Postado em 09/02/2012
Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Ronaldo Vainfas é um dos maiores expoentes da historiografia nacional. Pesquisa a história ibero-americana e luso-brasileira entre os séculos 16 e 18, especialmente os temas da Inquisição, religiosidade, sexualidade, escravidão e colonização.
É autor de A Heresia dos Índios: Catolicismo e Rebeldia no Brasil Colonial (Companhia das Letras, 2010), Ideologia e Escravidão (Vozes, 1986) e Dicionário do Brasil Joanino, 1808-1821, (Objetiva, 2008), em parceria com Lúcia Bastos Pereira das Neves, pelo qual receberam o Prêmio Sérgio Buarque de Holanda, da Fundação Biblioteca Nacional.
Em entrevista à Revista E, ele fala sobre a influência do sistema econômico na relação entre a Igreja Católica e as religiões de origem africana no Brasil. “A Inquisição era impotente para desafiar a ordem escravista. Houve casos em que escravos denunciados foram escondidos pelos senhores para não serem presos pela Inquisição. A escravidão era, portanto, uma aliada dos cultos afro-brasileiros”, afirma.
Artistas como Goeldi, Volpi, Clarice Lispector, Carmen Miranda, entre outros, eram estrangeiros. A questão da miscigenação não seria um dos traços fundamentais da cultura brasileira? Em geral se fala muito de índios, portugueses e negros, quando a herança é muito maior.
Esses três elementos são os grupos formadores, valorizados como tais em texto de 1844, Como se Deve Escrever a História do Brasil, de autoria do alemão von Martius. Foi ele quem afirmou, pela primeira vez, que a chave para se compreender a nossa história residia na mescla das três raças.
Quase cem anos depois, Gilberto Freyre retomou a tese de Martius, em Casa-Grande & Senzala, embora tenha ampliado o campo de observação ao relacionar raça e cultura e valorizar as africanidades, ao contrário do alemão, que valorizou a face portuguesa na formação brasileira. O mais importante, porém, é a percepção que ele teve de que a mescla racial e cultural era o nó da nossa formação histórica.
Essa tendência se prolongou séculos afora. Todas as correntes migratórias dos séculos 19 e 20 – italianos, alemães, suíços, japoneses etc. – de início mantiveram suas identidades de colônias de imigrantes, depois se abrasileiraram. Nisso a história do Brasil é muito diferente da norte-americana, que conservou o modelo do WASP (white, anglo-saxon and protestant) como referência do norte-americano típico, tratando os demais grupos como minorias.
Ainda de nossas heranças: muito de nossa academia, do modelo das belas-artes e mesmo das nossas leis têm uma brutal influência francesa. A presença francesa no Rio de Janeiro, ainda hoje, também pode ser sentida. O brasileiro na verdade é uma reunião de influências?
A influência francesa ganhou força no século 19, junto com a inglesa, pelo papel que aqueles países alcançaram no mundo ocidental. Exemplos de civilização avançada, de sociedade moderna e burguesas. Isso aconteceu em toda a América Latina. Mas, na verdade, desde o século 16 o mundo todo passou a se alimentar de influências e intercâmbios culturais múltiplos.
Pouco se fala hoje da ocupação holandesa em Pernambuco, à época uma das regiões brasileiras mais ricas e desenvolvidas. Pode se falar de um legado holandês no Brasil? Ou uma modernidade, já que eles eram mais avançados do que os portugueses?
No século 17, Pernambuco era a cabeça de uma rede de capitanias produtoras de açúcar para o mercado europeu. Mas não era “desenvolvida”, nem “rica”. Era uma área colonial bastante rústica. A “modernidade” dos holandeses, nesse ponto, se limitava ao fato de que era uma empresa de capitais privados, a Companhia das Índias Ocidentais, e não o Estado, que dirigiu a conquista e a administração do Nordeste açucareiro.
No mais era o mesmo sistema. A crença de que o Brasil seria melhor se fosse colonizado pelos holandeses é um mito, faz parte da “nostalgia nassoviana” construída em Pernambuco, cujas elites sempre se mantiveram desgostosas, desde o século 18, com a Coroa Portuguesa – depois com o Império do Brasil.
