Postado em 05/01/2012
por Francisco Luiz Noel
Antigas igrejas e velhos mercados populares, casarios de estilos colonial e art déco, artesanato em madeira e cerâmica, paisagens integradas à tradição de seus moradores e embarcações típicas de um tempo submerso pelas grandes hidrelétricas, na segunda metade do século 20. Inseparáveis da memória cultural dos brasileiros que vivem à beira do São Francisco, esses e outros bens foram mapeados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no mais completo levantamento do gênero ao longo do rio. Os registros chamam a atenção para a urgência de proteger diversas relíquias, da nascente à foz, flagradas em sofrível estado de conservação.
O Inventário do Patrimônio Material do Rio São Francisco relacionou bens culturais em localidades nos cinco estados banhados pelo Velho Chico – Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe –, de outubro de 2008 a março de 2010. Desde a apresentação pública do levantamento, em junho de 2011, na cidade pernambucana de Petrolina, o Iphan vem promovendo com instituições federais, empresas públicas, governos estaduais e municipais e organizações não governamentais o debate de ações conjuntas de proteção e preservação do rico patrimônio dos municípios ribeirinhos.
“O intuito, com o inventário, não foi olhar de modo isolado as edificações, os bens móveis e o artesanato, mas abordar o território em sua complexidade e extensão, reconhecendo, pelo patrimônio material, as diferentes manifestações artísticas e culturais das comunidades nos municípios ao longo do rio, bem como a diversidade paisagística”, afirma no Departamento de Patrimônio Material do Iphan uma das coordenadoras do trabalho, a arquiteta Mônica Mongelli. Em Petrolina, mais de 50 organizações firmaram a Declaração Nacional do Valor Cultural do Rio São Francisco, em defesa de suas águas, populações, bens e manifestações tradicionais.
De Minas Gerais à foz, na divisa de Sergipe e Alagoas, o rio da integração nacional percorre 2,8 mil quilômetros, ligando sudeste e nordeste e abrangendo também em sua bacia o estado de Goiás e o Distrito Federal. O Velho Chico, descoberto pelos colonizadores europeus em 1501, foi via natural da penetração no continente pelo nordeste, movida pela busca de riquezas, escravos indígenas e almas a catequizar. Marcada também pela escravidão negra, a ocupação da bacia do grande rio produziu uma legião de tipos humanos, com tropeiros, garimpeiros, barqueiros, quilombolas, romeiros, jagunços e cangaceiros.
A bacia do São Francisco se espalha por 503 municípios, quase todos de pequeno porte, nas sete unidades da federação que abrange. Dos 168 afluentes do curso principal, mais de 60 minguam ou secam na época da estiagem, na região do semiárido nordestino. A vida e a cultura ao redor do rio, navegável em mais de 1,3 mil quilômetros, do município mineiro de Pirapora a Petrolina, apresentam características peculiares em cada trecho – Alto São Francisco, da nascente a Pirapora; Médio, até Remanso, na Bahia; Submédio, ainda em solo baiano, até Paulo Afonso; e Baixo São Francisco, até a foz, entre o município sergipano de Brejo Grande e o alagoano de Piaçabuçu.
Proteção a caminho
O inventário cultural já rende vários desdobramentos, do Alto São Francisco ao baixo curso do rio. Na serra da Canastra, em Minas Gerais, berço do Velho Chico, o Iphan estuda o tombamento de antigas moradias com telhados de pedra no vale da Babilônia, município de São João Batista do Glória. Essas construções rurais estão associadas a uma afamada tradição que os moradores continuam cultivando: a fabricação artesanal do queijo da serra da Canastra. O produto e similares – das regiões de Serro e Serra do Salitre, no mesmo estado – são Patrimônio Cultural Imaterial do país desde 2006, inscritos como o autêntico queijo de Minas no Livro de Registro dos Saberes do Iphan.
O tombamento no vale da Babilônia deve ser acompanhado da preservação de sua típica vegetação de cerrado, por meio da chancela de Paisagem Cultural Brasileira – instrumento de proteção do patrimônio natural posto em prática pelo Iphan desde 2009. “As construções estão numa região bonita, em que a paisagem natural, geomorfológica e espeleológica parece ter grande importância do ponto de vista científico, ambiental e cultural”, afirma Mônica Mongelli. O Iphan vai também colaborar com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) na revisão dos limites do Parque Nacional da Serra da Canastra, que está situado nos municípios de São Roque de Minas, Sacramento e Delfinópolis e abriga as nascentes do Velho Chico.
No Baixo São Francisco, várias construções religiosas do sertão entraram na lista de estudos do Iphan. Duas edificações puseram no mapa dos futuros tombamentos o município sergipano de Porto da Folha: uma capela rural no povoado Mocambo, remanescente de quilombo, e a antiga igrejinha da ilha de São Pedro, erguida na época dos holandeses, no século 17. Ladeada por um cemitério indígena, a construção foi restaurada pelo governo estadual após a passagem dos pesquisadores. O templo tem significado especial para os índios xocós, que moram na ilha e são uma das poucas etnias indígenas sobreviventes em Sergipe.
