Postado em 09/02/2012
Berço de movimentos cultuados mundo afora – como a bossa nova, a tropicália e o manguebeat –, o Brasil é uma mina de músicos talentosos. Em um país com tamanha tradição, é natural o diálogo entre diferentes gerações. É o caso, por exemplo, de dois dos maiores lapidadores da MPB: Caetano Veloso e Chico Buarque.
Mesmo tendo sido protagonistas de uma época de ouro da cultura brasileira, ambos se renderam ao brilho de um novo talento: o rapper paulistano Criolo, que dividiu o palco com o primeiro e foi homenageado pelo segundo. Na estreia de sua última turnê, no mês de novembro, Chico apresentou a versão que Criolo fez para sua música Cálice e ainda arriscou uma rima dedicada ao jovem artista.
Aliás, o autor de Roda Viva certa vez proclamou a morte da canção, que seria substituída por uma levada mais parecida com a fala do hip hop. Ironicamente, o tão festejado segundo álbum de Criolo, Nó na Orelha, é recheado de canções. Talvez esse seja um dos motivos que levaram o disco a fazer tanto barulho: foi eleito o melhor de 2011 pela revista Rolling Stone e elogiado pelo jornal norte-americano New York Times.
Felizmente o álbum de Criolo não é um trabalho de qualidade isolado no atual panorama musical brasileiro. Embora a venda de CDs tenha caído vertiginosamente na última década, o fato é que vivemos em um período riquíssimo em relação à produção e à difusão sonora.
“Na verdade, é uma crise administrativa das grandes gravadoras, cujos executivos estavam mais interessados em pegar a maior quantidade possível de dinheiro que determinado artista pudesse fazer num curto espaço de tempo”, diz o jornalista e crítico musical Alexandre Matias – editor do caderno Link, do jornal O Estado de S. Paulo, e curador do projeto Prata da Casa do Sesc São Paulo (veja boxe Fábrica do Som).
Assim, com um pouco de curiosidade e com o auxílio de ferramentas que facilitam o acesso à informação, como a internet, o público pode facilmente descobrir e garimpar novos valores do que se convencionou chamar de nova música brasileira.
Caleidoscópio sonoro
Uma das características que mais chamam a atenção no atual cenário é a diversidade de estilos. Pelos palcos de São Paulo, por exemplo, o afrobeat se faz presente com a big band Bixiga 70. A cantora Tulipa Ruiz traz em seu doce timbre influências da MPB de Gal Costa e Baby do Brasil. Já o samba dá o tom para o grupo Passo Torto. E o hip hop é porto seguro do rapper Emicida.
“Apesar de terem estilos musicais completamente diferentes, toda essa galera circula nos mesmos meios, divide palco e faz participações uns com os outros”, afirma o músico e produtor Daniel Ganjaman – responsável pela produção do aclamado Nó na Orelha, de Criolo. “Eles bebem de fontes musicais, culturais e ideológicas que conversam entre si, mas ao mesmo tempo cada um absorve isso de um jeito.”
Desde o manguebeat pernambucano, surgido em meados da década de 1990, um traço marcante da música brasileira é o fato de que a produção não se restringe ao chamado eixo Rio-São Paulo. Por todas as regiões do Brasil há bandas e músicos se destacando. E o mais interessante para o público: esses shows circulam por todo o país.
Ou seja, os artistas não ficam restritos aos respectivos estados de origem. É o caso, por exemplo, da cantora baiana Karina Buhr, que deu início à carreira artística em Recife, vive atualmente em São Paulo e faz turnê por todas as regiões brasileiras.
Caso semelhante acontece com o grupo de rock Cidadão Instigado, originado no Ceará e sediado na capital paulista. “Atualmente, acho que a principal mudança é a do mapa da música brasileira. Hoje, do Amapá a Santa Maria, está todo mundo envolvido e se vendo protagonista dessa construção”, explica o produtor cultural Pablo Capilé, gestor do Circuito Fora do Eixo e ex-vice-presidente da Associação Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin).
O Circuito Fora do Eixo, uma associação de produtores culturais espalhada por todo o Brasil, tem papel fundamental para a divulgação de artistas independentes. Além de buscar a melhoria na distribuição e produção de conteúdo, o objetivo dessa rede cooperativista é fazer com que músicos circulem pelo país.
Para isso, promove intercâmbios entre artistas de diferentes estados. Segundo Capilé, 200 bandas circularam em 2006. No ano passado, esse número aumentou para mais de 10 mil. E, de 2006 para 2011, o número de festivais da Abrafin saltou de 16 para 80.
Num mundo globalizado, cujas informações estão a um clique, é natural que aconteçam misturas de ritmos que no passado pareciam ser como água e óleo. Exemplo disso é o chamado tecnobrega, muito popular no Pará, que fundiu brega e carimbó com música eletrônica. A principal estrela do movimento é a cantora Gaby Amarantos, apelidada de Beyoncé do Pará.