Esse mito do “Brasil nassoviano” acabou se nacionalizando desde o final do século 19, quando virou moda atribuir todos os males de nossa formação aos portugueses. Afinal a Holanda tinha um perfil mais “civilizado”, aos olhos da intelligentzia nacional na virada do 19 para o 20, do que o atrasado Portugal.
Mas, lá no século 17, as “modernizações” introduzidas por Nassau no Recife foram limitadíssimas, voltadas para a construção de uma corte para ele mesmo governar. Sérgio Buarque [de Holanda] derrubou esse mito já em Raízes do Brasil, de 1936, ao dizer que a presença dos holandeses no período colonial ostentou uma “grandeza de fachada”.
Os jesuítas quiseram catequizar não apenas índios, mas também os brancos europeus que estavam no Brasil. Como era essa tentativa de trazer costumes cristãos ao Brasil daquela época?
Não era só questão de trazer “costumes cristãos”, mas de desenvolver uma ação apostólica de enorme envergadura junto às populações nativas. Os jesuítas estavam talhados para isso, já que integravam a ordem regular mais afinada com a Contrarreforma, empenhada em defender o catolicismo contra o avanço protestante, na Europa, e expandi-lo no ultramar.
Na prática tudo isso se complicava, pois os interesses comerciais da colonização por vezes batiam de frente com os objetivos missionários, como no caso da escravização dos índios, que os jesuítas combatiam. Além disso, sem cair no estereótipo de que os colonos portugueses eram “degredados da pior espécie”, o fato é que os colonos do século 16 não queriam saber de religião ou de moral cristã quando se aventuravam no Brasil.
Dormiam com índias, viviam com elas, tinham filhos, tudo à margem do sacramento matrimonial. Por isso os jesuítas viviam se queixando da lassidão moral dos colonos e até dos padres seculares enviados ao Brasil. O mesmo problema ocorreu em relação à escravidão africana, com os jesuítas combatendo, em vão, a “moral das senzalas” e amancebamentos entre senhores e escravas. Mas, nesse caso, vale dizer, não contestavam a escravidão, como faziam no caso dos índios. Pelo contrário.
No Brasil Colônia era grande o número de europeus que tinham duas famílias, uma lá e outra aqui. Como era vista a questão da bigamia nesta época?
A bigamia era crime gravíssimo havia tempos, seja nos códigos civis dos reinos europeus, seja no foro da Igreja Católica. No primeiro caso, era um atentado ao contrato matrimonial (que envolvia patrimônio, sucessão etc.) e, no segundo caso, uma afronta à indissolubilidade do matrimônio como sacramento.
Mas, de fato, a bigamia cresceu muito a partir do século 16, com destaque para o mundo ibérico, em razão da mobilidade permanente de homens (e mulheres, em menor escala) nos espaços coloniais. A solução encontrada pelos poderes da época foi incluir a bigamia no rol de crimes de foro inquisitorial. Milhares foram condenados pelo Santo Ofício.
O senhor já afirmou que os desvios sexuais foram muito mais perseguidos do que a feitiçaria. Por quê?
Antes de tudo, devo dizer que todos os delitos do foro inquisitorial foram pouco perseguidos se comparados com a perseguição aos cristãos-novos acusados de judaísmo. No caso do Brasil tudo se complicava porque a “feitiçaria” foi se moldando como religiosidade multiétnica desde o século 17, em especial as mesclas entre um catolicismo popular e diversas crenças africanas.
Era uma religiosidade de escravos, ligada, de certo modo, ao que alguns chamaram de “moral das senzalas”. Logo, paradoxalmente, esses ritos eram “protegidos” pelos senhores, que inclusive viam neles uma atenuante para os rigores do cativeiro. A Inquisição era impotente para desafiar a ordem escravista. Houve casos em que escravos denunciados foram escondidos pelos senhores para não serem presos pela Inquisição.
