que coube à mídia divulgar a experiência de Lages, despertando o interesse em outros pontos do país. “Logo o Sebrae paulista entrou em cena, dando apoio, em 1994, ao turismo rural no município de Votuporanga, iniciativa que teve o mérito de levar a novidade para outros locais, como Bauru, Ribeirão Preto e Itu, todos no estado de São Paulo.” Zimmermann destaca que, posteriormente, unidades do Sebrae em outros pontos do Brasil também passaram a atuar na área, assim como várias instituições ligadas ao meio rural e, mais recentemente, o governo federal, primeiro através do Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur) e, depois, do Ministério do Turismo. “Assim, embora não houvesse um planejamento específico para o setor, criou-se um processo de promoção e apoio bastante significativo”, observa. Zimmermann destaca que, dada a dinâmica do cenário rural brasileiro, “foram surgindo os mais variados produtos turísticos, graças tanto à criatividade dos empreendedores como à orientação técnica recebida”.
Todavia, de acordo com a presidente do Idestur, Andreia Maria Roque de Arantes, o passeio no campo ainda é uma atividade de reduzida proximidade com o mundo do turismo de modo geral. “Não há, por ora, uma convivência forte do setor com o universo das agências e operadoras, situação que dificulta um maior incremento dos negócios.” Mesmo assim, segundo suas estimativas, dentro de dez anos “seremos o maior destino do turismo rural no mundo”. Andreia, que é proprietária da Brasil Rural, uma operadora de “viagens e experiências de natureza e ruralidade”, diz que não existem dados oficiais sobre o número de empreendimentos de alguma maneira envolvidos com essa forma de turismo, mas, arrisca afirmar, é possível que eles somem 15 mil.
De um jeito ou de outro, entretanto, o fato é que o turismo rural está se transformando num bom negócio, e isso a despeito da maneira despojada como tudo começou e da improvisação que ainda é o forte de muitos investimentos. “Exceções existem, mas concluo que o setor teve seu desenvolvimento alicerçado no experimentalismo e no jeitinho autodidata do brasileiro, induzido pela necessidade de melhorar a renda do produtor rural e pela demanda de um segmento de mercado reprimido”, opina o consultor Zimmermann. A seu ver, dadas as características da grande maioria dos municípios que dispõem de um significativo espaço agrícola produtivo, “a proposta do turismo rural caiu como uma luva”.
Entretanto, segundo Fabio Hosken, consultor de turismo rural, “abrir as porteiras sem estar preparado e não lançar mão de um bom projeto são pecados que continuam a ser cometidos pelas pessoas que investem no ramo”. Ele afirma que é primordial que se faça, antes, um detalhado planejamento. Além disso, é indispensável a participação do poder público mediante melhorias na infraestrutura viária. “Infelizmente, são poucos os gestores atentos à necessidade essencial de estradas boas e bem conservadas”, expõe.
Contudo, justiça seja feita, iniciativas com a firme intenção de modernizar o setor começam a espocar por todos os lados. Sônia Mattos conta, por exemplo, que o Instituto Preservale coordenou um projeto em parceria com diversas associações brasileiras, com o apoio do Ministério do Turismo e do Sebrae nacional e a participação da Associação do Turismo de Habitação – Solares de Portugal (Turihab), com o propósito de elaborar um referencial para o turismo no espaço rural nos moldes do que é praticado em outras partes do mundo. A ideia era que ele refletisse a adoção de padrões de qualidade no atendimento e nas instalações, que focasse a questão da conservação ambiental e levasse em conta a culinária regional e a promoção da cultura local.
“Esse trabalho representou um primeiro esforço de capacitação e de aprimoramento do produto turismo rural, elegendo padrões de sustentabilidade, identidade e qualidade como metas a atingir por todos os integrantes da rede Fazendas Brasil”, esclarece Sônia. Atualmente, fazem parte dessa rede 60 propriedades agrícolas filiadas às associações de turismo rural de São Paulo (Abraturr), Ceará (Aceter), Minas Gerais (Ametur), Pernambuco (Apeturr) e Mato Grosso do Sul (Appan) , além da Preservale. “Essas fazendas são um testemunho vivo da grandeza dos ciclos do café, cacau, açúcar e ouro, e um marco da história do país”, diz Sônia.