Rio abaixo, rumo à foz, estão na mira do Iphan quatro edificações religiosas nos municípios sergipanos de Propriá, Neópolis e Pacatuba, que preservam marcas dos missionários jesuítas que subiram o São Francisco em busca de índios para catequizar, no século 16. No lado alagoano, três templos foram apontados como dignos de tombamento, nos municípios de Igreja Nova e Penedo. Nesta última – cidade histórica que remonta ao domínio holandês –, uma das construções em pauta é a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, a padroeira. O templo polariza uma festa tradicional em outubro, com novenas, procissão, quermesse e leilões de gado.
Desde a apresentação do inventário, a lista de bens carentes de proteção oficial não para de crescer, por indicação de entidades culturais. Exemplos, em Sergipe, são uma capela erguida pelo beato Antônio Conselheiro, líder de Canudos, em Curralinho, no município de Poço Redondo, e um antigo forno de produção de cal no povoado de Niterói, em Porto da Folha, ambos propostos pela organização não governamental Sociedade Socioambiental do Baixo São Francisco. Outra recomendação são as cercas de pedra dos currais construídos à beira do rio no século 17, que se estendem por quilômetros nos municípios de Nossa Senhora de Lourdes e Gararu e, do lado alagoano, no de Traipu.
Ímpar pela abrangência e pelo potencial para deflagrar ações em favor do patrimônio, o inventário do Iphan não é o primeiro mapeamento cultural feito no São Francisco. Em 2001, numa iniciativa da Federação das Associações Comerciais e Empresariais do Estado de Minas Gerais, a região foi percorrida pela Expedição Halfeld, cujo nome homenageia o engenheiro Henrique Guilherme Halfeld, um dos pioneiros no estudo do rio, na década de 1850. Antes, em 1848, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire lançara na França o livro Viagem às Nascentes do Rio São Francisco e pela Província de Goiás.
Navegação e carrancas
Em terras mineiras, o único bem tombado pelo Iphan nas margens do São Francisco é a Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Matias Cardoso, no norte do estado, na divisa com a Bahia. Erguida pelo braço dos índios xacriabás, no século 17, a mando de bandeirantes saídos de São Paulo em busca de metais e pedras preciosas, a igreja é uma das mais antigas do estado. Tombada em 1954, a edificação está em precário estado de conservação, com infiltrações e goteiras. Situação semelhante apresentam outras construções de estilo colonial ou art déco identificadas em municípios como Arcos, Bom Despacho, Pirapora, Januária e Itacarambi.
Bom Despacho, testemunharam os pesquisadores, preserva o idioma afro-brasileiro gira da Tabatinga, criado pelos escravos nos tempos da mineração, cruzando o português rural da colônia com línguas de raiz banta, trazidas de Angola. A gira, praticada nas fazendas para que as conversas não fossem entendidas pelos feitores, é conservada entre moradores do bairro Ana Rosa. Em Januária, o patrimônio cultural inclui alambiques de aguardente e o fabrico de rapadura, na povoação de Brejo do Amparo. Outra localidade especializada em produtos da cultura, encontrada no Baixo São Francisco, foi a sergipana Santana do São Francisco, movida pelo artesanato de cerâmica.
Marco mineiro da navegação rio abaixo, Pirapora guarda a vitalidade da tradição do artesanato de carrancas, esculturas antropomórficas de madeira usadas até os anos 1950 na proa das embarcações. Com a função mágica de espantar o caboclo d’água e outros maus espíritos, esses talismãs continuam sendo confeccionados por mestres artesãos como Davi José Miranda Filho. Os carranqueiros, que talham as peças com facões, formões e outros instrumentos rústicos, se mantêm em atividade graças a iniciativas como a Casa do Artesão Raimundo Boaventura Leite, onde as carrancas são vendidas a turistas.
Pirapora conserva também o único vapor a lenha que sobreviveu no Velho Chico, o Benjamim Guimarães, carente de restauração às vésperas de completar cem anos. Construído nos Estados Unidos, nos moldes das antigas embarcações do rio Mississípi, o vapor teve seus tempos áureos entre os anos 1920 e 1950, como uma das muitas “gaiolas” que conduziam pessoas e cargas em viagens de até 20 dias entre Pirapora e Juazeiro, na Bahia. Tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha), o barco agora só percorre o rio com turistas, em passeios promovidos nos fins de semana pela prefeitura.
O patrimônio arqueológico do cerrado mineiro também aparece no levantamento do Iphan, responsável pelo acompanhamento de pesquisas no Parque Nacional das Cavernas do Peruaçu, do ICMBio, nos municípios de Januária e Itacarambi, no norte do estado. Em meio ao rico conjunto geológico e espeleológico do parque estão dezenas de sítios arqueológicos, com inscrições rupestres de grupos humanos que viveram há mais de 10 mil anos. A região, típica do semiárido, inclui também o Parque Nacional Grande Sertão Veredas, dedicado à proteção do ecossistema que ambientou o romance homônimo do escritor João Guimarães Rosa.
Gruta da devoção
O trecho baiano do Velho Chico tem na gruta de Bom Jesus da Lapa, no oeste do estado, no Médio São Francisco, o mais vistoso bem com tombamento na mira do Iphan, que deverá incluir no Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) as manifestações de religiosidade popular que dão fama ao local. Todos os anos, em agosto, numa das maiores romarias do país, a cidade recebe milhares de devotos no santuário construído numa das grutas da montanha – um maciço de calcário com 90 metros, coberto por cactos, bromélias espinhosas e outras espécies do semiárido. A gruta de Bom Jesus da Lapa, uma das maiores do lugar, tem 50 metros de extensão, 15 de largura e sete de altura.
Do outro lado da fronteira baiana, no Submédio São Francisco, o casario antigo do município pernambucano de Floresta também entrou na lista de estudos do Iphan para tombamento arquitetônico e urbanístico. Ao lado de construções coloniais dos séculos 18 e 19, como a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, de 1777, o patrimônio local conta com edificações do começo do século 20. Floresta é cortada por um afluente do São Francisco, o rio Pajeú, que recebe as águas do riacho do Navio – cursos de água celebrizados num xote, na década de 1950, por Luiz Gonzaga e Zé Dantas.
Em Sergipe, no baixo curso do rio, o artesanato de Santana do São Francisco é outro patrimônio no foco das atenções do Iphan, que planeja acolher no Inventário Nacional de Referências Culturais o saber dos artesãos do município. Tendo como matéria-prima a mistura de argila retirada de lagoas e areia colhida no Velho Chico, os artesãos enviam peças decorativas e utilitárias para ser comercializadas em Aracaju e em outras partes do país. A cerâmica de Santana, ornamentada com cores vivas, é a principal fonte de trabalho e renda entre os pouco mais de 7 mil moradores. A atividade, junto com a produção de telhas e tijolos em olarias, movimenta 80% da economia desse município ribeirinho.
Difusão cultural
No Baixo São Francisco, além das igrejas coloniais à espera de proteção federal e do artesanato, balança nas águas uma relíquia dos velhos tempos do comércio fluvial na região: a canoa de tolda Luzitânia, que transportava mercadorias e gente até meados do século 20. Restaurada pela ONG Sociedade Socioambiental do Baixo São Francisco e tombada pelo Iphan em 2010, a Luzitânia é uma das sobreviventes do gênero – a outra pertence à prefeitura de Piranhas (AL). Com grandes velas e tolda, cobertura que abrigava canoeiros e cargas, a Luzitânia circula pelo rio difundindo manifestações culturais, nos 250 quilômetros entre a foz e a barragem da Hidrelétrica de Xingó.
A luta que levou à compra e recuperação da canoa começou em 1997 e, 14 anos depois, rendeu à ONG o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, concedido em outubro do ano passado pelo Iphan, em Brasília, na categoria Preservação de Bens Móveis. O barco foi restaurado graças a artífices locais, como Mestre Nivaldo, que cuida da Luzitânia desde 2002. Uma das mais antigas embarcações em atividade no Baixo São Francisco, construída na década de 1920, a canoa tem 16 metros e pesa 12 toneladas – 200 sacos, na antiga língua comercial do rio. A lenda reza que, nos anos 1930, Virgulino Lampião e seus cangaceiros viajavam na canoa, quando ela tinha o nome de Rio Branco e pertencia a um canoeiro da ilha do Ferro, no município alagoano de Pão de Açúcar.
A canoa de tolda simboliza um mundo sociocultural que começou a fazer água na década de 1950, quando a construção das usinas de Paulo Afonso, na Bahia, inaugurou a era das grandes hidrelétricas no Velho Chico. Inundada no verão, antigamente, pelas grandes cheias, causadas pelas enxurradas em Minas, a região do Baixo São Francisco tinha lavouras de arroz e muita pesca nas inúmeras lagoas que se formavam ao redor do rio. Subindo e descendo com pessoas e cargas, barcos como a Luzitânia eram parte dessa intensa vida ribeirinha. Seu ocaso acompanhou o fim das cheias – extintas de vez nos anos 1990 pela regularização do nível das águas, devido à operação das hidrelétricas – e a expansão das rodovias.
“A Luzitânia foi a primeira embarcação simples a ser tombada no Brasil. Mas pouco adianta proteger a canoa de tolda sozinha: é preciso também preservar sua paisagem”, afirma o presidente da Sociedade Socioambiental do Baixo São Francisco, Carlos Eduardo Ribeiro Júnior. A ONG pediu ao Iphan que declare como Paisagem Cultural Brasileira a foz do rio, cenário que inclui ilhas, manguezais, várzeas, restingas e dunas em Brejo Grande e Piaçabuçu. Os defensores do Velho Chico esperam que essa chancela do instituto, dando valor cultural a um bem natural, reforce a proteção ambiental da foz frente a ameaças como o avanço dos resorts, a criação de camarão e a retomada da produção em antigos poços de petróleo em áreas de mangue de Brejo Grande.