A escravidão era, portanto, uma aliada dos cultos afro-brasileiros. Assim, para azar dos sodomitas e fornicários, eles foram mais perseguidos no Brasil do que os mandingueiros ou calunduzeiros. Ninguém protegia os sodomitas.
De onde se explica, no Brasil, o fato de a imensa maioria da população ter duas religiões?
Duas religiões talvez não seja o termo exato, senão religião multifacetada, sincrética. A origem pode ser buscada no passado colonial, por conta da mescla cultural e racial de nossa formação histórica. A Igreja colonial sempre foi fraca, clero reduzido, a maioria dos padres muito despreparada, inclusive nas ordens regulares, com exceção dos jesuítas.
E, quando a Igreja se fortaleceu, no século 19, em meio ao processo de “romanização”, digamos que já era tarde. A forma das identidades religiosas no Brasil se fez com moldes para crenças plurais.
Durante certa época do Brasil Colônia, a Igreja, principalmente durante as missas e as procissões, servia de palco para encontros amorosos?
No Brasil colonial, as cerimônias da Igreja eram ocasiões de sociabilidade. Tratava-se de uma sociedade muito estática, desanimada, cada um na sua, vilas pequenas, rotina, tédio. É perfeitamente compreensível que tais ocasiões dessem oportunidade para flertes.
Daí a dizer que as igrejas eram “palco” para encontros amorosos seria exagero, embora por vezes tenham sido mesmo, à noite, na surdina. Além disso, os próprios padres abusavam da raríssima privacidade exigida nas confissões sacramentais para tentar seduzir mulheres. Vários foram processados por esse delito.
O papel dos jesuítas no Brasil sempre foi muito criticado, inclusive dentro da própria Igreja. Qual seria o maior legado deles?
Os jesuítas foram muito criticados no Brasil pelos colonos interessados no trabalho cativo dos índios. Quase foram varridos do Rio de Janeiro, e de São Paulo foram mesmo expulsos, nos anos de 1640, por causa desse problema. O mesmo ocorreu no Maranhão, em 1661, por causa da inflexibilidade de Antônio Vieira, que não cedia um milímetro diante da pressão dos colonos interessados no trabalho indígena.
Que comprassem escravos negros, dizia Vieira, mas deixassem os índios em paz com os “soldados de cristo”. Independentemente de juízos de valor, o papel dos jesuítas foi enorme. Do ponto vista do catolicismo, os jesuítas foram praticamente os únicos a defenderem a Igreja tridentina em colônia onde a própria instituição eclesiástica era débil. Assumiram a educação dos filhos dos colonos, formando quadros para a Igreja e para o Estado.
Combateram o escravagismo dos colonos, embora utilizassem a mão de obra indígena em seus aldeamentos. Lutaram por um tratamento mais humano para os escravos africanos, embora considerassem a escravidão deles legítima. Tentaram, em resumo, combinar os valores espirituais da Igreja com os objetivos comerciais do sistema colonial. Conciliadores por vocação. Combatentes por tradição. Goste-se ou não dos jesuítas, é impossível minimizar a importância dos inacianos na nossa história.
São os jesuítas que iniciam uma feroz perseguição às práticas mágicas indígenas?
Difícil falar em práticas mágicas indígenas, tratando-se de uma cultura que se baseava na mitologia heroica de seus ancestrais, na qual tudo era ao mesmo tempo humano e divino. Mas é claro que os jesuítas atacaram os rituais que, em uma perspectiva religiosa (deles, padres), se assemelhavam a ritos diabólicos.
A disputa entre jesuítas e pajés foi duradoura e a balança só começou a pender para o lado dos padres no transcurso das gerações, ao desaparecerem os pajés tradicionais. Mas a perseguição não foi propriamente feroz. Foi incansável, sim, mas cheia de sinuosidades, incluindo o artifício de os jesuítas pregarem em tupi para os índios, fazendo gestos similares aos dos pajés.
Algumas tribos de índios, como os tupinambás, eram antropófagas. Como os portugueses lidavam com essas diferenças? E também os negros?