Também paraense, o músico Felipe Cordeiro conecta sonoridades aparentemente muito distintas. “Ao misturar carimbó, lambada e guitarrada com new wave, ele consegue fazer conexões entre ritmos locais com músicas contemporâneas universais. Há proximidades que permitem fazer essas pontes”, analisa o jornalista e crítico musical José Flávio Júnior, ex-curador do projeto Prata da Casa.
Obviamente, o acesso a músicas feitas em diversas épocas e em diferentes partes do mundo é facilitado com a popularização da internet. “A música moderna paraense me interessa bastante porque não renega as músicas tradicionais de lá e, ao mesmo tempo, não é puramente revivalista.”
Cultura digital
Se por um lado os equipamentos digitais permitiram o barateamento da produção de um álbum e a internet facilitou a difusão de conteúdo, por outro lado essas novas tecnologias colocaram em pauta o debate acerca de como deve ser o modelo de negócio da música.
Muitos dos artistas independentes optam por disponibilizar seus discos gratuitamente para download e buscam o retorno financeiro por meio da realização de espetáculos. “As pessoas da minha geração fazem a sua carreira a partir da rede, que foi determinante para a gente espalhar o nosso trabalho sem a ajuda de rádios, TVs e jabás. Quando toco em qualquer cidade do Brasil, por exemplo, sempre aparece alguém cantando as músicas e que compra o CD depois do show”, conta o guitarrista Kiko Dinucci, músico das bandas Passo Torto, Metá-Metá e Sambanzo.
As redes sociais da internet também são um importante aliado para a divulgação dos artistas. Por meio delas é possível promover datas de shows, compartilhar músicas e vídeos, manter contato com outras bandas e se aproximar mais dos fãs.
“O grande lance das redes sociais é a mídia espontânea que ela proporciona, com o público divulgando o trabalho dos artistas. Isso funciona de forma exponencial”, ressalta Ganjaman. Com a popularização das câmeras digitais e a facilidade de postagem de conteúdo audiovisual em sites, há um “universo” de apresentações que foram filmadas e disponibilizadas. Inclusive, o show em que Chico Buarque entoou os versos de Criolo, citado no início deste texto, pode ser conferido aqui: http://migre.me/7BhNz.
Também é possível ter acesso a um grande acervo por meio das lojas virtuais, que levam ao público milhões de músicas brasileiras e internacionais. “Esse é um formato que pressupõe o download. Mas uma das principais coisas que estamos vendo hoje em dia, graças à qualidade da banda larga, que está melhorando no mundo inteiro, é um processo que levará ao fim do download”, prevê Matias.
“Tem uma série de outros serviços que vêm aparecendo, como o Grooveshark e o Spotify, que já permitem ouvir música na internet sem precisar baixá-la. Mas é claro que, a partir do momento em que todo mundo sobe conteúdo no YouTube, isso já estava rolando na prática.”
Apontado por especialistas como uma das principais tendências para 2011, o financiamento coletivo por meio da internet (chamado crowdfunding) tende a se consolidar este ano como uma forma de muitos músicos lançarem novos álbuns. Funciona da seguinte maneira: um artista, por exemplo, envia seu projeto para um site especializado nessa prática; especifica quanto precisa para financiar o trabalho e dá um prazo para arrecadar o dinheiro.
Assim, as pessoas que doam um determinado valor recebem recompensas por isso. Se a quantia pretendida for atingida até a data proposta inicialmente, o autor do projeto recebe o dinheiro. Senão, quem contribuiu é reembolsado. Após o barulho que fizeram na internet por causa do videoclipe Oração, os paranaenses d’A Banda Mais Bonita da Cidade financiaram o disco de estreia dessa maneira. No entanto, a iniciativa não se limita à arrecadação para o lançamento de álbum de jovens em início de carreira. A banda Autoramas e o cantor BNegão, por exemplo, utilizaram esse recurso para fazer um show em conjunto em São Paulo.
Geografia musical
Com o cenário independente fortalecido cada vez mais no país inteiro, novas bandas e artistas marcam presença em todas as regiões do território
Foi-se o tempo em que a produção musical se restringia ao chamado eixo Rio-São Paulo. Hoje, com o barateamento de equipamentos digitais para gravar e divulgar um álbum, a proliferação de estúdios em todas as regiões do país e o aumento do número de festivais independentes – destinados principalmente a bandas de pequeno e médio porte –, jovens artistas se destacam por todo o Brasil. Confira de onde vêm alguns dos principais nomes dessa cena.
