Postado em 09/05/2011
por Francisco Luiz Noel
O rastro incandescente de uma bola de fogo no céu e o estrondo que se seguiu à sua passagem veloz tornaram o anoitecer de 19 de junho de 2010 inesquecível para centenas de pessoas na divisa do noroeste do Rio de Janeiro com o sudoeste do Espírito Santo. Na manhã seguinte, na localidade de Santa Rita do Prata, município fluminense de Varre-Sai, o agricultor Germano da Silva Oliveira recolheu em sua lavoura de aipim uma estranha pedra cinzenta, levada posteriormente a uma escola das redondezas. O achado, associado ao fenômeno celeste por uma professora e encaminhado ao Museu Nacional, no Rio de Janeiro, acabou alçado à condição de objeto da ciência. Era o primeiro meteorito encontrado no Brasil logo após a queda nos últimos 19 anos.
O meteorito Varre-Sai, como foi batizado, fez crescer uma coleção que não chega a 60 registros de quedas e achados em território brasileiro documentados pelo Museu Nacional e outras instituições científicas. O maior e mais afamado continua sendo o Bendegó, de 2,2 metros e 5,4 toneladas, encontrado em 1784 por um menino que cuidava do gado em Monte Santo, sertão da Bahia. Passados mais de dois séculos, os registros nacionais dessas pedras que vêm do espaço são mais que modestos em relação à dimensão continental do país. Embora ocupe praticamente a metade da América do Sul, o Brasil catalogou menos quedas e achados do que vizinhos bem menores, como a Argentina e o Chile.
Fragmentos perdidos por corpos extraterrestres ao longo da evolução do Sistema Solar, os meteoritos alcançam idades de até 4,5 bilhões de anos, como é o caso daqueles originados de asteroides. Os que saíram da Lua têm em geral cerca de 3 bilhões de anos, enquanto a grande maioria daqueles desgarrados de Marte, bem mais novos, conta entre 100 milhões e 600 milhões de anos. A meteorítica, disciplina científica devotada ao tema, registra de duas maneiras a presença dessas pedras celestes na Terra – as quedas, quando são testemunhadas e levam ao encontro de fragmentos de matéria extraterrestre; e os achados, feitos sem nenhuma relação imediata com o choque dos meteoritos na superfície do planeta.
Recém-despencados do espaço ou caídos em tempos imemoriais, mais de 30 mil meteoritos já foram recuperados no planeta. A quantidade dos que resistiram à entrada na atmosfera, atingiram o solo e não foram encontrados é, porém, incomensuravelmente maior. “Diariamente, na Terra, 25 milhões de meteoros podem ser visíveis a olho nu. A maior parte é causada por meteoroides muito pequenos, que não sobrevivem ao atrito com o ar. Mas há os maiores, que atravessam a atmosfera e colidem com o solo”, explica o físico e professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) Marcelo de Oliveira Souza. Coordenador do Clube de Astronomia Louis Cruls, de Campos dos Goytacazes, ele acompanhou de perto o episódio do Varre-Sai.
A atenção à terminologia científica, observa Marcelo, ajuda a compreender o fenômeno. “Há diferença entre asteroides, meteoroides, que são corpos menores, e meteoros”, assinala. Os primeiros gravitam em torno do Sol, sobretudo entre as órbitas de Marte e Júpiter, no chamado Cinturão de Asteroides. Os meteoroides, de tamanho mais modesto, perambulam perdidos no espaço e, quando penetram em alta velocidade na atmosfera da Terra, produzem os meteoros, também conhecidos como estrelas cadentes, fenômeno luminoso que decorre do calor gerado pelo atrito da matéria com o ar. Os meteoritos são as partes desses corpos que, aquecidos a temperaturas de até 1,5 mil graus Celsius, conseguem sobreviver à prova de fogo.
Para a ciência, os meteoritos dão contribuição de valor inestimável ao estudo do Sistema Solar, ora confirmando, ora refutando teorias, como testemunhos de um passado de bilhões de anos. “Eles têm várias procedências, desde restos da nuvem que formou o Sol e os planetas até a crosta e o interior de asteroides e, possivelmente, de cometas”, ensina a astrônoma Maria Elizabeth Zucolotto, do Setor de Meteorítica do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Sabemos como era o Sistema Solar na época da formação planetária exclusivamente devido a esses ‘fósseis’ que praticamente não tiveram modificações. Outros, que sofreram choques, nos contam a trajetória conturbada de formação e destruição planetária.”