Diferenças? Os portugueses sequer consideravam humanos esses costumes tupinambás, vendo neles uma prova cabal da barbárie e selvageria dos nativos. Dos africanos não tenho notícia. De todo modo, como tudo na história é complicado (condição humana), muitos mamelucos, filhos de portugueses e índias, praticavam o canibalismo quando estavam nas aldeias.
Alguns tinham vida dupla: viviam à moda tupinambá nas aldeias e se aportuguesavam nos núcleos de colonização, servindo mesmo aos portugueses na captura ou resgate (compra) de índios escravizados. Escravizados pelos próprios índios nas suas guerras intestinas. E há mais: o calvinista Jean de Léry mencionou (e condenou) os “intérpretes normandos” que, de quando em vez, praticavam a antropofagia junto com seus aliados tamoios, na baía da Guanabara, no meado do século 16.
Aliás, por que esse traço de antropofagia é tão pouco apresentado na escola?
Talvez pela dificuldade de explicar, antropologicamente, um costume nativo que, na cultura ocidental, é considerado abominável. Os nativos entendiam o ato de devorar o inimigo como demonstração completa da vingança que eles mereciam, por terem comido seus parentes – e o próprio prisioneiro, pouco antes de ser golpeado de morte, jurava vingança e prometia que os seus haveriam de comer aqueles que o comeriam.
Assim o ciclo antropofágico seguia seu interminável périplo de comilança humana, reforçando a guerra e a identidade tribal de cada “nação” indígena do tronco tupi.
Vieira era mulato de ascendência cristã-nova? Como era possível com esses atributos, à época, chegar a posição tão destacada dentro da Igreja e da Coroa Portuguesa?
Vieira era filho de pai e mãe portugueses. Sua ascendência mulata era distante, pelo lado paterno. Seu pai nasceu de um romance do avô com uma escrava ou forra mulata. Vieira passava por branco, como sugerem alguns retratos que dele fizeram no próprio século 17.
Também a ascendência cristã-nova era avoenga pelo lado materno, pois sua mãe era filha de uma cristã-nova com um armeiro da Casa Real. Quando Antônio Vieira entrou para a Companhia de Jesus, sendo filho de portugueses, ninguém averiguou suas “nódoas de sangue”, como se dizia à época, prevalecendo a aparência de branco, português e cristão-velho.
Mas Vieira conhecia suas origens e sempre buscou escondê-las. Até quando recebeu, em favor do pai, mercê do hábito de cavaleiro da Ordem de Cristo, por concessão do rei, tratou de transferir o benefício para o futuro cunhado, receoso de que, se examinada a origem do pai, viesse à tona o “defeito da mulatice” na sua progênie.
Em seu processo inquisitorial, declarou, na sessão de genealogia, que nada sabia sobre suas avós. Só conhecia a origem dos avôs, que eram portugueses, católicos e brancos. De algum modo, porém, seus inimigos descobriram alguma coisa do passado de Vieira, no tempo em que ele combateu a Inquisição, pois alguns panfletos difamatórios o acusaram de mulato.
“(...) a ‘feitiçaria’ foi se moldando como religiosidade multiétnica desde o século 17, em especial as mesclas entre um catolicismo popular e diversas crenças africanas. (...) Logo, paradoxalmente, esses ritos eram ‘protegidos’ pelos senhores, que inclusive viam neles uma atenuante para os rigores do cativeiro”
“(...) o papel dos jesuítas foi enorme. (...) Tentaram, em resumo, combinar os valores espirituais da Igreja com os objetivos comerciais do sistema colonial. Conciliadores por vocação. Combatentes por tradição”
“A crença de que o Brasil seria melhor se fosse colonizado pelos holandeses é um mito, faz parte da ‘nostalgia nassoviana’ construída em Pernambuco (...). Esse mito (...) acabou se nacionalizando desde o final do século 19, quando virou moda atribuir todos os males de nossa formação aos portugueses”
“A disputa entre jesuítas e pajés foi duradoura e a balança só começou a pender para o lado dos padres no transcurso das gerações, ao desaparecerem os pajés tradicionais”