Embora seja claro que o segmento do turismo rural vem buscando ganhar cada vez mais competência, ainda há um longo caminho a percorrer. Segundo Zimmermann, “os empreendedores do ramo precisam conhecer profundamente as interfaces do turismo, ter a coragem de romper barreiras, adotar a revolução do ecoindustrial como arma competitiva e utilizar o marketing da emoção”. E não é apenas isso. Ele pondera que outros quesitos também devem ser observados, tais como a profissionalização (considerando que, regra geral, os empresários do turismo rural se dedicavam a outras atividades quando passaram a atuar com um tipo de negócio estranho a suas aptidões originais), a criação de diferenciais de competitividade do produto que é oferecido ao mercado (bem como o fortalecimento da imagem por meio da criação de marcas e valorização de elementos culturais) e cuidados com a comercialização, que deve utilizar campanhas específicas e bem trabalhadas porque esses destinos turísticos não deveriam ser oferecidos como os convencionais.
Arrumar a casa
“O aproveitamento do meio rural depende, essencialmente, da organização do espaço e, por conseguinte, da recepção ao turista, cujas necessidades devem ser atendidas com aplicação e hospitalidade”, destaca a consultora paulista Marcela Moro. Ela explica que, a par da qualificação e do profissionalismo que se espera do empreendimento que explora o turismo na roça, é fundamental que as características rurais não sejam modificadas. “O viajante que procura o turismo rural interessa-se pelas peculiaridades do campo, pelas características do que é original e verdadeiramente campestre.” Assim, ela diz, os produtores precisam muitas vezes somente “arrumar a casa”. Marcela observa que o conforto deve ser baseado na rusticidade que o campo tem a oferecer. “O turista rural, efetivamente, quer vivenciar essa experiência de contato com as particularidades do campo”, sustenta.
Marcela menciona ainda o Circuito das Frutas, formado por propriedades rurais de Jundiaí e outros nove municípios ao redor, no interior de São Paulo, como exemplo de investida no campo que leva ao pé da letra essas recomendações. “Acredito mesmo que se trata de um dos destinos de turismo rural mais estáveis do Brasil”, afirma a especialista, que, como consultora, se envolveu de corpo e alma naquele empreendimento. “A região hoje oferece inúmeras opções de passeios e comercializa roteiros e pacotes turísticos durante todo o ano, mas o destaque fica mesmo por conta da produção em grande escala de uma enorme variedade de frutas, como a ameixa, a amora, o caqui, o figo, a goiaba, a lichia, o morango, o pêssego e a uva”, ela enfatiza.
Circuitos como o de Jundiaí já se contam aos montes no Brasil. Veja-se o exemplo de um grupo de pequenos agricultores estabelecidos ao redor de Porto Alegre e que descobriram com o turismo rural um jeito inteligente de aumentar sua renda. Eles deram vida ao destino turístico Caminhos Rurais, constituído por 41 propriedades tradicionais que praticam a agricultura familiar e agroecológica em pomares de ameixas e pêssegos e parreirais, além de produzir mel, flores e vinho, produtos coloniais e gastronomia típica da região. “Todos os participantes recebem por volta de 200 horas de cursos de qualificação realizados em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), o Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), o sindicato rural e a prefeitura de Porto Alegre”, elucida Mauri Webber, presidente da Associação Porto Alegre Rural, segundo ele mesmo explica, “uma entidade criada para promover a integração entre os espaços rural e urbano e fomentar o desenvolvimento sustentável das atividades turísticas e o respeito pelo meio ambiente”.
Os empreendimentos surgidos com o propósito de explorar o turismo rural são representados tanto pelos grandes hotéis fazendas quanto por pequenas instalações gastronômicas. Um modelo dos primeiros é o Hotel Fazenda Mazzaropi, em Taubaté, no vale do Paraíba, em São Paulo, um dos mais destacados do setor, com área total de 150 mil metros quadrados, que utilizou as instalações construídas no passado pelo comediante Amácio Mazzaropi, já falecido, com a ideia de abrigar no local um estúdio de filmagem. No segundo caso, é exemplo o Kaffee-Loch (Café do Buraco, em alemão), na Fazenda Holanda, a 14 quilômetros de Ponta Grossa, no Paraná, instalado em área coberta de 200 metros quadrados junto à sede daquela propriedade. Inaugurado há dez meses e com as portas abertas apenas nos finais de semana, segundo Carlos Luciano Tullio e Drielly Patrícia Vriesman, sócios no negócio, o café colonial é o embrião de uma sonhada investida maior no turismo rural. “Mas isso é para o futuro”, eles avisam.