Quando atravessam a atmosfera, meteoritos gigantes abrem crateras ao se espatifar contra o solo, a exemplo do que ocorre em satélites como a Lua e nos outros planetas. Na Terra, são conhecidas mais de 120 crateras de impacto formadas em tempos remotos. Das seis reconhecidas pela ciência no Brasil, a maior é a de Araguainha (MT), com 40 quilômetros de diâmetro, seguida de longe pelas de Vargeão (SC), Riachão (MA), Cerro do Jarau (no município de Quaraí, RS), Vista Alegre (em Coronel Vivida, PR) e Serra da Cangalha (em Campos Lindos, TO). Pelo menos outras duas depressões semelhantes estão na fila do reconhecimento científico: São Miguel do Tapuio, com diâmetro de 20 quilômetros, no Piauí; e Colônia, com 3,6 quilômetros, no sul da cidade de São Paulo, na Área de Proteção Ambiental Municipal Capivari-Monos.
Procuram-se meteoritos
A grande causa da carência de registros de meteoritos em número condizente com o tamanho do Brasil é a desinformação, lamenta Elizabeth Zucolotto, referência nacional em meteorítica. “Isso ocorre principalmente devido à falta de divulgação e de conhecimento entre a população”, observa, agregando outro motivo: a inexistência de compensação financeira. “Outros países têm um comércio que pode ser prejudicial à ciência e, ao mesmo tempo, favorável a ela, feito por pessoas que buscam meteoritos e que só vão ser recompensadas em caso de sucesso”, diz. “Afinal, os cientistas não têm tempo para ficar no campo nem existe lugar certo para as quedas.”
Na tentativa de ampliar a lista de meteoritos no Brasil, o Museu Nacional pôs na rua a campanha Tem um ET no Seu Quintal?, com distribuição de folhetos, cartazes e brindes em 25 mil escolas de norte a sul, participantes da Olimpíada Brasileira de Astronomia (OBA) de 2009, ano internacional dessa ciência, instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU). Foi a primeira vez que o programa Meteoritos do Brasil, criado pelo museu em 1999 e coordenado por Elizabeth, recebeu recursos do Ministério da Ciência e Tecnologia, via Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), assim como da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).
A campanha surtiu efeito, fazendo cair sobre o museu uma torrente de comunicações de presumíveis achados país afora – na esmagadora maioria, rochas terrestres dadas como vindas do espaço. “Não só no Brasil, mas em todo o mundo, apenas uma em mil amostras enviadas é, de fato, meteorito”, conta a astrônoma do Museu Nacional. Para orientar o público, ela postou no site do programa (www.meteoritos.com.br) um passo a passo que permite saber se uma pedra caiu mesmo do céu ou é um simples meteorwrong, que aparenta ser, mas não é um meteorito. A campanha resultou na notificação de cinco novos achados, todos no Rio Grande do Sul. Outros três fragmentos estão em estudos, encontrados em Minas Gerais e no Paraná.
No rol de verificações do programa Meteoritos do Brasil, o primeiro quesito é a cor. Escuros por fora, na chamada crosta de fusão, os meteoritos não têm o interior preto, grafite nem ferrugem, mesmo no caso dos metálicos, que são como o aço inox. Outra peculiaridade: embora não sejam magnéticos, quase todos são atraídos por ímãs. Caracterizados por grande concentração de massa, esses fragmentos de matéria vinda do céu são comumente mais pesados que rochas terrestres com as mesmas dimensões. E, embora possam conter elementos radiativos, como certas rochas da Terra, não apresentam risco de radiatividade para os humanos.
Outro canal de divulgação do programa do Museu Nacional é a telinha da tevê. Em agosto de 2010, depois de ser entrevistada pela apresentadora Ana Maria Braga, na Rede Globo, Elizabeth Zucolotto viu o contador de visitas do site do Meteoritos do Brasil subir a 3 mil acessos num só dia. A entrevista foi reprisada em janeiro e gerou nova onda de interesse. “Recebemos diversos telefonemas, mas é impossível saber por telefone como é uma pedra”, diz. “Algumas pessoas acham que o fato de ter uma delas guardada há muitos anos a transforma num meteorito. Há também a crença de que ‘pedras de raio’ são meteoritos. Na verdade, essas pedras de formato pontudo são artefatos indígenas que não têm a ver nem com os raios.”
Efeito Varre-Sai
O meteorito Varre-Sai tem relação direta com as campanhas do Museu Nacional. Foi graças às informações difundidas na OBA do ano anterior que a professora Filomena Ridolphi, participante do certame, fez contato com a instituição, ao associar a pedra descoberta pelo lavrador de Santa Rita do Prata ao bólido luminoso que havia atravessado os céus fluminense e capixaba. O Brasil não registrava o encontro de um meteorito imediatamente após a queda desde fevereiro de 1991, quando vários pedaços de um meteoroide recém-caídos foram localizados no município cearense de Campos Sales, a 500 quilômetros de Fortaleza.
“Os meteoritos explodem a grande altura da superfície terrestre e caem em queda livre em uns poucos quilômetros em redor, na chamada elipse de dispersão”, explica Elizabeth Zucolotto. “Quem assiste à queda jura que foi logo ali, depois do morro, mas, se for procurar, verá que foi muito longe.” Caso exemplar de localização de meteorito é o Ibitira, logo após sua queda, em 30 de junho de 1957, no município mineiro de Martinho Campos. Fazendo cálculos com base no testemunho visual e sonoro de pessoas de vários locais, cientistas conseguiram mapear o lugar da explosão do meteoroide e, dando busca na região, chegaram a um fragmento de 2,5 quilos, encontrado por um lavrador que apanhava lenha no mato.
O Varre-Sai, com 12 centímetros e 600 gramas, atiçou a curiosidade local e atraiu à região vários caçadores de meteoritos, que procuram e negociam esses achados. “Tivemos o relato da descoberta de mais três meteoritos em Guaçuí, no Espírito Santo. Provavelmente, há muitos outros dessa queda, encontrados ou não”, diz Marcelo, da Uenf. O achado foi batizado assim por praxe da meteorítica, que dá a cada registro o nome do lugar de ocorrência. A existência científica de um meteorito depende da chancela da Sociedade Internacional de Meteorítica e Ciência Planetária, com sede nos Estados Unidos, após análise de pelo menos 20 gramas numa instituição credenciada, como o Museu Nacional.
O episódio do Varre-Sai demonstra como a ajuda da população pode ser útil à ciência. “Até hoje há pessoas que nos trazem rochas para análise. Houve também grande aumento de participação nas atividades do clube de astronomia”, conta Marcelo. Para evitar que novos achados saiam de Varre-Sai, cidadezinha de 8,5 mil habitantes, o prefeito Everardo Ferreira ofereceu bicicletas a estudantes que encontrassem meteoritos e comprou por R$ 15,6 mil a pedra extraterrestre do lavrador Germano, para trancá-la num cofre. Um dos motivos da proteção municipal foi a detenção, dias depois da queda, de um colecionador espanhol que embarcava no Aeroporto Internacional Tom Jobim, no Rio de Janeiro, com três fragmentos do Varre-Sai na mala.
Caçadores em ação
Um dos caçadores de meteoritos que se dirigiram ao município fluminense foi André Moutinho, engenheiro de software de São José dos Campos (SP), que exerce por hobby a atividade. Numa das duas vezes em que esteve em Varre-Sai, ele se lançou às buscas em parceria com o estadunidense McCartney Taylor, um dos vários caçadores estrangeiros que voaram ao Brasil quando souberam da queda. Aficionados como André, que mantém uma caprichada página na internet (www.meteorito.com.br), vão a campo quando podem e têm dinheiro para as despesas, enquanto os profissionais, raros no Brasil, fazem da atividade seu trabalho. “Esses caçadores têm vida nada monótona, viajando pelo globo em busca de aventura e até sofrendo risco de prisão ou de vida”, comenta ele.
No encalço de meteoritos, munido de mapas, aparelho GPS e detector de metais, o caçador vive atento a notícias de quedas e achados, estudando previamente as características geográficas, climáticas e políticas da região que pretende esquadrinhar. “Muitos meteoritos raros, como os lunares e marcianos, foram achados por esses profissionais. Nos desertos, onde a maioria dos meteoritos é encontrada, a busca é financiada por esse comércio e executada por nômades”, salienta André Moutinho. A maior parte dos caçadores coopera com os cientistas, pois tem interesse em que seus fragmentos sejam reconhecidos. O colecionismo de meteoritos também é um grande incentivador do interesse dos jovens pela exploração espacial e pela ciência.
O mercado de meteoritos cota valores a peso, numa escala com variáveis que dependem do grau de raridade. No comércio das pedras extraterrestres mais comuns, o grama tem valor módico, girando em torno de US$ 1 e podendo cair a frações de dólar no caso de certos fragmentos. Em compensação, meteoritos lunares e marcianos, raríssimos, são mais caros que o ouro, avaliados em pelo menos US$ 1.000 o grama. “No caso de meteoritos muito caros, é comum serem cortados em fatias e negociados em pequenas quantidades. Os lunares e marcianos, por exemplo, são vendidos em miligramas”, conta André Moutinho.
Orgulho nacional
Quedas e achados em todo o planeta resultaram em registros científicos de mais de 50 tipos diferentes de meteoritos, agrupados em três grandes classificações: aerólitos, de matéria rochosa, como o Varre-Sai, classificado como condrito; sideritos, metálicos; e siderólitos, metálico-rochosos. Alguns achados brasileiros são objeto de atenção especial dos cientistas, como o meteorito Angra dos Reis, que, primeiro do gênero no mundo, encontrado em 1969 nesse município fluminense, deu à nova categoria o nome de angrito. Outras preciosidades nacionais são o Santa Catarina, do tipo ataxito, com inigualável concentração de níquel, achado no estado de mesmo nome em 1875, e o Governador Valadares, marciano com características raras, descoberto no município mineiro em 1958.
O orgulho nacional é, entretanto, o Bendegó, um siderito, estrela do Museu Nacional. O meteorito chegou ao Rio de Janeiro em novembro de 1888, ao fim de uma das maiores sagas logísticas da história brasileira. Após 102 anos na beira do rio Bendegó, onde caíra durante a primeira tentativa de transporte, em 1785, ele atraiu cientistas estrangeiros e brasileiros ao sertão baiano e teve pedaços estudados na Europa, até que dom Pedro II determinou sua remoção para a capital do império. Na viagem, que durou um ano, despencou várias vezes de uma carreta especial e passou por caminhos abertos especialmente para ele. De Salvador, foi embarcado em navio rumo ao Rio.
O Bendegó, a exemplo de outros meteoritos, foi pivô de superstições e crendices. Quando o maior meteorito brasileiro foi levado do sertão, o nordeste passava por uma das maiores secas da história, associada pela população, revoltada, ao transporte da pedra extraterrestre para o Rio de Janeiro. Em 1937, na cidade gaúcha de Putinga, a queda de meteoritos durante a procissão de São Roque, padroeiro do local, foi associada à providência divina. Dezenove anos depois, o achado do Paranaíba, no atual Mato Grosso do Sul, levou devotos a erguer uma cruz no local e começar a fazer romarias quando não chovia, voltando para casa, segundo a lenda, encharcados de chuva.
Quando foi descoberto, milhares de anos depois da queda, o Bendegó era o segundo maior meteorito conhecido no mundo. Passados mais de dois séculos, os localizados em várias partes do planeta o deixaram atrás dos 15 primeiros em peso e tamanho. O maior meteorito achado na Terra é o Hoba, encontrado em 1920, que pesa 66 toneladas e é atração turística na Namíbia. Depois dele estão o argentino Campo del Cielo (Chaco), com 37,2 toneladas, cuja descoberta é de 1969; o groenlandês Cape York (Ahnighito), com 34 toneladas, de 1894; o chinês Gobi, com 33 toneladas, de 1965; e o mexicano Bacubirito, com 22 toneladas, de 1863.
Atrás do Bendegó, um dos maiores meteoritos brasileiros é o Campinorte, siderito de 2,5 toneladas achado em 1996 numa propriedade rural do município goiano. Os donos da fazenda mantêm a pedra enterrada desde que sua procedência extraterrestre foi atestada pelo Museu Nacional, na expectativa de vendê-la a colecionadores. O meteorito está no centro de uma disputa entre a pessoa que o achou e os fazendeiros. “A lei brasileira precisa estabelecer a quem pertence um meteorito – ao dono da terra ou a quem o encontrou?”, diz a astrônoma Elizabeth Zucolotto. E, mais importante, a legislação também deveria, ela propõe, garantir às instituições nacionais de pesquisa a preferência de aquisição de parte de cada meteorito achado em território brasileiro.