Norte
AC Los Porongas; Caldo de Piaba
AM Alaíde e Negão; Tucumanos
AP Mini Box Lunar
PA Félix e Los Carozos; Felipe Cordeiro; Gang do Eletro
RO Beradelia; Ultimato
TO Boddah Diciro; Cecílias
RR Reclive; Jamrock
Centro-Oeste
DF Móveis Coloniais de Acaju
MT Macaco Bong; Vanguart
MS Cueio Limão
Nordeste
AL My Midi Valentine
BA Retrofoguetes
CE Cidadão Instigado
MA Cláudio Lima
PB Cabruera; Burro Morto
PI Conjunto Roque Moreira
PE Junio Barreto, Lirinha; A Banda de Joseph Tourton
RN Camarones Orquestra Guitarrística
SE The Baggios
Sudeste
ES J3
MG Devise; Graveola e o Lixo Polifônico
SP Anelis Assumpção; Marcelo Jeneci; Projota
RJ Banda Tereza; Pedro Veríssimo; Cícero
Sul
PR Julião Boêmio; Karol Conká; Humanish, Nevilton
RS Apanhador Só; Filipe Catto; Damn Laser Vampires
SC Samambaia Sound Club
Prateleira virtual
Meio de divulgação do trabalho de jovens artistas, blogs e sites são terrenos férteis para garimpar preciosidades da nova música brasileira
Para download gratuito e autorizado pelos próprios artistas:
Eu Ovo: euovo.blogspot.com
Meio Desligado: www.meiodesligado.com
Screen & Yell: www.screamyell.com.br
Hominis Canidae: www.hominiscanidae.org
Críticas musicais:
Patricia Palumbo: patriciapalumbo.com
Farofafá: farofafa.com.br
Vídeos com performances ao vivo:
Show Livre: showlivre.uol.com.br
Oi Novo Som: oinovosom.com.br
Compacto Petrobras: compacto.blogspetrobras.com.br
Músicas em streaming (não é necessário baixá-las):
Grooveshark: grooveshark.com
Spotify: www.spotify.com
Fontes: o jornalista e crítico musical Alexandre Matias e o produtor cultural Pablo Capilé
Usina de sons
Sesc estimula a produção musical e revela talentos no cenário brasileiro
Historicamente o Sesc tem levado aos palcos das unidades músicos e bandas de destaque nacional e internacional, mas também os que estão iniciando a trajetória artística. “O Sesc, com toda sua infraestrutura, procura criar condições para que novas propostas e projetos artísticos possam surgir”, fala o assistente da Gerência de Ação Cultural do Sesc Sérgio Pinto.
Em 2011, foram contabilizados 5033 shows. O projeto Sesc Instrumental Brasil, por exemplo, estimula e difunde o melhor da produção do gênero desde 1990. Os shows, de músicos novos e consagrados, acontecem semanalmente na unidade Consolação e são exibidos pelo SescTV. Já passaram por lá instrumentistas do quilate de Baden Powell, Hermeto Pascoal, Paulo Moura, Yamandu Costa, Chimpanzé Clube Trio e Camarones Orquestra Guitarrística.
Há vários projetos que favorecem o surgimento de talentos. Com o Prata da Casa, por exemplo, a Pompeia abre espaço todas às terças-feiras para novas bandas e artistas do Brasil inteiro, desde 1999. Entre os nomes que passaram pelo Prata, no início de suas carreiras e que ficaram conhecidos pelo grande público, destacam-se as cantoras Céu e Vanessa da Mata, a banda pernambucana Mombojó e o grupo de samba Quinteto em Branco e Preto.
A cada ano, um novo curador seleciona quais serão os músicos que se apresentarão na Choperia da unidade da rua Clélia. Com a atual curadoria do jornalista e crítico musical Alexandre Matias, a programação de fevereiro traz o rapper Ogi (no dia 7), o carioca Cícero (no dia 14) e os recifenses d’A Banda de Joseph Tourton (no dia 21).
“Ao longo desses 30 anos, a unidade Sesc Pompeia vem mantendo sempre a preocupação de, assim como nas outras linguagens artísticas, afirmar em sua programação musical os valores de diversidade e inovação que são tão caros ao Sesc e a seu público frequentador”, diz a coordenadora do núcleo de música, Lígia Moreli.
Há ainda uma programação variada composta de projetos pontuais ou de curta duração. Para comemorar os 458 anos da capital paulista, em 25 de janeiro, o Sesc Ipiranga apresentou o especial Cruzando a Cidade, que reuniu em dois dias Kiko Dinucci, Maurício Pereira, Dona Inah, Tulipa Ruiz e MC Max BO, sob direção artística de Maurício Fleury e Ronaldo Evangelista. Já o Vila Mariana, entre 25 e 29 de janeiro, exibiu o criativo panorama da nova cena musical da metrópole em São Paulistas.
O projeto consistiu numa série de encontros entre artistas que se destacam no cenário da música contemporânea, com shows de Criolo e participações de Lurdes da Luz e Mauricio Takara, e Bixiga 70 com participação de Marcelo Pretto, por exemplo.
“A gente precisa ressaltar a importância do Sesc, que consegue dar suporte para bandas do Brasil inteiro. Também tem investido nesse novo cenário inventivo e criativo, colocando muitas vezes bandas que o mercado não contrataria. Então também tem sido um fator importante na construção desse novo momento da música brasileira”, afirma o produtor cultural Pablo Capilé, gestor do Circuito Fora do Eixo e ex-vice-presidente da Associação Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin).